Direito Penal

Teoria Penal dos “Res” e os Direitos Humanos

Teoria Penal dos “Res” e os Direitos Humanos

 

 

Cândido Furtado Maia Neto*

 

 

É importante destacar que a sanção penal possui origem na religiosidade e não na cientificidade. Pena vem de penitência: “arrependimento, ato ou efeito de pensar na reparação, contrição, sacrifício, expiação dos pecados ou da própria falta” (Dicionário Aurélio. Ed. Nova Fronteira RJ).

 

As fases da pena na história universal se apresentam como vingança privada (“dente por dente, olho por olho…”- lei de talião), vingança divina (inquisição) e a vingança pública onde o Estado se interfere diretamente no conflito social – crime –, visando a punição e responsabilização penal do autor do delito, em nome dos princípios da legalidade, da obrigatoriedade e da indisponibilidade da persecução criminal pública, na tentativa de apresentar uma resposta à sociedade, ante o dever de segurança pública (art. 144 CF/88).

 

O aprisionamento no passado era processual, teve início na história da humanidade, com todos os seus meios e invenções, fazendo surgir as Casas de Correções (House of Correction), já a prisão como pena privativa de liberdade, propriamente dita, iniciou no séc. xviii, na Europa e nos Estados Unidos da América, por volta dos anos 1776, cito a “Walnut Street Jail”, modelo pensilvânico (Filadélfia – USA) eminentemente retributivo com isolamento individual absoluto e drástico, somente se permitia contato com o capelão do presídio e a única leitura autorizada era a Bíblia ou o Evangelho, para forçar o arrependimento ou o reconhecimento do erro e da falta pelo homem recluso.

 

Na modernidade, no final do século xx, surge a corrente do abolicionismo penal com a proposta de um direito penal de resolução de conflitos em micro-sociedades, entre as partes envolvidas – réus e vítimas – que utiliza uma terminologia processual mais adequada, isto é, que efetivamente apresente “respostas sociais alternativas para o crime” e “não apenas punitivas”. O programa para a imputação de culpa típico da justiça criminal é uma verdadeira cópia da doutrina do juízo final e do purgatório desenvolvida com certa variante da teologia cristã ocidental. Ele é marcado também pelas características de centralismo e totalitarismo típico da doutrina. Naturalmente, a origem – essa velha racionalidade – é mascarada por novas palavras: Deus é substituído pela lei e o consenso popular” (Hulsman, Louk; “Conferência Internacional Sobre Justiça na Punição”, Rev. da Escola do Serviço Penitenciário do Rio Grande do Sul, Ano II, n. 8, julho-setembro 1991, pg. 153/179).

 

Não olvidemos que a própria origem do Ministério Público – “órgão estatal encarregado da acusação pública”, vincula-se as antigas práticas dos denominados “Tribunais do Santo Ofício” (vingança divina), e ao próprio sistema inquisitivo, voltando-se a pura e simples retribuição penal.

 

Hoje, no Brasil, pós Constituição de 1988, o Ministério Público enquadra-se no contexto do Estado Democrático de direito penal para a tutela dos interesses indisponíveis da cidadania. Os representantes do Ministério Público são verdadeiros Ombudsmans dos Direitos Humanos, na preservação do devido processo legal em estrito respeito à dignidade da pessoa humana, garantia fundamental indispensável e natural à realização da justiça penal.

 

É de grande importância o estudo do direito penal e das teorias dos “res”, a saber: ressocialização, reintegração social, reeducação, readaptação do condenado. A princípio poderíamos dizer que a sociedade em geral encontra-se resignada com a criminalidade, no contexto da eficiência e efetividade da lei, ante o aumento da impunidade verificada através das estatísticas oficiais.

 

A credibilidade social da administração da justiça aumentará no instante em que seus profissionais ou operadores aplicarem corretamente as normas, e para tal desiderato é preciso respeitar os princípios que regem o Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º usque 5º da Carta Magna e artigo 3º do Código de Processo Penal, sem olvidarmos o princípio da hierarquia, soberania e validade das cláusulas de Direitos Humanos na devida prestação jurisdicional.

 

Os códigos penitenciários vigentes no mundo e a lei de execução penal brasileira (lei nº 7.210/84), expressam que o objetivo da pena privativa de liberdade é a reintegração social do condenado. O emérito professor argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, leciona que a ressocialização ou a reintegração social do condenado, nos sistemas latino-americanos ainda hoje continuam prevendo e utilizando penas cruéis e infamantes (Sistemas Penales y Derechos Humanos em América Latina, ed. Depalma, Buenos Aires, 1986).

 

As próprias Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (ONU/ 1955), tentam descrever um sistema penitenciário modelo com o propósito para a readaptação ou a reeducação do preso.

 

Na teoria absoluta da pena impera o castigo corporal através do isolamento individual drástico, ociosidade total, confinamento inútil e trabalho escravo – obrigatório –, na teoria relativa a prisão passa a ser um meio de tratamento e de ressocialização do apenado; chegando-se ao modelo consensual penitenciário preocupado com a reintegração social do apenado através de um sistema participativo e direto do recluso, com responsabilidade na sua própria execução da pena.

 

O discurso penal universal é flagrantemente demagógico e hipócrita ao pretender penalizar com mais severidade a reincidência criminal (“A Reincidência Criminosa e os Direitos dos Presos”. Revista Penitenciarismo e Criminalidade; Centro de Pesquisas Criminológicas, Curitiba-PR, Ano 2, n 3, julho/setembro de 1987), mediante o agravamento da sanção (art. 61, CP), posto que ao mesmo tempo em que a administração da justiça exige a não reincidência e a reintegração social do presos, o Poder Público não dispõem de estabelecimento prisionais adequados, ao molde da lei emanada pelo próprio Estado, especialmente quanto ao respeito à integridade física e moral dos presos (art.38 CP, art. 40 LEP e art. 5º inc.XLIX CF/88), tornando, desta forma, pela inércia e falta de vontade política no setor, a execução da pena privativa de liberdade uma espécie de sanção cruel, infamante e desumana, proibida nos termos do inc. XLVII letra “e”, art. 5º da Constituição Federal (MAIA NETO, Cândido Furtado; in “A inconstitucionalidade da prisão” Revista dos Tribunais; Publicação Oficial dos Tribunais de Justiça; Ano 83, n.707, Setembro de 1994 – São Paulo-SP; www.jusvi.com – saite Jus Vigilantibus – 17.10.07)

 

O instituto da remição ou da remissão no sistema judicial vitimal e na política vitimológica moderna, visa a remição do réu e como a remissão da vítima. O vitmário resgatando o seu ato, libertando-se do erro através da responsabilidade de indenizar e reparar o dano causado ao ofendido do delito; a vítima, por sua vez, concedendo perdão total ou parcial. Primeiro é preciso reconhecer a falta e pedir perdão, na sequência imediata é preciso perdoar para a efetiva composição e cumprimento das obrigações, estamos nos referindo aos Deveres e aos Direitos humanos no âmbito da justiça penal democrática; menos ódio e menos vingança, mais acordo e mais conciliação, objetivando a reparação e a responsabilização criminal

 

O autor do ato ilícito deve primeiro procurar a reconversão subjetiva, o reconhecimento pessoal e individual do erro (confissão, art. 5º inciso LXII CF/88 e art. 186 CPP), ante a devida responsabilidade social e penal, sendo que a confissão espontânea é uma circunstância atenuante da pena (art. 63, III, letras “b” e “e”, art. 59 CP), além do que a reparação do mal causado pela prática do crime, com a indenização e o ressarcimento material e moral da vítima, é necessária e efeito da sentença (art. 91, I CP).

 

O Novo e Antigo Evangelho explicam que só existe a reconversão através da pregação da Justiça; não são os velhos que são sábios, nem os anciãos é que só entendem de justiça (Jó, 32, 9), todos podem buscar justiça e alcançarão, e quem a buscar ficará satisfeito com ela (Novo Direito Penal).

 

De outro lado, devemos pensar no dever moral e social dos cidadãos de respeito às leis penais, quanto a imputabilidade e ao limite de idade, para a responsabilidade penal através de uma revisão na legislação criminal e constitucional (art. 27 CP e art. 228 CF/88), a fim de ser rebaixada a idade para 16 anos e criado um sistema de justiça penal especial, através de um procedimento exclusivo aos réus primários (jovens-adultos), e não mais processamento e julgamento ante a Justiça da Infância e Juventude, como estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

 

O código penal (Lei nº 7.209/84, parte-geral) adotou a teoria finalista da ação (Hans Welsen), onde somente é crime quando o agente age com dolo – intenção art. 18, I CP – ou por culpa – imprudência, negligência, imperícia (art. 18 II CP)-; razão pela qual temos presente que os jovens de 16 anos de idade possuem plena consciência dos seus atos lícitos e ilícitos, o que é permitido ou proibido, aquilo que é certo ou errado (MAIA NETO, Cândido Furtado, in “Responsabilidade e Justiça Criminal”, Revista Prática Jurídica; Ano II, n.15; ed. Consulex, Bsb-DF, Junho/2003)

 

Na modernidade devemos repensar a política criminal e penitenciária, denominando-a de política vitimal, através da implantação do sistema de justiça criminal reconstrutivo, reparador e recriativo (BERISTAIN, Antonio: “A Nova Criminologia à luz do Direito Penal e a Vitimologia”, Ed. UNB – Brasília. 2000, pgs. 193, tradução Maia Netpo, Cândido Furtado).

 

A fim de reinventarmos a práxis policial-forense em prol dos Direitos Humanos e de um Direito Constitucional-Penal ético e da verdade, como propugnavam J.J.Rousseau e C. Beccaria, para a repressão estatal da criminalidade, com a correta interpretação, fiscalização e aplicação da norma, ante o ius persequendi e o ius puniendi ministerial. O Estado não deve eximir-se de apreciar ofensa, lesão ou ameaça de direito (art.5º XXXV e XXXVI CF/88), seja crime tentado ou consumado (art. 14, I e II CP).

 

Repressão e retribuição penal versus Direito Penal do Perdão, para uma justiça penal mediadora e conciliadora e um Ministério Público responsável pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária em defesa de todos os cidadãos que vivem intra ou extra “murus” (presos ou em liberdade).

 

Necessitamos de revolução penal aos moldes da revolução francesa (de 1789) com os ideais de libertate, fraternite e iguallite, incluindo-se hoje: a solidariedade, composição e tolerância.

 

Somente a dimensão da teoria do re-encantamento das ciências penais e criminologicas, principalmente a nova vitimologia, poderemos superar os desencantamentos e as desesperança da sociedade em geral, para superar o ortodoxo e velho modelo penal e penitenciário, inócuo e maléfico ao Estado e à toda sociedade.

 

O eminente ex-Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, leciona magistralmente a teoria dos “res” (GIACÓIA, Gilberto: “A Justiça na perspectiva dos Direitos Humanos”, in Notaveis do Direito Penal, Livro em Homenagem ao Emérito Prof. René Ariel Dotti, ed. Consulex, Bsb, 2006; Maia Neto, C. F., organizador), afirmando que é preciso pensar primeiro em reabilitar o homem, para resgatar e ressuscitar a ética e sua moral, só assim conseguiremos a tão almejada e pretendida ressocialização ou reintegração social dos delinqüentes como meio de prevenção geral e freio à reincidência criminal.

 

Como exemplo prático e simples, citamos aquele colégio que quando não consegue realizar o processo pedagógico – com aluno(s) indisciplinado(s) -, a instituição resolve e delibera pela reprovação, fazendo com que permaneça no mesmo nível ou estágio educacional, onde somente progridem os alunos que tiverem seus próprios méritos (responsabilidade e dever); ou o colégio “convida” o aluno indisciplinado a se retira e escolher outra instituição. Comparativamente, quando a administração prisional não possui condições de por em prática o programa de reeducação penal – segurança e controle interno de direitos e deveres dos presos-, transfere para outro centro de reclusão (penitenciária de segurança máxima), ou o sistema legal de cumprimento da execução da pena, impõe que seja colocado em liberdade, interno disciplinado ou não, esteja o preso ressocializado ou não.

 

Para concluir, cito o ensinamento do mestre e educador Paulo Freire, quando diz: “é preciso educar para formar e não somente para instruir” (in “Pedagogia do oprimido”…); assim e na mesma linha da missão da pedagogia do processo penal e da função jurisdicional do Estado, essencial ao desenvolvimento do progresso, da cultura e do regime democrático, “é preciso que os profissionais do direito e as instâncias da justiça penal sem preocupem verdadeiramente com todos os membros da sociedade, sem qualquer distinção ou discriminação, especialmente atendendo os excluídos ou os oprimidos economicamente, que compõem a classe social dos mais necessitados e vulneráveis do sistema repressivo penal estatal”.

 

Ademais, a teoria dos três “P”, do direito penal onde só vai para a cadeia: preto, pobre e prostituta”, necessita urgentemente ser desmitificada. O direito penal moderno trabalha com o “P” do Pacto – dos direitos e deveres dos réus e das vítimas -, do palpável – do ver e sentir –, e do “P” maiúsculo da Paz social e da Prevalência pelos Direitos Humanos; jamais com o “P” do direito penal patético.

 

 

* Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro do Movimento Ministério Público Democrático.Professor Pesquisador e de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – Missão MINUGUA 1995-96). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, na área criminal (1992/93). Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
NETO, Cândido Furtado Maia. Teoria Penal dos “Res” e os Direitos Humanos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/teoria-penal-dos-res-e-os-direitos-humanos/ Acesso em: 10 out. 2024