Direito Constitucional

Direito Da Mulher: Autorizar Aborto é Preservar o Princípio da Vida e da Dignidade da Pessoa Humana

Direito Da Mulher: Autorizar Aborto é Preservar o Princípio da Vida e da Dignidade da Pessoa Humana

 

 

Antonio de Assis Nogueira Júnior *

 

 

                     Ao elaborar este  estudo tive por objetivo primordial destacar as dores e os sofrimentos da  mulher: vítima histórica  do poder dos dogmas religiosos  e  da prepotência dos dogmas jurídicos. O médico que detém de conhecimentos médicos, tecnológicos e científicos,  capacitado, portanto, para curar, minorar a dor e até  de salvar vidas humanas,  não pode ser punido na antecipação do parto  de feto anencefálico.

 

                     O feto  ainda não existe, pois não está no mundo. O seu único “mundo”, ou lugar,  é o ventre materno.  Os dogmáticos religiosos e  os do direito posto consideram o feto mais importante que a saúde física, mental e social da mulher. O feto tem apenas a  expectativa de tornar-se  pessoa e assim adquirir personalidade jurídica se nascer com vida viável; isto é, a de  iniciar a existência  que se consubstancia no estar no-e-com o mundo.

 

                    Por outro lado, o feto anencefálico é possuidor de deformação congênita irreversível, ou seja, inviável para a vida e para a existência.  A antecipação do parto ainda não legalizado  constitui do  momento oportuno para  o magistrado criar a norma do caso concreto para fazer prevalecer o  Direito,   porque  não há  regra jurídica que  obrigue a mulher (preferencialmente a pobre) – permanente vítima de nossas leis obsoletas –  abrigar no ventre  (a  monstruosidade de)  um ser anencéfalo.

 

                    Magistrados sensíveis à realidade da vida têm autorizados a  interrupção da gravidez,  quando confirmado por conclusivos laudos médicos, de enfermidade  incurável  ou  deformidade anatômica  e  estrutural de feto sem nenhuma possibilidade de  vida viável após o parto.  Enquanto seres racionais,  não podemos nunca  duvidar da razão, mesmo quando se constata  o inusitado e a irracionalidade de decisões morais e judiciais que dizem respeito à  saúde  de  todas a mulheres.  Como já enfatizou Fabio Konder Comparato: “estamos todos nas mãos dos nossos Juízes”.  Portanto, para o bem  ou  para o  mal.

 

                     Por fim,  o  presente trabalho representa tão-somente o meu ponto de vista à questão do aborto terapêutico (antecipação do parto de feto anencéfalo)  em que as  mulheres pobres estão entre  as  principais  e  indefesas  vítimas  do sistema legal  com  suas  interpretações divorciadas da  realidade   e   submetidas  também  aos  seculares dogmas religiosos. Contudo,  os dogmas jurídicos podem  ser  mutáveis   quando transformados em problemas,  pois  o  Direito é dinâmico!

                              

    

 

                  A  interpretação  literal   do  nosso  arcaico  Código Penal  no  concernente  ao   aborto  mostra-se  insuficiente  para  compreender  a  realidade  e  a  violência  perpetrada  pelo Estado contra a  única  vítima  desta  tirania  exegética:  a  mulher  pobre. Mãe da Humanidade,  a mulher pobre é punida covardemente  pela inquisição dogmática  dos operadores do Direito, condenando-a  abrigar no ventre  (a monstruosidade de) um ser  anencéfalo.  Ela tem de ocupar um lugar ao sol, dispor de peso e voz na sociedade civil.  Gerando a morte ao invés da vida, não há consolo  porque a  história da humanidade tem sido até o momento a  história do próprio sistema capitalista.

 

                     É sabido que neste sistema os princípios são humanos, porém a realidade é chancelada nas diversas formas de  violências e nas diferentes modalidades de fraudes. A ordem capitalista tem mostrado que não é uma fase transitória do processo histórico, mas a  forma absoluta e definitiva da produção social. O nosso sistema capitalista é tosco e brutal, pois não oferece à maioria dos cidadãos um padrão de vida decente, um mínimo de segurança e de igualdade perante a lei. O Direito posto e imposto à coletividade tem a sua origem na produção econômica.

 

                   A maior vítima é, sem dúvida, a  mulher pobre, pois  é mantida na ignorância  e  é dominada pelo poder coercitivo de normas jurídicas caducas e injustas que não buscam a pacificação social, mediante hermenêutica favorável à dor e ao intenso sofrimento dela.  Os seus apelos não são  ouvidos  nem fazem eco na consciência dos privilegiados e dos  poderosos.

 

                  A escolha,  em se tratando de aborto em sentido amplo,  será sempre da competência exclusiva da mulher, pois é  dona do seu corpo e da inalienável liberdade de agir, não obstante sofrer da  interferência abusiva dos dogmas jurídicos e religiosos,  os  quais constituem em verdadeiro abuso de direito  tal  invasão em sua  intimidade e estrita privacidade.    Por outro lado,  o  sistema jurídico e os seus operadores ainda não conseguiram superar os dogmas e  as contradições, cujas decisões judiciais são ainda muito prejudiciais  à saúde  da  mulher e em  especial  a  da  mulher  pobre.

 

                Assim se manifestou, sem rodeios, o Jornalista e Articulista da Revista Veja,   André Petry: “….  o  STF  deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava  mulher alguma a  interromper a gravidez de um feto sem cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de  gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão”  (1)

 

                     Uma das vozes  mais poderosas que impera no social é a dos formadores de opiniões,  verdadeiros  dominadores das mentes e corações do público, em que a mulher  pobre aceita passivamente, talvez por estar  em avançado estado de alienação,  toda uma situação que lhe é tremendamente prejudicial. Na realidade, o Direito é uma superestrutura erigida sobre a base de relações econômicas e de poder que tem o Estado como instrumento de dominação. Inexiste  neutralidade do Direito posto e imposto nas leis, pois as relações de produção são regulamentadas sempre no interesse da classe dominante  cujos detentores do poder utilizam da ideologia jurídica como instrumento de persuasão. Atualmente, dada às correlações de forças, é sabido que a mulher  pobre  continuará sendo ainda a maior perdedora,  no sentido  de exigir que a ideologia jurídica dominante seja interpretada de maneira favorável à sua situação.  É preciso  que os  operadores do Direito comprometidos com  a felicidade e a dignidade de  todas as mulheres,  e  em  especial da  indefesa  mulher  pobre,    encontrem  formas de enfrentar a  prepotência dos  dogmas jurídicos.

 

                     Na  ideologia do sistema capitalista estão  insculpidos princípios humanísticos,    explicitadas na  nossa  Lei Maior: Constituição Federal.  Porém,  a  realidade brasileira é constituída basicamente de mulheres pobres  com suas  crianças, cujo incipiente  sistema  capitalista  é  paradoxalmente infame  e  perverso,  tal como  se nota na limitada democracia.  Até quando o  Brasil  continuará sendo o mais desigual entre os desiguais?  E  também o mais injusto entre os injustos?

 

                       Ponto de partida interessante para começar a vencer  barreiras somente  ocorrerá quando  o poder dos  operadores do Direito estiver  comprometido na solução jurídica e judicial dos  problemas brasileiros  e  quiserem  praticar a máxima do progressista  jusfilósofo  Roberto Lyra Filho: Para um Direito sem Dogmas.  E sem  esquecer das  análises e ensinamentos do nosso  maior  cientista social do século XX: Florestan Fernandes.  Mestre dos mestres, foi considerado pelo historiador  Eric J. Hobsbawm um dos cinco maiores cientistas sociais e intérpretes de nossa época (2).  Em suma, o  Direito é então absorvido na própria lei.  Vitória do positivismo jurídico que tem na dogmática a sua razão de ser.

 

                       Asseverou Roberto Lyra Filho,  com a competência  de profundo conhecedor desta realidade,  que  “o dogma, afinal, atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-lo  ou a ele propor qualquer alternativa”  (3).  Por outras palavras,  é  o  dogma  a  verdade absoluta,  aceita  às cegas e sem crítica, beneficiando sempre  a classe dominante (do momento).  As normas jurídicas estatais são exemplos acabados  do dogmatismo  ao defenderem o caduco,  pois combatem  tudo  que  é  novo  e  de  essência  progressista,  sobretudo  na  ilegalidade  inútil do  aborto  “lato sensu”,  cujas  vítimas  preferenciais são, indubitavelmente, as  mulheres  pobres.

 

                        Na Religião Cristã  sobressai o  catolicismo  com os seus dogmas  como extensão da palavra de Deus,  que é tão-somente uma idéia  (Adendo: Ressaltou Camus  que: “Se Deus existe, tudo depende  dele e nós nada podemos fazer  contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Tanto para Kirilov como para Nietzsche matarmos Deus (crime metafísico)    é tornarmo-nos nós  próprios Deus;  enfim é tornar-se Deus – ou seja,  é realizar  nesta Terra  a vida eterna de que fala o Evangelho…” …  Por outro lado,  “O homem não fez mais que inventar Deus  para não se matar. Assim se resume a história universal até este momento” –  O Mito de Sísifo, p. 122/123).   A teologia é feita sistematicamente sempre a  partir das  massas  oprimidas  e  nunca a partir das elites do poder.

 

                        As Religiões  universais são insidiosas para com as massas; buscam  seres obedientes que serão domesticados como  fiéis e uma vez acostumados a essa experiência repetida vezes  serão incapazes de  renunciar a abstração de um Deus todo poderoso.  Assim sendo,  na  certeza de que  o  feto é anencéfalo  o teólogo e o positivista jurídico,  ambos  presos na camisa-de-força dos dogmas,  procuram as fontes da vida numa  autópsia!  Todos os anencéfalos, se ainda vegetativamente vivos  no ventre materno,   morrem logo após o parto.

 

                   Não se  vislumbra nos dogmas  nenhuma  perspectiva libertadora nem indícios de transformarem-se   pelo menos culturalmente,  porque todo o Direito  é  arbitrariamente   reduzido  à   norma    jurídica    formalizada    e  em decisão fossilizada (injusta e retrógrada). Ou seja,  para  o positivista o Direito é um saber dos dogmas,  repetidos  à   exaustão.  A  não-autorização  judicial da   antecipação  do parto  é  porque   “alguns   juízes   são   absolutamente   incorruptíveis.  Ninguém  consegue induzi-los a fazer Justiça” (Bertolt Brecht). É em nome da  segurança jurídica que se quer que o juiz proceda maquinalmente como juiz obediente à literalidade da lei,  alheio aos valores do humanismo e  principalmente  à  circunstância da  vida  e   da  existência   das  mulheres  pobres.

 

                     Todavia,  a responsabilidade histórica será a do juiz monocrático  que vai  obrar  a  difícil missão de fazer  progredir o Direito,  adaptando a ordem jurídica posta à evolução  das  circunstâncias  protetoras  da  indefesa mulher pobre.   Se a circunstância é autorizar a interrupção da gravidez em razão da mulher carregar no ventre desde  já um natimorto,   o  magistrado que  assim decidir  estará não só fazendo a justiça do caso concreto mas projetando na  eqüidade a solução de que  o  Juiz deve estar subordinado ao Direito (e não simplesmente ao texto da lei e de  norma jurídica injusta e  anacrônica)  e  à  realidade da vida social. Em ponderação pertinente, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mendes de Farias Mello  assim se  manifestou sobre o tema:  “O Judiciário não pode se fechar em torno de si mesmo, omitindo-se, furtando-se de participar dos destinos da sociedade… A sociedade quer, sim, juízes, e não semideuses  encastelados em torres de marfim… O juiz tem de ser um cidadão atento ao cotidiano da comunidade em que vive, em vez de robô repetidor de leis. Só assim será sensível para proferir decisões sábias”. (4)

 

                   (“Tudo  oscila  com  o  tempo” – Pascal; “ O  meu campo é o tempo” – Goethe; “O inferno não existe. Todos os demônios estão aqui” – Shakespeare)

 

                     Não basta apenas reconhecer  o  paradoxo; é preciso superá-lo.  A  mulher pobre, aprisionada no mundo concentracionário dos homens  e  excluída do  bem-estar social, é submetida a mais esta  violência:  levar  desde já  no  ventre  um natimorto  e  por vários meses até o parto.  Há magistrados que são déspotas; há magistrados  que são indiferentes;  há magistrados que são análgicos.  Ou seja,  desaprenderam a pensar a dor e o sofrimento ínsitos na condição humana.

 

                      A mulher é a mãe da humanidade e é por isso que o humanismo reverencia este ser humano, sabendo que    o  elo  básico de interdependência entre a mulher  e  o  feto.  Após o  diagnóstico da anencefalia,  ela  tem a certeza de que não está gerando vida mas morte,  para não dizer que  é durante toda a gestação do anencéfalo  um  caixão ambulante.  Assim, não ocorrerá o  bem-estar físico, psicológico e social dela,  porque  os  seus  olhos  e   todo   o  sentir   estão voltados para a morte. A vida inviável a deixou mentalmente ferida  e  com ela  o  sentimento de  que  não  será  mãe.

 

                       Os operadores do Direito ainda presos aos dogmas religiosos  costumam repetir com indisfarçável arrogância que  as mulheres estão condicionadas ao sofrimento.  Por quê?  Nos primórdios da  Religião e da Igreja  havia o  consenso, depois transformado em dogma,  que os gritos angustiados das mulheres agradavam a Deus,  um  prazer que não lhe devia ser tirado.  Durante  muito tempo  a  Igreja  proibiu  remédios que aliviassem as  dores do parto  justificando que tal conduta contrariava a vontade de Deus. Enfim, o sofrimento  exclusivo que  hodiernamente está submetida a  mulher  pobre   também  não chega a causar compaixão nem dos Senhores da Igreja  nem  da  maioria dos operadores do Direito  que detêm do poder da função para  concretamente utilizarem  dos dogmas jurídicos em  desfavor da   saúde da mulher: negando peremptoriamente o aborto terapêutico ou de antecipação do parto de fetos portadores de anencefalia   ou  de  outras  síndromes  incuráveis  etc.    

 

                        É verdade banal que deve ser repetida, pois na área da  saúde mental  é  deveras conhecido que uma  gravidez indesejada imposta  pode causar sofrimento em todos os níveis: psicológico, social, econômico, intelectual e espiritual.  Em resumo,  forçar  a mulher,  e   principalmente a  indefesa   mulher pobre,   a  carregar  no ventre um feto sem vida viável até o final da gravidez é uma das mais profundas feridas que podem ser infligidas à sua mente e ao seu corpo.  Não há como mudar o dogma religioso   para fazê-lo aceitar a realidade da vida privada e social das mulheres pobres   e que  são as únicas a sofrerem desnecessariamente. O feto anencéfalo não pode ser mais importante que a  mãe!  Logo,  o  reino cristão não é deste mundo!

 

                  No entanto, resta o paradoxo: ou não somos livres  e  Deus  todo-poderoso  é  responsável pelo mal, ou somos livres e responsáveis  mas Deus não é todo-poderoso.  Logo,  a  circunstância cruel e desumana de levar adiante uma  gravidez indesejada ultrapassa  na  mulher  pobre   a  sua  experiência individual. A quem apelar se  se  trata de feto portador de doença incurável e fatal?  O  Código Penal  comodamente arrola as causas de excludente da criminalidade (Artigo 128 e incisos), não punindo o médico nas hipóteses ali descritas.  Médicos  e  magistrados  não  podem  ficar  indiferentes  ao  destino  das  indefesas  mulheres  pobres.   Médicos sensíveis e humanizados  tudo farão  para  preservar a  saúde física e mental da mulher, isto é,  o  seu  bem-estar pessoal,  familiar e social.

 

                      Magistrados não análgicos nem dogmáticos  autorizarão (sem culpa nem remorso)  a  interrupção da gestação de feto possuidor de malformações congênitas ou com enfermidade incurável.   Assim decidindo, não fazem somente a justiça  inadiável que o caso concreto pede, mas também  homenageiam as suas mães  e as  mulheres  despossuídas,  alienadas,  exploradas e  maltratadas  por  todos  os  dogmas.    O  feto anencéfalo  é  um  ser  desconhecido  que  apenas  sobrevive vegetativamente.  Não tem  consciência nem nunca terá; desconhece o que é dor e sofrimento porque está totalmente amparado no útero, porém o seu destino  é a morte, ou dentro do ventre,   quando  comprometerá a saúde da própria mulher colocando-a em   risco de morte,   ou  logo  após o parto.  Afinal,  os  paradoxos   continuam vigentes: Se Deus não existe, é impossível demonstrá-lo; mas se existe, é um disparate querer demonstrá-lo.

 

                      A diferença entre Deus e o homem reside no pecado. Infelizmente, é a fé religiosa  que também costuma guiar a maioria dos magistrados  no mundo do Direito, misturando os dogmas religiosos  com  o  Direito feito de dogmas.  Neste mundo insensato de absurdos e de  dogmas,  cabe ao magistrado superar estes estados de coisas mediante  tomada de consciência para que transforme  todo dogma em problema.  No fundo de toda problemática jurídica está a terrível  força histórica do capitalismo,  indissoluvelmente  unido  aos  dogmas,  quando  proclama o Deus-Dogma   de sua sobrevivência: o dogma do lucro,  com o  poder real e efetivo de derrogar toda e qualquer lei conforme a sua necessidade.

 

                   É imperativo moral,  ainda não amparado no sistema jurídico, da  autonomia da  mulher decidir se quer prosseguir, ou não, na gestação  até ao final, em se tratando de fetos incuráveis e fatalmente doentes.  Esta decisão está  fundamentada no  livre  arbítrio  de querer ou não de cessar gravidez indesejada e de alto risco à sua saúde.  É, antes de tudo, decisão íntima dela  pela  antecipação do parto. Extrair um ser inviável para a vida e  também  para  a  existência   do seu ventre não pode constituir crime, pois tal crime é impossível,  por  tratar-se justamente não de  aborto  “strictu  sensu”  mas  de  antecipação do parto;  por  isso  o médico  não pode   nem  deve ser criminalizado.

 

                    Todos têm a capacidade de evoluir,  inclusive  os  operadores do Direito,  pautados  nos avanços  tecnológicos da medicina  e  nos  conceitos científicos.  Como  a  indefesa  mulher  pobre  poderá vencer a  tragédia proporcionada “inocentemente” pelos dogmas jurídicos e religiosos  que se mostram como  realidades imutáveis?  Mutatis Mutandis  encontramos a explicação  na  psicoterapia  ao  asseverar que é difícil mudar qualquer realidade psicológica enquanto  ela permanecer indefinidamente  inconsciente.   O  inconsciente  tem  a  força de  controlar os atos da pessoa  (mulheres pobres, magistrados e outros operadores do Direito)  e  será  somente  na  tomada  de  consciência   que poderá  haver  luz  para  a  libertação.  Por exemplo,  o círculo vicioso da  pobreza  só será rompido quando os pobres chegarem à  conclusão de que só sairão da situação de penúria e de miséria em que se encontram  ao  planejarem o tamanho de suas famílias.

 

                    A mensagem dita humanitária dos religiosos é a de proibir o aborto, recusando-se dar às mulheres – mulheres pobres – o que precisam para alimentar os filhos. É constatação universal que as mulheres e as crianças são  as primeiras a sofrer quando os recursos se tornam escassos. Não há nada mais cruel do que o sofrimento de uma criança!  Por vivência e até intuitivamente  todas as mulheres esclarecidas e responsáveis  sabem  da inviabilidade de ter um filho que jamais será auto-suficiente. É uma escolha íntima e  privada.

 

                        As mulheres sempre exigiram o direito de  praticar a  anticoncepção  e  o  aborto. Por todo o mundo, a  pobreza  é uma realidade para as mulheres,  especialmente para as  mães.  Se a mulher decidir  interromper  a  gravidez e fomos buscar as suas mais íntimas razões, estas estarão assentadas na premissa de que é vergonhoso ter um filho que não poderá ser cuidado adequadamente. Por conseguinte, o  aborto propriamente dito  é  “essencialmente uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as principais causas de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não tem dinheiro para recorrer às boas casas do ramo)… O aborto não é um direito desejável, é um direito necessário” (5)

 

                      É preciso reconhecer que a mulher  pobre   está  cansada    lassidão física, mental e espiritual    das  vicissitudes do cotidiano,  dos dogmas legais  que não compreende  e  do   absurdo  de  ter de carregar no ventre um natimorto. Tudo, enfim, conspirando para  agravar a sua dor moral    e  o  sofrimento físico e mental. Sem entusiasmo nem esperança, resta-lhe combater o  desespero que lhe toma o ser na  força da  solidariedade  emprestada de  seres humanos generosos,  a fim de superar o  impasse criado pelos poderosos (insensíveis e até  inumanos)  que a  mantém nesta situação de  extrema  injustiça. Martinho Lutero  com  palavras  terríveis assim se manifestou:  “Se as mulheres ficam exaustas e morrem no parto, nada há de errado nisso; deixem-nas morrer na hora de dar à luz,  elas foram criadas para isso”.  O  aborto é pecado (tipificado dogmaticamente  também como crime),  mas a morte de milhões de mulheres por aborto clandestino não é.

 

                      É imperioso deixar registrado as relevantes reflexões pertinentes de Ginette Paris: “Para ter permissão para matar homens, mulheres e crianças, cheios de vida e plenamente cônscios do sofrimento, é necessário uma fórmula simples – uma declaração de guerra… Quando as mulheres resolvem abortar, é em nome dos mesmos princípios invocados pelos fabricantes de guerras:  liberdade  e  autodeterminação – questões de dignidade tão importantes quanto a própria sobrevivência.  Os seres sacrificados em abortos não sofrem como as vítimas de guerras  e  desastres ecológicos. A diferença de pensamento entre aquele que faz a guerra e o que é contra o aborto pode ser explicada  pela divisão de poder  sobre a vida e a morte entre homens e mulheres.  Os homens têm o direito de matar e destruir,  e  quando  o  massacre é chamado de guerra,  eles são pagos  para  fazê-lo  e homenageados por suas ações.  A guerra é santificada, e até  abençoada por nossos líderes religiosos. Mas se a mulher decide  abortar um feto,  que nem tem  aparelho neurológico  para  registrar o sofrimento,  as  pessoas ficam chocadas.  O  realmente chocante é que a mulher  tem  o poder de fazer um julgamento moral que envolve uma opção de vida ou de morte. Esse poder é reservado aos homens…  As mulheres  dão a  vida,  e os homens, como heróis de guerra,  são provedores de morte… A necessidade  de controlar o corpo e a alma das mulheres está na  raiz das religiões patriarcais…  Ao longo dos séculos,  os  milhões de mulheres que morreram de aborto em condições horrorosas  foram na realidade sacrificadas, vítimas  do  dogma religioso” (6) 

 

                     Por outro lado,  a  mulher movida por conduta humana altamente altruísta, de  exemplar abnegação  e  generosidade,  apesar  de  saber,  com  a  mais  absoluta  certeza,  que está  gerando  no  útero feto anencefálico,   poderá  levar a  gravidez  até o final  para que os órgãos sejam doados. Repita-se:  o feto anencéfalo somente   sobreviveu  porque o  corpo da mulher é dotado de todos os  meios  naturais  para a  mantença da vida intra-uterina.

 

                        A  vida  inviável extra-uterina  do  anencefálico irá proporcionar vida  à  criança que receber o órgão dela cuja doação de órgãos  possa dar um sentido humanitário e este  triste acontecimento,  aliviando o  sofrimento de outros doentes acometidos de doenças graves  mas  recuperáveis.  O  recém-nascido anencefálico não apresenta possibilidade alguma de recuperação,  inclusive por motivos anatômicos, por não possuir o  córtex cerebral  nem de ser dotado de estruturas anatômicas próprias  que presidem as funções superiores. Na  realidade constata-se a  ausência completa ou parcial da calota  craniana  e  dos  tecidos que a  ela  sobrepõem  deixando parte do cérebro exposto.

 

                         Em  conseqüência,  o  feto  anencefálico  é  gravemente deficiente no plano  neurológico.  Falta-lhe as funções que dependem do córtex e, portanto, não somente os fenômenos da vida psíquica  mas  também a sensibilidade, a mobilidade e  a integração  de  quase todas as funções corpóreas.  Em  suma,  a anencefalia é uma  condição letal  e  normalmente  nenhum  neonato  sobrevive  além dos  três  dias.

 

                     É  imperioso  acentuar  que o  feto  anencefálico   possui irreparável falência cerebral.  Ele    se  mantém vivo,  biologicamente falando,  porque está  ligado  ao  corpo da mulher  e é o seu  aparelho  biológico que  mantém  a  “sobrevida”  precária deste feto anômalo,  condenado  à   morte.   Assim, a  morte  encefálica do feto   é  certa  e  que  a   biológica  ocorre  durante  o  parto  ou  logo  após  “nascer”, isto é, a  expulsão  de  um  ser   para  o  mundo. O  feto  anencefálico  não  é  pessoa   e  também não    pode   ser    comparado  a  situação em   que se encontra o  recém-nascido     que  teve posteriormente    morte  encefálica  não  originária   de     qualquer  deformação   intra-uterina,  pois  neste  caso  é  pessoa.

 

                          Em face do exposto, para adquirir o  status  de pessoa precisa  nascer com vida viável e com saúde, quando inicia a personalidade civil (sujeito de direitos, deveres e obrigações). Qualquer discussão doutrinária fora deste fato é inócua e estéril.  É falta de honestidade intelectual dos operadores do Direito negarem os  avanços da medicina tecnológica, assim como não é possível negar a Ciência e a Razão, cuja interrupção da gestação somente deverá  ocorrer se a  mulher assim decidir, sobretudo se o feto possuir malformações congênitas  ou  enfermidade incurável.

 

                         Se comprovada, portanto, a inviabilidade da vida extra-uterina do feto  tornar-se-á  necessário o aborto terapêutico.  Por outro lado, os defensores  do direito dogma   recusam a  acompanhar a evolução tecnológica  e da  precisão  dos  diagnósticos médicos,  esquecendo-se da  mulher pobre    é a  que realmente sofre  da indiferença e da insensibilidade dos poderosos.  O  dogma jurídico recusa aceitar a verdade contida nos fatos da vida; despreza o fato social e a razão nele encerrado; nega  os  avanços tecnológicos dos aparelhos de diagnósticos médicos; enfim, a  própria prova científica irrefutável que autoriza  a  antecipação do  parto ao afirmar que o feto não possui qualquer condição de sobrevida  por ser portador de malformações graves e totalmente incompatíveis com a vida. O dogma religioso também não respeita a  existência e a dignidade da mulher… da mulher pobre!

 

                         Finalmente, é preciso repetir à exaustão que a anencefalia é para  a  medicina uma anomalia fatal  porque a vida está condicionada a atividade cerebral. É, contudo, de uma perversidade ímpar obrigar a  mulher pobre,  pois  é a única a levar à exaustão este sofrimento de quem está condenada a viver  e  a  sobreviver  na  pobreza, a  carregar no ventre  um  natimorto. É  a  manifestação suprema do  poder  dos dogmas jurídicos e religiosos  ao  ignorar o Direito da Mulher que  está  consubstanciado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, há magistrados  comprometidos com  a  saúde  da  mulher pobre  e  que  são  guiados no dia-a-dia para atender aos fins sociais e  às  exigências do bem comum na  aplicação do Direito  têm autorizados a cirurgia para a retirada de fetos anencefálicos ou  possuidores de  outras anomalias    incompatíveis   com a vida extra-uterina.

 

                        Para que prevaleça a  concretude  dos fatos da vida é preciso humanizar o (poderoso) operador do direito dogmático. O fato concreto não pode diluir na abstração, pois o conteúdo é mais importante que a forma.  A existência da mulher  é muito  mais  importante que a  expectativa de vida de feto com vida  extra-uterina inviável. Portanto, a  saúde da mulher  é bem mais  importante  que a do feto, mormente se é portador de deformidade irreparável e  fatal  ou  está  acometido de  doença incurável.  Por outro lado,  é  direito da mulher  decidir se  deseja prosseguir na gestação,  ou  não.

 

                         Não pedimos para nascer!  E se estamos no mundo é porque somos amados.  Concluo este  breve  estudo sobre tema que diz respeito a  todas as  mulheres cônscias de suas responsabilidades de mães, nas  acertadas e  iluminadas  ponderações de  Ginette Paris: “Até hoje o aborto tem sido julgado de acordo com o dogma cristão; é pecado porque é proibido pela Igreja,  e  a  Igreja não pode mudar de posição, pois está escrito na Bíblia, e se começarmos a mudar o dogma escrito a  realidade toda ruirá.  As  religiões  monoteístas baseadas num livro  (cristão, judeu, muçulmano)  funcionam de acordo com códigos escritos (dogma),  que  divide o comportamento em  pecado  e  virtude,  de  uma vez por todas. Mas,  tão  logo adotemos uma  perspectiva mais global  e  menos  dogmática,  podemos ver a  loucura  que  é  sacrificar  a  mãe  pelo   bebê,   a  estupidez dos  procedimentos obstétricos  que    consideram  o  conforto e a segurança do feto  (como  se  a  mãe e filho  não  fossem  interdependentes),   e  a  loucura  de  uma  posição moral  que  força as mulheres  a  ter filhos quando a primeira necessidade de uma criança é ser querida”.  ( 7)  

                                     

N O T A S:

(1)      Revista  VEJA de 27/10/2004

(2)      Florestan ou Sentido das Coisas – Boitempo Editorial, 1998, p. 11

(3)      Para um Direito Sem Dogmas – Sergio Antonio Fabris, 1980, p. 12

(4)      Artigo publicado  na “Folha de S. Paulo”  de 30/12/2001,  sob o título:”Dias Melhores se Avizinham”

(5)      Revista VEJA de 17/08/2005 – Articulista André Petry

(6)      O Sacramento do Aborto – Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992, p. 36/37

(7)      op. cit., Ginette Paris  

 

 

 

* Funcionário Público Federal do Quadro Permanente da Secretaria  do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região – São Paulo/Brasil – no exercício  do cargo de Analista Judiciário. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas –UniFMU – São Paulo.  Licenciatura Plena do Curso de Estudos Sociais pela Faculdade Ideal de Letras e Ciências Humanas de São Paulo.  Pós-Graduação não concluída na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP  (Área de concentração: Direito do Estado – Subárea: Direito Constitucional) E-mail: antoniodeassisn@ig.com.br   

 

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Como citar e referenciar este artigo:
, Antonio de Assis Nogueira Júnior. Direito Da Mulher: Autorizar Aborto é Preservar o Princípio da Vida e da Dignidade da Pessoa Humana. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/direito-da-mulher-autorizar-aborto-e-preservar-o-principio-da-vida-e-da-dignidade-da-pessoa-humana/ Acesso em: 08 out. 2024