I) Introdução
O Código Penal Brasileiro sofreu considerável modificação com o advento da Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009.
A referida lei alterou substancialmente o Título VI da parte especial do Código, a começar pela nomenclatura “ DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES” que deixou de existir, cedendo espaço para “DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL”.
A nova nomenclatura do título VI parece mais adequada aos crimes ali inseridos, pois não há dúvida que a vítima de um crime sexual tem sua dignidade brutalmente atingida pela conduta criminosa. A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, sendo que uma de suas facetas é a dignidade sexual da pessoa humana, logo, louvável a nova denominação do título VI, demonstrando claramente a importância da proteção e respeito a dignidade da pessoa humana.
No presente trabalho vamos focar nossos comentários nas alterações introduzidas pela Lei 12.015/09 no que tange ao crime de estupro (Capítulo I – Dos crimes contra a Liberdade Sexual – art. 213).
II) Estupro – art. 213 do Código Penal Brasileiro
O crime de estupro (art. 213 do CP) sofreu substancial alteração com o advento da Lei 12.015/09. Vejamos a nova redação do referido artigo:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Verifica-se de plano que a expressão “mulher” foi retirada do texto legal, cedendo espaço para a expressão “alguém”, o que altera substancialmente o crime de estupro, pois com a nova expressão “alguém”, o homem agora pode ser vítima de estupro, fato este que para nós parece absurdo, pois, jamais o homem pode figurar como vítima do crime de estupro, visto que ao admitir tal idéia, o crime perde totalmente seu conceito.
Com a nova redação do art. 213 introduzida pela Lei 12.015/09, não há que se falar mais que estupro só ocorre com conjunção carnal que seria a introdução do pênis masculino na vagina feminina, pois, como visto o homem agora pode ser vítima do referido crime sexual. Aliás, mister assentar ainda que agora, ao que se depreende da leitura do novo tipo, se houver a introdução de pênis postiço na vagina, haverá crime de estupro.
Ademais, a sujeito ativo que antes só era o homem, agora também pode ser a mulher, pois como visto o crime também ocorre quando alguém é constrangido mediante violência ou grave ameaça “a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Desse modo, mister assentar que ainda será possível ocorrer o estupro de uma mulher perpetrado por outra mulher (com a introdução de membro genital postiço na vagina ou no ânus da vítima, por exemplo).
Assim, constata-se que diante da fusão do agora revogado crime de atentado violento ao pudor (art.214) ao novo crime de estupro (art.213), os sujeitos ativo e o passivo do referido crime, agora podem ser tanto o homem, como a mulher, logo, a conceituação do crime de estupro como conjunção carnal (introdução do membro genital masculino na vagina da mulher) mediante violência ou grave ameaça, cai por terra, pois, o crime para a ocorrência não depende exclusivamente da introdução do membro genital masculino na vagina da mulher, ocorrendo estupro, por exemplo em caso de penetração anal ou praticando outro ato libidinoso.
O crime que antes era bi-próprio (exigindo assim condição especial do sujeito ativo que somente poderia ser o homem, e do sujeito passivo que somente era a mulher), passou a ser crime comum, podendo ser praticado por homem ou mulher, bem como podendo ter como sujeito passivo o homem, a mulher e o transexual não importando se este tenha realizado a operação para mudança definitiva de suas características sexuais.
Foi acrescentado no presente artigo dois novos parágrafos que trazem em seu bojo qualificadoras para o crime de estupro. Necessário lembrar que os resultados qualificadores devem advir de culpa, consubstanciando verdadeiro crime preterdoloso, caso contrário haverá concurso de crimes.
No parágrafo primeiro qualifica-se o estupro se “da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos”.
O agora revogado art. 223 do Código Penal apresentava duas qualificadoras do crime em comento: a primeira qualificava o crime se da violência resultasse lesão corporal de natureza grave; já a segunda qualificava o delito se do fato resultasse morte. A pena da primeira qualificadora foi mantida pelo novo parágrafo primeiro, qual seja, de
Quanto a nova qualificadora do parágrafo primeiro, imprescindível consignar que com a retirada da expressão “violência” e a inclusão em seu lugar da expressão “conduta”, o legislador tornou mais abrangente o alcance da presente qualificadora, logo, se o agente para realizar estupro utilizar de meio para diminuir a resistência da vítima que cause lesão corporal de natureza grave a esta, como, por exemplo, o uso de substância entorpecente, o crime será qualificado.
Quanto a primeira parte do parágrafo primeiro, mister assentar que a lesão causada a vítima sendo grave ou gravíssima qualifica o crime, logo, a expressão foi utilizada em sentido lato.
Por fim, ainda no parágrafo primeiro a nova lei apresentou mais uma qualificadora, qual seja, se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos. Acerca desta qualificadora, necessário para sua incidência que a idade da vítima entre na esfera do dolo do agente, sob pena de responsabilização objetiva do agente, o que jamais deve ser admitido no Direito Penal. Se o agente por erro desconhece a idade da vítima, há erro de tipo (art. 20 do Código Penal), o que conduz a exclusão da qualificadora em questão.
No caso de estupro sem violência ou grave ameaça de menor de 14 anos, o crime será o do novo art. 217-A introduzido pela Lei 12.015/09, ou seja, o crime será o estupro de vulnerável. Todavia, ao que parece o legislador deixou duas lacunas com as alterações introduzidas pela nova lei.
A primeira lacuna que verificamos é o estupro de vítima menor de 14 anos cometido com violência ou grave ameaça, pois, ainda que a esta seja considerada vulnerável, o tipo do art. 217-A não apresenta as elementares “violência ou grave ameaça”, assim, em respeito ao princípio da legalidade estrita, pensamos que neste caso, o crime será o do art. 213 e não o do art. 217-A. Para afastar qualquer dúvida a respeito, trazemos a lume o referido art. 217- A:
217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2o VETADO.
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
Com uma simples leitura, constata-se de plano a ausência das elementares “violência ou grave ameaça”. Por óbvio, que se houver lesão corporal de natureza grave ou a morte do vulnerável em razão da conduta do agente, estaremos diante de estupro de vulnerável qualificado ou pela lesão corporal de natureza grave ou pela morte da vítima, pois, como dito antes a expressão “conduta” torna mais abrangente o alcance da qualificadora. Portanto, o limite para ocorrência do descolamento para o tipo do art. 213 é a lesão corporal leve, visto que ocorrendo lesão grave ou morte do vulnerável, o tipo será o estupro de vulnerável qualificado pela lesão corporal grave (217-A, §3º) ou pela morte (217-A, §4º).
A segunda lacuna que encontramos após as alterações produzidas pela nova lei, é o caso de estupro de alguém ocorrido no dia do seu décimo quarto aniversário.
Se o crime for cometido sem violência ou grave ameaça, por não ser possível dizer que estamos diante de alguém menor de 14 anos, não se aplica o art. 217-A, visto que não estamos diante de vulnerável, assim, o tipo penal em questão será o delito de estupro do art. 213, salvo se a vítima for alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,ou que , por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, pois neste caso o tipo aplicável a espécie é o do art.217-A (estupro de vulnerável). Mister assentar que no caso de aplicação do tipo penal do art. 213, não há que se falar na qualificadora da segunda parte do parágrafo primeiro, visto que a vítima não é maior de 14 anos.
Caso o crime seja cometido mediante violência ou grave ameaça contra a vítima no dia do seu décimo quarto aniversário, o crime será igualmente o do art. 213, visto que o 217-A trata do estupro de vulnerável e mesmo que a vítima seja alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que , por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, não se pode falar em estupro de vulnerável, salvo na ocorrência de lesão corporal grave ou morte da vítima, pois, como dito acima o art. 217-A não apresenta as elementares “ violência ou grave ameaça”, logo, em respeito ao princípio da legalidade estrita, não é possível subsumir o fato ao delito do art.217-A (estupro de vulnerável).
O parágrafo segundo do art.213 apresenta a terceira e ultima qualificadora do crime de estupro. O estupro será qualificado se da conduta do agente resultar a morte da vítima. Como já dito, a expressão “conduta” torna mais abrangente o alcance da qualificadora, logo, se o agente para cometer o estupro utilizar meio que cause a morte da vítima (entorpecente, por exemplo) teremos um estupro qualificado pela morte da vítima.
III) Observações Finais.
O delito de estupro (art.213) em todas as suas formas (caput e §§ 1º e 2º) continua sendo crime hediondo. A novidade aqui foi a introdução no rol taxativo dos crimes hediondos do estupro perpetrado contra vítima menor de 18 ou maior de 14 anos.
Mister asseverar que o art. 9º da Lei de 8.072/90 (Crimes Hediondos) que aumentava a pena da metade nas hipóteses de estupro ou atentado violento ao pudor com presunção de violência (quando a vítima não era maior de 14 anos; ou era alienada ou débil mental e o agente conhecia esta circunstância; e por fim quando a vítima não podia oferecer, por qualquer outra causa, resistência) não se aplica mais no que tange aos referidos crimes sexuais, pois, a Lei 12.015/09 revogou o arcaico art. 224 do Código Penal que apresentava as hipóteses de presunção de violência.
No caso do agente praticar conjunção carnal seguida de outro ato libidinoso (penetração anal, por exemplo), tendo em vista a fusão dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor (antigo e revogado art.214 do Código Penal), não há que se falar mais em concurso material de crimes, pois, na verdade estaremos diante de crime continuado (art. 71 do Código Penal), visto que agora a prática de conjunção carnal seguida de outro ato libidinoso configura crime da mesma espécie, qual seja, o estupro (art. 213 do Código Penal).
Por fim, cumpre consignar que agora no caso de gravidez resultante de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, para aplicação da causa especial de exclusão do delito de aborto do art. 128, inciso II, do Código Penal, não há que se falar mais em analogia, pois, o delito de atentado violento ao pudor foi deslocado para integrar o crime de estupro (art.213), logo, se a gravidez resulta de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, ela resulta de estupro, assim, não há mais que se recorrer a analogia para a incidência da referida causa especial de exclusão do delito.
* Luiz Carlos Furquim Vieira Segundo, Advogado em Santos/SP. Pós- graduado em Função Social do Direito pela UNISUL/LFG. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) , ao Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH) e ao Instituto de Ciências Penais (ICP). Autor do Livro CRIMES CONTRA A VIDA, publicado pela Ed. Memória Jurídica.