Direito Internacional

O que pretende Hugo Chávez?

O que pretende Hugo Chávez?

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

A melhor — quase única — justificativa da democracia está na garantia de o governante ser forçado, rotineiramente, a deixar o poder. Findo o mandato, ou quando age de forma totalmente insana, babando na camisa, olhar alucinado, uivando de quatro para a lua. Em caso de loucura, é preciso, porém, que esta se apresente incontroversa. Rasgando cédulas de euros, por exemplo; ou dizendo em que banco estrangeiro está o dinheiro, porque qualquer decisão política importante, mesmo absurda, pode ser estrondosamente apoiada — com “argumentos irrefutáveis” — por aqueles por ela especialmente beneficiados. Aquilo que nos beneficia economicamente jamais está errado. É impressionante a coincidência… A propaganda bem remunerada, cada vez mais inteligente — porque veiculada não em anúncios mas em colunas de jornais e revistas —, presume que o povão é fácil de enganar, ou pelo menos de ficar na dúvida. E quem está indeciso não pega em armas para derrubar governo.

 

Esse revezamento no poder é uma das poucas características que justificam eleições e parlamentos. Um governante sábio, justo, incorruptível, avesso ao nepotismo, enérgico, cortês (?!), independente, caridoso e dotado de senso prático, é — melhor dizer “seria”, se pudesse existir… — capaz de operar maravilhas. “Consertaria” um país em três tempos. Não perderia tempo negociando apoios com seus adversários políticos, ansiosos na busca da própria felicidade, nem sempre compatível com os interesses gerais do país. Mesmo a Justiça, com sua “tola” e lerda mania de “contraditório”, pode ser silenciada pela força. Basta o governante baixar um decreto demitindo os juízes independentes, substituindo-os por seus amigos, submissos e ansiosos por um bom cargo. Todo ser humano — assim como todos os seres vivos, dos vírus às baleias — persegue a própria felicidade. Até mesmo assaltantes, estelionatários e estupradores buscam a felicidade, embora com métodos incompatíveis com a felicidade de suas indefesas vítimas.

 

Pelo que me lembro, quase todos os ditadores, mais ou menos cruéis, saíram do poder sob chuvas de chumbo, granizo de processos criminais ou até mesmo com a corda no pescoço. Não encontraram sossego — sempre relativo… — a não ser refugiados em outros países, protegidos por seguranças armados e fortunas desviadas de recursos públicos. Defendem-se argumentando que não teriam como viver decentemente, já idosos, em outros países. Empresas de segurança são dispendiosas e contam-se aos milhares os vingativos parentes das vítimas da ditadura deposta.

 

Pelo menos pensando na própria velhice tranqüila, deveriam aqueles governantes incendiados pelo desejo — até sincero — de moldar, sozinhos, a ferro e fogo, seu país, aceitar o revezamento no poder, resignando-se com a enervante lentidão com que se fazem as coisas na democracia. Esta caminha devagar, raramente com grande eficiência, mas pelo menos caminha. Sem os sustos e grandes retrocessos que neutralizam as melhorias rápidas mas fugazes impostas pelos ditadores. Geralmente, na contabilidade política final, os prejuízos superam, de longe, os benefícios oriundos dos progressos rápidos impostos pela força, violando direitos.

 

Esta longa introdução vem a propósito do que faz Hugo Chávez, agora, em seu país. Beneficiado pela sorte de a Venezuela dispor de imensas reservas de gás e petróleo o entusiasmado e liberal presenteador presidente decidiu ingressar francamente no caminho da ditadura. Confia no apoio popular, mas apoio popular momentâneo não basta. É preciso procurar alicerces institucionais duradouros. Uma esteira governamental bem lubrificada em que os governantes entram e saem sem maiores traumas, cada um fazendo o que lhe foi possível enquanto no cargo.Deixando o poder podem se dar ao luxo de fazer palestras sem medo de agressões.

 

O povo — eco dos indivíduos que o compõe —, também é capaz de ingratidão quando as coisas vão mal e o bolso começa a doer. Com as recentes planos de moldar a constituição a seus desejos de perpetuação no poder, Chávez está decretando o próprio exílio forçado, daqui a alguns anos. Se não morrer antes — algo que não desejo, porque, no fundo, não é um sujeito propriamente mau — um dia, derrotado, se olhará no espelho do hotel, em que se refugiou, no estrangeiro, e perguntará, perplexo: “Onde foi que falhei?” Falhou por não ver as coisas com a clareza indispensável a um governante dos tempos atuais, exigentes de enorme massa de informações a serem digeridas, de preferência por ele mesmo.

 

Ditadores são centralizadores. Não podem conhecer tudo. Presidentes democratas também não, mas quando estes, democratas, escolhem auxiliares que erram a mídia cai em cima, exigindo cabeças. Já na ditadura, a má-escolha permanece intocada porque poucos se atrevem a censurar abertamente a má-escolha do chefe infalível. Alianças vão se formando nos círculos mais próximos do poder, mantendo o ditador mal informado. Nem mesmo os jornais o esclarece, porque censurados.

 

Jornais recentes, selecionando tópicos de pronunciamentos, dizem que Chávez pretende “desmontar progressivamente” o conceito de propriedade privada no país, “pois esta não tem lugar dentro de sua revolução socialista do século 21”. Pretende, pelo visto, ser um Fidel Castro nº 2, tão logo faleça o nº 1.

 

Na campanha para o referendo de 2 de novembro de 2007, visando a reforma constitucional, o comando da campanha vai organizar “batalhões de revolucionários” que “sairão às ruas para explicar o funcionamento do referendo e motivar os eleitores a votarem” ( jornal “ O Estado de S. Paulo”, de 11 de outubro de 2007, pág. A12). Além disso, Chávez quer alterar a Constituição para permitir o confisco da propriedade privada, ”quando afetar os direitos de terceiros ou da sociedade”, o que é muito vaga e permitirá todo tipo de abuso.

 

Essa história de mandar para as ruas “batalhões de revolucionários” para “explicar” o funcionamento do referendo e “motivar” os eleitores provavelmente redundará em truculência. A explicação e a motivação serão, claro, na “base da porrada”. Voluntários para esse tipo de tarefa geralmente têm temperamento agressivo. Além do mais, é gente ressentida, com o rancor fermentado pela falta de oportunidades. Não serão delicados juristas que farão esse “convencimento popular”. Gente tranqüila, em paz com a vida, não se oferece para esse tipo de trabalho, que lembra as “camisas negras” do tempo do nazismo. Quem disser que não vai apoiar as mudanças pretendidas por Chávez provavelmente vai ser hostilizada. Espero estar enganado. Veremos na imprensa internacional, no dia seguinte ao referendo, se este decorreu em céu azul ou se essa cor relaciona-se com hematomas.

 

Não há nada de errado em Chávez ser socialista. É até algo que o dignifica, porque o socialismo nada mais é que um vago porém sincero anseio por justiça e igualdade. No entanto, como os seres humanos são naturalmente egoístas, muito diferenciados — em ambições e capacidades —, inquietos e preocupados primordialmente com eles mesmos e suas famílias, não é possível moldar facilmente uma sociedade em que todos pensem, primeiramente, no bem comum, e secundariamente no bem individual. Quando e onde se tentou, em décadas não distantes, impor, a ferro e fogo, governos socialistas, o resultado foi traumático, redundando em pobreza, “gulags” e prisões cubanas. O bom, possível socialismo, é aquele conquistado homeopaticamente na Escandinávia, de população reduzida e naturalmente ordeira. Nesses países, o regime permite que floresça até estimula o espírito empreendedor capitalista, capaz de gerar riqueza. Produzida esta, recolhe, com leis cuidadosamente debatidas, boa fatia dessa riqueza para ajudar os mais necessitados. Isso porque sempre haverá necessitados ( velhos, crianças, doentes, viciados, naturalmente débeis, etc). Sábia foi também a China, que flexibilizou os dois sistemas, uma lição para o que ocorreu na extinta União Soviética que, de um dia para o outro, desorganizou tudo e gerou, involuntariamente, um estilo mafioso de enriquecer que até hoje tem dado dor de cabeça para o governo russo e seus ex-satélites. A China tem ser revelado tão sábia nessa acomodação de regimes — comunismo e capitalismo — que o estado tem comprado ações de grandes corporações, agindo como um investidor privado. Reconhecendo que o estado não é bom empresário, usa parte de sua riqueza, oriunda de tributos, para comprar títulos privados que lhe renderão dividendos muito superiores àqueles produzidos por empresas administradas por funcionários públicos.

 

Um detalhe curioso, ligado ao fenômeno Chávez , está na série de visitas que ele vem recebendo de atores de cinema americanos: Harry Belafonte, Kevin Spacey, Sean Penn, e Danny Glove. Todos, mais ou menos solidários com o venezuelano, decepcionados — com toda razão — com o presidente, George W. Bush.

 

Danny Glove tem seus motivos particulares para ser agradecido porque Chávez o ajudou financeiramente em certo empreendimento que necessitava de um apoio não encontrado em seus país.

 

Quanto aos demais artistas acima mencionados, tudo indica que suas visitas ao presidente venezuelano devem-se ao desejo de aparecer na mídia com ares de “intelectual”. Querem provar que são muito mais que meros “papagaios” memorizadores de diálogos e impressionantes simuladores de emoções — nisso se resume a atividade dos artistas de cinema. Presumo que, sabendo agora das últimas declarações “boliviarianas”, de abolição da propriedade privada, essas estrelas tenham mais cautelas antes de pegar o avião. Um outro artista que parece gostar de ser cabeça pensante mundial é Richard Gere. Vamos ver se ele, também, vai visitar Chávez.

 

Antes de encerrar, informo que minhas propriedades privadas são modestíssimas. Minha crítica às intenções de Chávez prende-se ao fato de que falar, hoje, em abolição da propriedade privada é uma tolice política monumental que, a médio prazo, muito prejudicará o sofrido povo venezuelano. Principalmente, e paradoxalmente, os mais necessitados. Os ricos sempre sabem como se defender. Os pobres precisam da mão do governo. E se este fracassar — porque escolheu alvos estapafúrdios — os pobres da Venezuela continuarão comendo os restos de sempre. Como diz conhecido refrão, a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. O que pretende Hugo Chávez?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/oqpret/ Acesso em: 08 out. 2024