Operações de crédito por antecipação de receitas
Kiyoshi Harada*
Sumário:
1. Introdução.
2. Vinculação como garantia real.
3. Posição da jurisprudência.
4. Verdadeira natureza jurídica da vinculação.
5. Conclusões.
1. Introdução
Modernamente o crédito público, também, conhecido como empréstimo público ou dívida pública, compõe o elenco regular de receitas públicas. Ao lado da receita tributária, a receita creditícia vem suprindo, com regularidade, as necessidades financeiras do Estado. A Constituição Federal possibilitou ao Estado efetuar operações de crédito em geral, sob as mais diversas modalidades e, ao mesmo tempo, permitiu que a lei orçamentária anual de cada entidade política previsse a contratação de operações de crédito por antecipação de receitas (§ 8º do art. 165). E mais, para assegurar o exercício dessa faculdade excepcionou da proibição de vincular as receitas de impostos a órgãos, fundos ou despesas, permitindo expressamente a prestação de garantia na contratação dessas operações de crédito (art. 167, IV da CF).
Os Municípios, por não disporem de instituição oficial para colocação de seus títulos públicos no mercado, como acontece com a União, que conta com o Banco Central para realizar essa tarefa, costumam recorrer, com freqüência, à operação de crédito por antecipação de receitas tributárias – conhecida pela sigla ARO – dando em garantia dessa operação, às instituições financeiras, as parecelas do ICMS que lhes pertencem, na forma do art. 158, IV da Carta Política. Essa modalidade de crédito público pode ser classificada como aquela que a doutrina denomina de dívida pública flutuante, isto é, empréstimo de curto prazo. Ele é destinado a atender às insuficiências momentâneas de caixa. Não se trata de buscar recursos financeiros fora da previsão orçamentária. Apenas procura antecipar para o momento oportuno a realização da receita prevista. Logo, pouca influência terá na formação do déficit público, decorrente tão só das despesas representadas por pagamento de juros, já que a amortização da dívida pública far-se-á com a realização da receita vinculada. O objetivo deste artigo é o de examinar o alcance e o conteúdo da autorização constitucional de vincular produto da arrecadação de impostos, à luz da interpretação integrada dos textos normativos e da jurisprudência de nossos tribunais. Doutrinariamente a matéria é bastante controvertida.
2. Vinculação como garantia real
Maioria dos estudiosos entende que essa vinculação, autorizada pela parte final do inciso IV, do art. 167 da CF, tem o sentido de garantia pignoratícia de que cuida o direito civil, isto é, uma garantia real ao lado da hipoteca e da antricrese. Possibilitaria a sua excussão na hipótese de inadimplemento do poder público. Entretanto, esse entendimento colide com os demais textos constitucionais e contraria os princípios de direito financeiro. Transcrevamos os dispositivos constitucionais pertinentes para melhor exame:
“Art. 167 – São vedados: IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado pelo art. 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem assim o disposto no § 4º deste artigo. § 4º -é permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I a e b, e II, para a prestação de garantia…”
Interessante notar que grande parte dos que enfrentaram o exame dessa questão, ao mesmo tempo em que sustenta o caráter real dessa garantia, só reconhece a sua validade quando se tratar de imposto que não seja de competência impositiva da entidade contratante do crédito público. Esse posicionamento doutrinário parte do pressuposto de que vedação constitucional circunscreve-se à vinculação tão só dos impostos constitucionalmente outorgados a cada entidade política. Essa assertiva teria amparo lógico no princípio da indelegabilidade da competência impositiva, que resulta da discriminação constitucional de impostos. As verbas oriundas de transferências do produto de arrecadação de impostos por outras entidades políticas não estariam abrangidas pela proibição constitucional.
Veja-se o asseverado no parecer dado por Keila Camargo Pinheiro Alves, respondendo a uma consulta formulda por uma Câmara Municipal:
“Nesse sentido a inserção do tema na conformidade do art. 167, IV, da Lei Maior, cuja exegese conduz à noção de ser defeso, a qualquer das unidades federadas, vincular a receita tão-só dos impostos que lhes forem constitucionalmente designados, ou seja, de seus próprios impostos. A assertiva procede à medida que ao estabelecer uma regra de conduta proibitiva, ressalva o dispositivo três exceções, a saber:
1 – repartição do produto da arrecadação de impostos federais e estaduais aos Municípios (art. 158) e dos impostos federais aos Estados, Distrito Federal e Municípios, na proporção e para os fundos que especifica (art. 159);
2 – aplicação da receita de impostos na proporção determinada;
3 – prestação de garantias às operações de crédito por antecipação a receita para atender insuficiências de caixa (cf. art. 165, § 8º, da CF e art. 7º, III, da Lei nº 4.320/64).
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Não se diga, tampouco, propiciar o procedimento apreensão de recursos de bens públicos pelo particular quando de sua insatisfação pelo Poder Público. Certo é que os bens públicos são impenhoráveis, imprescritíveis e indisponíveis, o que, porém, não ocorre na hipótese sub studio, haja vista tratar-se de garantia real de crédito, ou seja, direito real sobre direitos; sobre bens incorpóreos já que a caução de títulos importa na transmissão da posse do documento em que o crédito está materializado e, no penhor de crédito, a transferência do direito se cumpre, como na cessão” (Boletim de Direito Municipal, NDJ, março/98, p. 197-198).
No mesmo diapasão o parecer ofertado por Eunice Costa que respondeu a uma consulta formulada por determinada Prefeitura:
“A preocupação da consulente, neste aspecto, prende-se, certamente, à vedação de vinculação de receita prescrita no art. 167, inc. IV, da Constituição Federal. Entretanto, tal dispositivo refere-se expressamente a uma espécie de receita do Município, qual seja, a proveniente de impostos, isto é, aqueles cuja competência para exigí-los for outrogada ao Município. Não alcança, portanto, as chamadas receitas transferidas, onde se incluem as cotas de ICMS repassadas do Estado ao Município” (Boletim de Direito Municipal, NDJ, agosto/97, p. 458).
Se procedentes fossem as argumentações acima, data maxima venia, ficaria sem sentido algum o disposto no § 4º, do art. 167 da CF, retro transcrito, que ressalva da proibição de vincular tanto as receitas de impostos próprios, arts. 155 e 156 da CF, como também, dos recursos financeiros transferidos na forma dos arts. 157, 158 e 159 .
Como se vê, por aquele dispositivo o Município pode vincular tanto o produto de arrecadação de impostos de sua competência impositiva, quanto os recursos financeiros que lhe são transferidos por outras entidades políticas. Logo, está claro que a Constituição Federal, para efeito de vinculação não distingue os impostos próprios das verbas a que fazem jus Estados e Municípios, por participação nos fundos formados por produtos de arrecadação do IPI e do imposto sobre a renda (art. 159, I e II da CF). Aliás, há um equívoco muito grande em confundir recursos provenientes de fundos com recursos provenientes de impostos de receitas partilhadas, como o ITR, o IPVA e o ICMS (art. 158, II, III e IV da CF). Na primeira hipótese, a entidade contemplada tem a mera expectativa de receber o que lhe cabe, segundo os critérios estabelecidos no art. 159, incisos e parágrafos da Constituição Federal, como se verifica da expressão a União entregará. No segundo caso, as receitas pertencem à entidade contemplada, nos limites dos percentuais constitucionalmente previstos, o que se pode constatar pela expressão pertencem aos. No imposto de receita partilhada há, necessariamente, mais de um titular, pelo que cabe à entidade contemplada com o poder impositivo restituir e não repassar a parcela pertencente à outra entidade política. O imposto já nasce, por expressa determinação do Texto Magno, com dois titulares no que tange ao produto de sua arrecadação.
O fato de o Estado membro deter a competência tributária em relação ao ICMS não lhe confere superioridade hierárquica em relação ao Município no que tange à participação de cada entidade no produto de arrecadação desse imposto. A Carta Política já partilhou o produto de arrecadação desse imposto na proporção de 75% para o Estado membro, titular da competência impositiva, e 25% para os Municípios, prescrevendo no parágrafo único do art. 158 os critérios para creditar as parcelas cabentes às comunas. Consoante inciso I desse parágrafo três quartos, no mínimo, devem ser creditados na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios, vale dizer, no mínimo, três quartos pertencem ao Município em cujo território ocorreu o fato gerador do ICMS. Pelo inciso II do mesmo parágrafo cada Estado membro tem a faculdade, de até um quarto, estabelecer critério próprio para creditar a parcela pertencente ao Município. Normalmente esse critério envolve considerações quanto ao número de habitantes, à área do Município e ao quantum da arrecadação de impostos de sua competência. Em relação aos três quartos, no mínimo, cabe ao Estado membro curvar-se à determinação da Constituição respeitando o critério aí previsto. A Lei paulista de nº 9.332/95, que estabeleceu critério diverso em relação ao ICMS gerado por usinas hidroelétricas, permitindo a divisão equitativa do produto do imposto arrecadado entre os Municípios envolvidos na geração e distribuição de energia elétrica, teve a sua eficácia suspensa através de medida liminar concedida pelo STF, nos autos da Adin nº 1423/SP, proposta pelo Procurador-Geral da República, tudo conforme decisão publicada no DJ de 22/11/96, p. 46.684.
Resumindo, existem três modalidades distintas de participação dos Estados, DF e Municípios na receita tributária da União e dos Estados. A primeira é a participação direta dos Estados, DF e Municípios no produto da arrecadação do imposto sobre a renda, incidente na fonte sobre rendimentos pagos pela entidade beneficiada ou suas autarquias e fundações (arts. 151,I e 158,I da CF). A segunda é a participação no produto de impostos de receita partilhada de que cuidamos linhas atrás (arts. 157, II e 158, II, III e IV da CF). E a terceira modalidade é a participação nos fundos. Nesta última modalidade, a entidade beneficiada tem mera expectativa de receber. Nas duas primeiras modalidades as receitas pertencem às entidades contempladas por expressa disposição constitucional. Não cabe falar em repasse pelas entidades que detêm o poder impositivo, pois as receitas não lhes pertencem por inteiro.
Dessa forma, não bastasse a expressa disposição do § 4o do art. 165 da CF, rui por terra a tese da vedação de vinculação restrita aos impostos de competência impositiva da entidade política, contratante de operação creditícia. Outrossim, nos termos do § 1o do art. 11 da Lei nº 4.320/64 (Normas Gerais de Direito Financeiro) ingressa no rol de receitas correntes todas as receitas tributárias, ainda que provenientes de recursos financeiros transferidos por outras pessoas de direito público interno. Daí porque os 25% do produto da arrecadação do ICMS é receita tributária municipal, também, nos termos da Lei nº 4.320/64, de aplicação no âmbito nacional (art. 165, § 9o da CF). Logo, a distinção que a doutrina costuma fazer para sustentar a validade da vinculação do ICMS pelos Municípios não procede. Na verdade, o que se tem que discutir é o alcance e conteúdo da garantia referida no texto constitucional, e não a possibilidade de vinculação do produto de arrecadação do imposto para operações de crédito.
Qualquer que seja a regra de interpretação utilizada ela não pode implicar contrariedade literal do texto interpretando. Que o Município pode contratar operação de crédito, por antecipação de receita, mediante oferecimento de garantias está expresso tanto na parte final do inciso IV do art. 167, como no § 4o do art. 167 da CF. Logo, não se discute essa faculdade conferida ao Município. O que se discute é a natureza real dessa garantia possibilitando ao credor, na hipótese de inadimplemento, a cobrança do crédito tributário apenhado. Pergunta-se: pode o Poder Público caucionar seu débito, oferecendo ao mutuante, a título de garantia, as receitas de impostos previstas na lei orçamentária anual? Pode, na hipótese de inadimplemento do devedor, o credor promover a excussão dessa garantia? Parece não haver dúvida quanto a impenhorabilidade do bem público, quer na doutrina quer na jurisprudência. E se os bens públicos (imóveis, móveis, rendas, direitos creditórios etc.) são impenhoráveis, por certo, não se prestam à execução direta, consectário lógico do vínculo de natureza real, que se estabelece entra a coisa e a ação do credor hipotecário, pignoratício ou anticrético. Por isso sustenta o sempre festejado Hely Lopes Meirelles:
“Desde que a Constituição da República retirou a possibilidade de penhora de bens da Fazenda Pública Federal, Estadual e Municipal, retirou, também, a possibilidade de oneração de tais bens, uma vez que a execução de toda garantia real principia pela penhora, na ação executiva correspondente, para a subsequente satisfação da dívida, mediante praceamento ou adjudicação do bem dado em garantia. Uma garantia real que não contasse com a execução direta da coisa onerada, deixaria de satisfazer aos seus fins, desgarantindo o direito do credor. Não seria de modo algum garantia real” (Direito Administrativo Brasileiro, 7a edição; São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 503).
Por outro lado, não se compreende a tese sustentada por certos setores da doutrina no sentido de que a proibição de ofertar a garantia pignoratícia de receitas tributárias feriria a proclamada autonomia financeira do Município. É exatamente o contrário. A autonomia municipal é assegurada pela outorga de poder tributário ao Município. Esse poder-dever é outorgado pela Constituição, para que cada entidade política cumpra a sua missão constitucional. Se a Constituição comete uma missão à União, Estados e Municípios, é evidente que tem que proporcionar a essas entidades, para o cumprimento dessa tarefa, os instrumentos necessários, dentre os quais os instrumentos financeiros, o poder tributário. Não é por outra razão que o princípio da discriminação de rendas outorgou a cada uma dessas entidades políticas o poder de instituir e arrecadar privativamente os impostos, respectivamente, nos arts. 153, 155 e 156 – União, Estados e Municípios. Logo, esse poder de tributar, esse poder-dever é um instrumento, é um meio para realização do fim do Estado, que é o de alcançar o bem comum, um objetivo social comum. Tem portanto uma natureza instrumental. Assim, os tributos se inserem na atividade-meio do Estado. E esse poder tributário abarca obviamente o poder de instituir por lei, o poder de fiscalizar e o poder de arrecadar com exclusividade os tributos. Daí porque o art. 7o do Código Tributário veda a delegação de competência tributária. Quando os bancos recebem a incumbência de arrecadar o tributo, no caso, não estaria havendo uma delegação de competência, porque os guichês bancários estariam funcionando como uma mera extensão dos cofres públicos para receber o crédito tributário, pago voluntariamente pelos contribuintes. No imposto de receita partilhada, como o ICMS, cabe ao Município, sob pena de responsabilidade política de seu governante, diligenciar a arrecadação da parte que lhe cabe (25%) exigindo do respectivo Estado, se for o caso, judicialmente, a restituição daquilo que foi arrecadado e incorporado a mais pela entidade política regional.
Dada essa característica de poder-dever não vemos como possa confundir a relação desse poder tributário com mera relação de propriedade, como é o caso de oferecimento de garantia real. O imposto existe para a garantia da sociedade e não para a garantia do credor. O crédito tributário mereceu um tratamento inteiramente regulado pelo Direito Público desde a sua origem, com a ocorrência do fato gerador, sua constituição pelo instituto do lançamento até a sua extinção pelo pagamento e demais modalidades previstas no art. 156 do Código Tributário Nacional. É cercado de privilégios e garantias especiais, ensejando a instauração de uma relação jurídica de Direito Público, quer no campo material, quer no campo processual, onde o sujeito ativo é sempre a Fazenda, que pode desencadear o processo de execução fiscal pelo rito privilegiado. Daí o caráter indisponível do crédito tributário apregoado pela boa doutrina vigorante. Aliás, o art. 141 do CTN reafirma a indisponibilidade desse crédito quando diz expressamente que o “crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional, na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias”.
Dessa forma, não vemos como possa validamente dar em penhor o crédito tributário ao credor particular, que ficaria sub-rogado em prerrogativas próprias do Poder Público, que não pode abrir mão do poder-dever de arrecadar ou receber os tributos que lhe pertencem. Oferecê-los em garantia seria inverter e subverter os princípios concernentes à garantia do crédito tributário. Qualquer pagamento de débito do Poder Público há de ser feita de conformidade com lei orçamentária anual em curso. A quitação da obrigação de dar, a cargo do Estado, só pode ocorrer mediante pagamento da despesa legalmente autorizada, ou seja, através da respectiva dotação prevista na lei de meios. Logo, a realização da receita pública, no caso, tributária, é compulsória, sob pena de caracterização do crime de responsabilidade política do agente competente (art. 85, VI da CF).
Permitir a execução direta do crédito tributário apenhado seria anular em bloco não só os preceitos concernentes à realização da receita e ao pagamento das despesas, previstos na Lei nº 4320/64, como também, contrariar as providências arroladas no art. 100 e parágrafos da CF que regulam, de forma específica, a satisfação de créditos contra a Fazenda Pública. A necessidade de preservar a dignidade do Poder Público, que não pode se sujeitar à penhora de seus bens, fez com que o legislador constituinte engendrasse o mecanismo de processamento dos precatórios judiciais, permitindo à entidade política devedora tempo suficiente para incluir o montante do crédito requisitado no orçamento do exercício seguinte. Sem a possibilidade dessa visão prognóstica, por certo, o caos se instauraria na Administração.
3. Posição da jurisprudência
Quando, ainda, estávamos na Consultoria Jurídica do Município a Prefeitura de São Paulo levou ao Judiciário a solução do impasse provocado pela sua credora, Caixa Econômica Estadual que, munido de procuração bastante, sacava direta e periodicamente, junto ao Banco do Estado de São Paulo, as cotas do ICMS dadas em garantia para a amortização do empréstimo público. Inconformada com a autocobrança que já vinha prejudicando o plano de ação governamental a Municipalidade revogou a procuração notificando o Banespa desse fato. Como os saques continuaram foi impetrado o mandado de segurança contra o Presidente do Banco logrando obter a medida liminar que impediu a sangria mensal dos cofres públicos. Por razões processuais houve extinção do processo e cassação da liminar. Em grau de apelação a sentença foi reformada para que o juiz apreciasse o mérito, visto que a Corte não vislumbrou a alegada falha na representação processual (Ap. civ. nº 135.447-1-SP-8a Câmara do Tribunal de Justiça, Relator Des. Jorge Almeida). No curso do processo houve acordo, culminando com o total pagamento pela Fazenda Estadual dos créditos tributários indevidamente compensados por conta do débito da impetrante junto à Caixa Econômica. Em outra oportunidade a mesma 8a Câmara decretou a rescisão parcial do contrato de execução de obra pública para excluir a cláusula que vinculava as receitas do ICMS para a garantia do pagamento (Ap. Civ. nº 168.220-1, Rel. Des. Regis de Oliveira). Também o E. 1o TACIVIL manteve a liminar concedida em medida cautelar preventiva, requerida pela Municipalidade de Araçariguama para suspender os poderes outorgados ao Banco-credor (Banespa) para recebimento do ICMS em pagamento a mútuo decorrente de contrato firmado entre as partes (AI nº 722.535-3, Rel. Juiz Antonio de Pádua Ferraz Nogueira. A íntegra desse v. acórdão acha-se estampado no Boletim de Direito Municipal, NDJ, julho/97, p. 412). Em sentido contrário, o recente acórdão proferido, em 9-10-97, pelo E. 1o TACIVIL julgando constitucionais e legais as cláusulas contratuais que permitiam ao credor a retenção do numerário referente ao ICMS, dado em garantia de operação de crédito, por antecipação de receita, pelo Município de Mauá (Ap. Civ. nº 715.815-8 da 11a Câmara Extraordinária “A”, Relator Juiz Silveira Paulilo).
Como se vê na jurisprudência, também, a matéria não está pacificada. Porém, podemos afirmar que a tese da possibilidade jurídica de vinculação de receitas, notadamente, na modalidade de antecipação de receitas do ICMS, intensamente praticada pelas comunas, repousa mais na interpretação literal do texto do art. 167, IV da CF e do § 4o desse artigo.
4. Verdadeira natureza jurídica da vinculação
A essa altura é de se indagar: se a interpretação literal do texto constitucional não pode subsistir qual seria, então, a natureza jurídica da garantia aí referida? A vinculação, ao nosso ver, nada tem a ver com os institutos da garantia real, regulados pelo Código Civil. Não possibilita ao credor, na hipótese de inadimplemento do Poder Público, a execução da garantia. Essa vinculação surte efeitos exclusivamente no âmbito do Direito Financeiro. A Carta Magna facultou à entidade política promover despesas por conta das receitas estimadas de impostos, obtendo os respectivos recursos por meio de operações de crédito, vinculando as receitas tributárias futuras. A vinculação tem o sentido de preservar o equilíbrio entre o montante do empréstimo público (dívida pública) e o valor da receita antecipada, evitando-se situações de desequilíbrio orçamentário. Por isso, a entidade política mutuante é obrigada a manter, permanentemente, na lei orçamentária anual dotação específica para garantia do pagamento da dívida, enquanto esta perdurar. Tem, também, o sentido de inspirar credibilidade e confiança ao mutuante, que ficará sabendo de antemão, que o mutuário estará simplesmente suprindo deficiência momentânea de caixa, antecipando a receita, que nem sempre ocorre com a mesma intensidade nos doze meses do exercício.
Assim, essas garantias dadas pelos diversos Municípios não são nulas. Só não comportam excussão pelo credor, na hipótese de inadimplemento do devedor.
5. Conclusões
As entidades políticas estão autorizadas, pela Carta Política, a contratar operações de créditos, na modalidade de antecipação de receitas orçamentárias, mediante vinculação do produto de arrecadação de impostos, quer o de sua competência impositiva, quer o daqueles partilhados.
Essa vinculação não representa uma garantia real para a instituição financeira credora, que não poderá excuti-la na hipótese de inadimplemento do poder público. Receitas públicas existem para a garantia da sociedade e não do credor. Representam instrumentos para o Estado, no desempenho de sua missão constitucional, cumprir a finalidade última de promover o bem comum.
* Advogado tributarista, Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo
Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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