A polêmica do embrião.
Gisele Leite*
O texto é mais inquiridor do que propriamente expositivo e solucionador de tantas polêmicas que ainda gravitam em torno do embrião humano.
Ao ler o primeiro capítulo do livro intitulado “Apontamentos críticos para o direito civil brasileiro contemporâneo” da Editora Juruá e, de autoria de Eroulths Cortiano Junior, Jussara Maria Leal de Meirelles e Umberto Paulini, deparei-me com a extrema atualidade do tema e, arguta visão sobre a discussão em torno do embrião.
Primeiramente o velho dogma da completude do sistema jurídico codificado acaba por arremessar juridicidade sobre diversos fatos e ainda, excluindo uma realidade que insiste em comparecer diante do Direito desafiando seus conceitos e previsões.
A ascensão do sujeito de direito trouxe a repersonalização do Direito Civil com ênfase ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Também há de ter uma releitura ao conceito de sujeito de direito, posto que outrora vinha sendo “patrimonializado”, tendo aptidão para os direitos das obrigações e os direitos reais.
Sendo a propriedade uma necessidade do homem, um mínimo de pertencimento, a projeção material de sua personalidade jurídica. Aliás, a teoria do patrimônio mínimo vem exatamente atender ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse novo arranjamento do direito civil moderno, traduzido por ser direito patrimonial destinado a partilhar o mundo entre seus diversos proprietários. A função social elabora novos paradigmas para o contrato, empresa, proprietário e fim, para os direitos subjetivos.
É obvio que o ser da pessoa depende do ter e, essa intensa “mercadorização dos homens” alcança então, apropriação dos objetos e de direitos (como o autoral, títulos de crédito e, etc.) a permitir trocas generalizadas.
O fortalecimento do capitalismo vem apoiado na desmaterialização da riqueza, onde se passa a conhecer novas formas de riquezas e categoria de bens incorpóreos (como o fundo de comércio, as patentes da invenção, as marcas). E, o comércio passa por meios antes não imaginados, como a interne, por exemplo.
A noção de personalidade jurídica dos seres humanos era bastião clássico do Direito Privado correspondente à idéia de titularidade, ou seja, de ser titular de direitos e obrigações, de direito subjetivo como direito individual.
A pessoa como sujeito de direito originou-se das correntes filosóficas que mais se propagaram com a Revolução Francesa (o jusnaturalismo e o iluminismo).E daí, o direito objetivo passou a ser criação e reflexo das mais diversas manifestações da personalidade humana.
Seria o direito subjetivo inerente a natureza humana e serviria como limite ético necessário para legitimar a atuação do Estado.Assim, a pessoa humana fora reduzida, por ser simples elemento da relação jurídica.
Nascituro é sujeito de direito, mas não é pessoa. Tem seus direitos resguardados, como uma pessoa em potencial, (também a prole futura).
A questão que surge a saber é, se embrião humano é sujeito de direito. Enquanto in vitro, não. Mas uma vez nidado ao útero humano, já se tornaria um nascituro e, portanto, um sujeito de direito.
Outro problema é temporal-científico pois após 14 dias o embrião passaria a desenvolver o sistema nervoso e, a partir daí, não se concebe que o embrião seja tratado como coisa.
A manipulação de embriões humanos e das células-tronco resta permitida somente para fins terapêuticos e de pesquisa, mas jamais por pura mercancia.
A existência jurídica de pessoa ,ou seja,de ser humano, é composto de corpo e alma.E a supervalorização da racionalidade humana veio a propiciar a apreensão jurídica do que é externo à razão humana.
E, redundou na idéia de que o corpo do sujeito de direito é coisa e, como tal, pode ser objeto de relações jurídicas.Porém o embrião in vitro dista em muito do que seja persona concebida pela lei formal.Por outro lado representa vida humana em potencial, real e digna de ser protegida.
Há proteção aos nascidos com vida, e, por fim, à prole eventual (como seres não concebidos) podemos assim por analogia, tratar os embriões.
Embriões concebidos criogenizados e, mantidos em laboratório não são pessoas naturais, embora também possamos protegê-los a guisa do que já se faz com os nascituros. Os embriões criados e mantidos em laboratórios são considerados como coisa, a luz do direito, apesar do fervor de alguns doutrinadores (concepcionistas) que pretendem considerá-lo como pessoa virtual.
Registre-se que é odiosa a prática chamada de “design baby”, onde os genitores projetam até mesmo deficiências arquitetadas cientificamente pela vontade dos pais biológicos.
O filho não pode ser programado pelos pais, exceto se for para livrá-lo de doenças e falhas genéticas lastimáveis passíveis de comprometerem a dignidade da pessoa humana.Mas, não há entre nós proteção jurídica específica ao embrião.
O embrião é pessoa codificada ou sujeito virtual em posição, há um sujeito real que corresponde à pessoa humana.A subjetividade jurídica se traduz em ser titularidade de direitos que vai além dos bens patrimoniais.
E, o corpo é a materialização formal da personalidade, mas restringe-se essa titularidade do sujeito de direito a fim de se evitar comercialização espúria de sangue, células, órgãos e tecidos humanos.
Embora o corpo pertença ao sujeito de direito, sua perfeição estética e funcionamento pode ser torneado, pois poderá decidir se tatuar, colocar piercing, fazer circuncisão, praticar esportes radicais ou violentos, bem como dispor de seu corpo como “cobaia” para experimentos e pesquisas científicas (aliás, a Revista de domingo do Jornal O Globo, no domingo 02 de março de 2008, por Fellipe Awi, ressalta em sua capa que “já passam de 250 mil e não para de crescer o número de brasileiros que se oferecem para testar novos medicamentos”). Ainda como titular de direitos sobre seu corpo, poderá ceder gametas e material biológico do seu corpo.
A Lei de Biossegurança de 24/03/2005, em seu artigo 5º, permite francamente para fins de pesquisa e terapia, a utilização das células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos in vitro e excedentários.
Tal permissão ventila um alargamento da noção de titularidade das pessoas envolvidas vindo além de suas próprias vidas.
Mas seria a paternidade a materialidade dados apenas genéricos? Tão somente biológicos?
Nova parentalidade surge até em razão do anonimato do doador que pode ser quebrado (caso seja necessário identificar por exemplo propensão genética para certas patologias ou falhas genéticas).
Há ou não vínculo parental com embrião fertilizado in vitro?
Cabe ressaltar que antes do advento da Lei de Biossegurança, o Código Civil de 2002, (Lei 10.406 de 10/01/2003), instituiu disciplina aplicável aos embriões excedentários caracterizando uma extensão do conteúdo da titularidade em relação ao novo ser.
Até elo fato de a qualquer tempo tais embriões serem transferidos para o útero humano e vir a completar seu desenvolvimento.
A estrutura formal da relação jurídica coloca as pessoas no “cargo” de sujeitos de direito (não porque são reconhecidas a sua natureza humana e dignidade), mas porque lhes atribui faculdades, ou obrigações de agir, delimitando o exercício de poderes ou exigindo o cumprimento de deveres.
O sistema jurídico oferece respostas patrimonializantes a respeito do significado do ser humano e de sua dignidade.
O que nos leva as seguintes perguntas: -Para que servem os embriões humanos? –
São objetos de reprodução humana, objeto de estudo e pesquisa?
Ou servirão para se transformar em pessoas, perpetuando estas famílias ou ascendentes genéticos?
Ratifique-se que embrião não é pessoa. Não se compram, não se vendem e, não se testam.
Também cabe a inquisição: Por que proteger os embriões?
A nova racionalidade do Direito Civil contemporâneo exige uma revisão das categorias e conceitos. E sujeito de direito que é mais do que se inserir nas relações jurídicas adquirindo direitos e deveres.
O conceito de pessoas não é mais meramente operacional, pois se admite a personificação do patrimônio. Logo, personalidade não é apenas sinônimo de sujeito de direito.
É valioso o esforço doutrinário no sentido de distinguir as noções de personalidade, subjetividade e capacidade.A personalidade é valor característico da pessoa humana, é elemento axiológico prioritário em nosso ordenamento jurídico.
Que veio mitigar a hermética das relações privadas. E veio a ser estendida até aos entes despersonalizados.
Portanto, como é um dos fundamentos da República Brasileira evidencia-se que vida e pessoa são valores que recebem tutela diferenciada, prioritária e privilegiada. E, mesmo no direito comparado notamos que reformulou todos os institutos básicos do direito privado ocidental.
A liberdade e a complexidade do conceito de pessoa vem moldar um complexo único e indivisível, onde os caracteres humanos cingem-se o valor absoluto da pessoa humana.
Enfim, norteia o Direito, pelos prismas da solidariedade, eticidade e operabilidade.
Registre-se também mesmo antes da Lei 11.105/05 o vigente Código Civil de 2002 trouxe disposição a respeito dos embriões ditos excedentários, abrindo caminho para a extensão do conteúdo da titularidade em relação ao novo ser.
À parte a questão da paternidade jurídica, e quanto aos embriões excedentários e a questão da transferência ou não para o útero materno, não pode implicar em reduzir a potencialidade de ser humano ali inserida, demonstrando o conteúdo ampliado de titularidade ou de sujeito de direito.
Portanto, entendamos que o embrião nidado no útero é nascituro e possui seus direitos resguardados, possui personalidade jurídica formal e, terá a personalidade jurídica material quando nascer com vida.
Por enquanto, o embrião humano in vitro é coisa, objeto de direito, e não possui titularidade de direitos, sendo de responsabilidade de seus depositários e dos laboratórios pela sua conservação.
Por fim, o julgamento recente da constitucionalidade da Lei de Biossegurança demonstrou a harmonização de princípios e direitos fundamentais, o que redundou num julgamento sobre a própria natureza humana.
O cerne crucial do debate foi a possibilidade de manipular-se as células-tronco sem que se atentasse contra a dignidade da pessoa humana. Precisamos perceber que as células-tronco embrionárias são partes dos embriões in vitro, não sendo uma pessoa definida, contendo assim apenas a potencialidade de sê-lo.
Percebemos que a viabilidade de ser pessoa do embrião in vitro é mais remota, e esse pode vir a se tornar inviável para fecundação, mas não para se extrair células-tronco que são efetivamente capazes de salvar vidas, mesmo assim o STF só endossa a pesquisa responsável e, não atos de mera mercancia.
Referências
CORTIANO Junior, Erouths. Apontamentos críticos para o direito civil brasileiro contemporâneo. Juruá, 2007.
* Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora
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