A imprensa divulgou abertamente a situação dos presídios em nossas cidades, inclusive mediante fotos de presos amontoados – não é sentido figurado – tentando espaço onde é impossível encontrar.
Pernicioso e desumano são os preconceitos contra quem delinqüi; abominável a quase unanimidade de opinião no sentido de achar que “eles têm mais é que sofrer mesmo, pois, o que fazem é inqualificável, bandido tem que morrer, não se tem que dar mole para assassino não”. Tudo, no mínimo, sem sequer prequestionar os precedentes de sua vida.
Se tortura é crime hediondo, quem já se terá perguntado se de uma forma ou de outra, não é torturador também? Prender uma pessoa, colocá-la de qualquer jeito em uma pocilga (este é o melhor nome a ser dado a quase totalidade das celas), é submetê-la a tratamento desumano, cruel, degradante e mesquinho, é fazê-la sofrer tanto e atrozmente, o calor que ninguém nega tem sido insuportável, as conseqüências da impossibilidade de satisfazer suas necessidades fisiológicas, ou sofrer o que resulta do que humanamente se torna impossível conter. Além da fome, da falta de água, da presença das centenas de insetos que ali são atraídos e quanto mais de pior se possa imaginar. Por muito menos, quase nada, muita gente que tem tudo se irrita e “acabaria com o mundo”, se pudesse. E nos admiramos quando eles se rebelam!
Isto é impor pena sem direito a ampla defesa que a Lei Maior prevê. Somos criminosos por omissão também, porque não nos opomos ao ferimento dos direitos fundamentais, direitos de todos, do criminoso inclusive: III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção. São preceitos inolvidáveis, mas olvidados que constam do artigo quinto da Constituição Federal. Lá estão muito bem postos, mas por onde anda o respeito que merecem?
Como foi noticiado, Delegados premidos pelas condições de trabalho que não têm, estão tipificando como tal, condutas que não se enquadram entre as denominadas de “menor potencial ofensivo”. Devem-se desesperar eles também. O trabalho em tais circunstância resulta na melhor produção? Ou não queremos respeitar a Lei Maior? Não é ela o alicerce do direito? E ainda temos coragem de atirar a primeira pedra?
Vem sendo euforicamente repetido que o Estado do Espírito Santo vai muito bem, encontra-se entre os mais promissores do país, mas em termos de direitos humanos, retrocedemos a tempos que só merecem ser esquecidos. A Polícia Militar continua torturando e como! Cada vez que uma tropa de choque entra num presídio, repete-se uma versão moderna do holocausto ou dos campos de concentração nazista. Na UNIP não é diferente. Adolescentes nus são submetidos a vexames e pancadaria. Os que os defendem são ameaçados de morte. E as punições que não vêm…
Desculpam-se as autoridades e alegam inexistência de recursos para fins sociais. E do Supremo Tribunal Federal, veio sábia resposta. Em julgamento recente, disse o Ministro Marco Aurélio de Mello: “num país em que a carga tributária corresponde a quase 40% do PIB, é incompreensível que se fale de ausência de recursos, exatamente na hora de contemplar os mais pobres”.
Do Espírito Santo pode ser dito o mesmo no que lhe é afim.
Paz e misericórdia. É preciso ter um olhar misericordioso para aquelas mães pretas e pobres que amam seus filhos – mesmo que tenham cometido crime hediondo – e considerar a dor que as aflige. Por exemplo, a humilhação que sofrem no momento que precede as visitas frugais que lhes fazem. Ao serem revistadas, têm que ficar completamente despidas, agacham-se de frente e de costa para que a policial constate que não estão levando celular, droga e outros inconvenientes para dentro do presídio, onde no entanto, sempre que é buscado, se encontra tudo isto. E quando têm que voltar para suas casas desoladas por terem sido impedidas de entrar?
Não é diferente a sorte das esposas na oportunidade das visitas íntimas, quando são chamadas de forma humilhante, chegada sua vez. O que seria “prazer” não passa de “obrigação” e mesmo assim, nem por isto cessada a finalidade do que a relação representa, pode ser que uma nova pessoa humana naquele instante seja concebida. Que estranho momento para um novo filho de Deus acontecer, fazer-se, ser!
Hostilizar quem comete crime não é a melhor forma de contribuir para que o mesmo se acabe. Em cada indivíduo, pulsa uma totalidade de pessoa.
Experimentemos pensar o que pode ser ainda que um único instante numa prisão. Estupro é crime tanto quanto o é permitir que crianças assistam a cenas de sexo no barraco de apenas um cômodo em que vive, na TV, no cinema, ou não poupá-las de se envolverem com sua prática, antes que chegue para ela, tempo e hora certa. Tortura é tudo que imponha sofrimento físico ou moral, deixando marcas ou não. Consentir que alguém seja tratado desumanamente é no mínimo uma tortura branca.
Estamos vivendo a “Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as crianças do Mundo”, como decidiu em Assembléia Geral a ONU em 1998. SOLIDARIEDADE E PAZ são apelos fortes que a Campanha da Fraternidade faz neste ano como forma de contribuir para uma cultura de paz.
Segundo antigo provérbio chinês, “a porta mais segura é aquela que não precisa de chave”. Ninguém ouse esperar que parta do outro a iniciativa da paz, a paz que queremos começa em nós, ou não começará nunca, nem em nenhum lugar.
A consideração do crime não se restringe a querer que o criminoso pague pelo que fez. Há toda uma gama de ações que urgem e o resultado só aproveitará em favor de todos se todos se unirem e quiserem o melhor resultado. Implica num mutirão universal onde todos digam presente.
* Marlusse Pestana Daher, Promotora de Justiça, Ex-Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, em Direito Civil e Processual Civil, Mestra em Direitos e Garantias Fundamentais.