AJUFE

Vitaliciedade é garantia da sociedade, não do juiz


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Por Ivanir César Ireno Júnior

Mestre em direito constitucional, juiz federal e vice-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe)

A onda de protestos e reivindicações populares que invadiu as ruas tem tudo para se tornar um marco na construção de um país mais transparente, justo e solidário. Medidas de redução dos custos de serviços públicos essenciais e de combate à impunidade, antes não admitidas ou tramitando a passos lentos, passaram a ser implementadas pelos administradores e legisladores, como forma de atender aos reclamos da população.

Embora bem-vindas e necessárias, é preciso ter muito cuidado com algumas medidas incluídas na chamada “pauta positiva”, que deputados e senadores estão a oferecer. Isso porque, sob o superficial e açodado discurso moralizador, podem estar escondidas iniciativas tendentes a enfraquecer instituições públicas responsáveis pela preservação do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais dos cidadãos, como é o caso da quebra da garantia da vitaliciedade dos membros do Poder Judiciário.

A vitaliciedade é uma garantia prevista no art. 95, I, da Constituição Federal de 1988, que assegura ao magistrado a perda do cargo somente por sentença judicial transitada em julgado. Para os servidores públicos em geral, que gozam da estabilidade, a perda do cargo pode decorrer de sentença judicial transitada em julgado ou de decisão em processo administrativo disciplinar. Como consequência dessa garantia, a legislação prevê como pena para magistrados condenados por faltas graves, no âmbito administrativo, a aposentadoria compulsória ou a disponibilidade, ambas com proventos proporcionais ao tempo de serviço.

Sob o argumento de que é desarrazoado ou imoral que juízes que cometam faltas gravíssimas, inclusive venda de sentença, sejam punidos com mera aposentadoria, onerando os cofres públicos, cresce no parlamento, com suposto apoio popular, um movimento para extinguir a vitaliciedade, permitindo a perda do cargo por decisão administrativa do tribunal ao qual o magistrado está vinculado ou do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O argumento é simplista e equivocado.

A vitaliciedade não foi conferida aos magistrados como privilégio pessoal ou proteção para evitar punições em caso de crimes ou faltas funcionais, mas sim como meio de assegurar a plena independência para o exercício de suas funções, colocando-os a salvo de pressões internas ou externas que possam, de alguma forma, influenciar em suas decisões. Com isso, ganham a democracia, o Estado de Direito e os cidadãos.

Outro não foi o objetivo da Constituição quando impôs aos juízes severas vedações em sua vida pessoal, dispostas no seu art. 95, parágrafo único, como participar de atividade político-partidária.

Ao contrário, permitir que a punição extrema de perda de cargo seja imposta como resultado de mero processo administrativo, fruto de decisão de um tribunal ou de órgão com viés e composição política como o CNJ, enfraquece o Judiciário, expondo juízes aos riscos e temores de pressões políticas, econômicas ou coorporativas, que podem repercutir negativamente na sua independência e convicção ao julgar processos. A experiência recente de medidas de enfraquecimento do Judiciário, adotadas em países como Argentina, Venezuela e Honduras, se mostrou nociva à democracia e aos direitos fundamentais dos cidadãos, como a liberdade de imprensa.

Não se deve relacionar vitaliciedade com impossibilidade de perda de cargo ou demissão de magistrados desonestos. Ninguém, em sã consciência, compactuaria com essa posição. Para esses juízes, que desonram o Judiciário e a população que deveriam servir, a legislação prevê, para aplicação da pena de demissão, a condenação nas ações criminais, de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) e em ação civil específica de perda de cargo, que podem e devem ser propostas pelo Ministério Público ou pela Advocacia Pública. Como visto, a vitaliciedade impõe, em homenagem à independência judicial, um sistema mais rígido para a perda de cargo, mas não impede ou frustra, em hipótese alguma, a demissão de juízes corruptos.

Dentro desse contexto, atenderia mais ao interesse público e a sede de justiça dos brasileiros investir em medidas que acabem com o foro privilegiado de autoridades, reduzam o número de recursos, acelerem a tramitação dos processos, tornem mais efetivas as decisões judiciais de primeiro e segundo graus e garantam o cumprimento das penas e o ressarcimento integral dos valores desviados, do que enfraquecer garantias dos órgãos e agentes responsáveis pelo julgamentos dos acusados de crimes e corrupção.

*** Artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense do dia 10 de julho.

Fonte: AJUFE

Como citar e referenciar este artigo:
NOTÍCIAS,. Vitaliciedade é garantia da sociedade, não do juiz. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2013. Disponível em: https://investidura.com.br/noticias/ajufe/vitaliciedade-e-garantia-da-sociedade-nao-do-juiz/ Acesso em: 19 abr. 2024