Direito do Consumidor

Modelo de Ação Civil Pública – atividade de instituição financeira sem autorização dos órgãos competentes

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ….. VARA CÍVEL DA COMARCA DE ….., ESTADO DO …..

– (PROCESSO Nº …..)

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE ….., por meio do …. Promotor de Justiça do Consumidor que esta subscreve, vem, respeitosamente, propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR

em face de

….., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o n.º ….., com sede na Rua ….., n.º ….., Bairro ……, Cidade ….., Estado ….., CEP ….., representada neste ato por seu (sua) sócio(a) gerente Sr. (a). ….., brasileiro (a), (estado civil), profissional da área de ….., portador (a) do CIRG nº ….. e do CPF n.º ….., e ….., brasileiro (a), (estado civil), profissional da área de ….., portador (a) do CIRG n.º ….. e do CPF n.º ….., residente e domiciliado (a) na Rua ….., n.º ….., Bairro ….., Cidade ….., Estado ….., pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.

DOS FATOS

Expediente encaminhado pelo PROCON, contendo informações no sentido de que o réu ….exerce atividade própria de instituição financeira, oferecendo financiamento para aquisição de bens imóveis, sem que tenha autorização da autoridade competente, deu ensejo à instauração do Inquérito Civil – autos instruem a presente inicial, doravante denominado IC.

As diligências realizadas nos autos do aludido inquérito civil revelaram que, atraídos pelas facilidades apregoadas por publicidade divulgada pelo rádio, dezenas de consumidores celebraram com a empresa ré, por adesão, o contrato padrão indevidamente denominado de …..(fls. …. do IC). Entretanto, o referido instrumento é utilizado como dissimulação de atividade exclusiva de instituições financeiras que exige permissão e controle do Poder Público.

Cada contrato celebrado tem por objeto a constituição de uma sociedade em conta de participação, integrada pelo réu, na qualidade de sócio ostensivo, e pelo consumidor contratante, denominado sócio oculto de forma indevida, como se verá. Mas seu objeto é exclusivamente a constituição de sociedade em conta de participação que tem como fim a aquisição, construção ou reforma de bens imóveis novos ou usados, sendo a participação do sócio oculto nos resultados sociais proporcional às integralizações realizadas.

O contrato em tela estabelece o seguinte:

…..

Não existe affectio societatis, e não há para o consumidor a menor possibilidade de obtenção de lucro, fatos que, aliados à análise das cláusulas contratuais predispostas pelos réus, demonstram que a constituição de sociedade na modalidade em conta de participação não passa de simulacro para o exercício de atividade própria de instituição financeira, assemelhando-se também às atividades exercidas pelas administradoras de consórcios, que igualmente objetivam a formação de um fundo social para aquisição de bens duráveis, mediante pagamento de taxa de administração.

Em última análise, o réu recebe antecipadamente a poupança popular para entrega futura de crédito, fazendo-o sem autorização do Banco Central do Brasil ou do Ministério da Fazenda, exercendo, assim, atividade ilícita, o que levou à instauração do inquérito civil anexado à presente.

A promessa de entrega do capital constituído para compra, reforma ou construção de imóvel demonstra a temeridade dos planos administrados pelos demandados, que não podem garantir que conseguirão entregar todos os créditos contratados, tendo em vista a falta de garantias financeiras e o ínfimo capital da empresa, de R$ ….. (fls. ….. do IC).

De fato, deve ser considerado ínfimo o capital social da empresa ré, considerando-se a atividade por ela exercida, que outra coisa não é senão a concessão futura de crédito para compra, construção e reforma de imóvel, mediante captação antecipada do dinheiro do povo para futura entrega do dinheiro almejado pelo contratante, atividade essa exercida sob o manto de pretensa Sociedade em Conta de Participação. Patenteia-se, assim, o risco a que estão expostos os consumidores que celebram contratos com a demandada, os quais têm por objeto a concessão de crédito cujo prazo de liberação não está previsto no contrato e somente ocorrerá após pagamento de taxa de adesão equivalente a ….% do capital contratado, pagos no ato da celebração do contrato e equivalente a ….% do mesmo valor, diluídos nas parcelas pactuadas, além do pagamento de várias prestações mensais.

Mais do que o risco de lesão que emana dos termos do próprio contrato, o exame das reclamações juntadas aos autos comprova o efetivo prejuízo causado a diversos consumidores que celebraram contratos com a empresa ré.

DO DIREITO

1. A ILEGALIDADE DA ATIVIDADE EXERCIDA PELOS RÉUS: VIOLAÇÃO DA LEI Nº 5.768/71

A Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971, que estabelece normas de proteção à poupança popular e dá outras providências, regulamentada pelo Decreto 70.951, de 09 de agosto de 1972, dispõe, em seus artigos 7º e 8º, verbis:

“Art. 7º. Dependerão, igualmente, de prévia autorização do Ministério da Fazenda, na forma da Lei, e nos termos e condições gerais que forem fixados em regulamento, quando não sujeitas à de outra autoridade ou órgãos públicos federais:

(omissis)

II. a venda ou promessa de venda de mercadorias a varejo, mediante oferta pública e com recebimento antecipado, parcial ou total, do respectivo preço;

(omissis)

V. qualquer outra modalidade de captação antecipada de poupança popular, mediante promessa de contraprestação em bens, direitos ou serviços de qualquer natureza.

Art. 8º. O Ministério da Fazenda, nas operações previstas no art. 7º, exigirá prova da capacidade financeira, econômica e gerencial da empresa, além dos estudos de viabilidade econômica do plano e das formas e condições de emprego das importâncias a receber …”.

O art. 7º, inc. I, da Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971, foi alterado pelo art. 33, da Lei nº 8.177, de 1º de março de 1991, o qual determina que as administradoras de consórcio (equiparadas às instituições financeiras, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1985), a partir de 1º de maio de 1991, passam a depender, obrigatoriamente, de autorização do BANCO CENTRAL para exercer suas atividades.

Desta forma, para que fosse possível o exercício da administração de consórcio ou de qualquer atividade própria de instituições financeiras, como a concessão futura de crédito, seria necessário que a empresa ré possuísse autorização do BANCO CENTRAL DO BRASIL.

Também depende de autorização da autoridade competente “a venda ou promessa de venda de mercadorias a varejo, mediante oferta pública e com recebimento antecipado, parcial ou total, do respectivo preço” (Lei nº 5.768/71, art. 7º, inc. II), bem como “qualquer outra modalidade de captação antecipada de poupança popular, mediante promessa de contraprestação em bens, direitos e serviços de qualquer natureza” (Lei nº 5.768/71, art. 7º, inc. V).

Sucede que, conforme ficou comprovado no inquérito civil que instrui a presente inicial (fls. 109), a empresa ré não possui autorização da autoridade competente, que no caso seria o BANCO CENTRAL, para operar como instituição financeira.

Ainda que não se classifique a atividade da empresa ré como típica de instituição financeira, o que se admite apenas para argumentar, verifica-se, à simples interpretação gramatical dos dispositivos legais acima transcritos, que todos os casos elencados no art. 7º da Lei nº 5.768/71, entre os quais a hipótese de “qualquer forma de captação antecipada de poupança popular, mediante contraprestação em bens, direitos ou serviços de qualquer natureza”, devem submeter-se à autorização da autoridade competente que, nesses casos, seria o MINISTÉRIO DA FAZENDA. Também não obteve tal permissão (fls. ….. do IC)

O detentor da autorização deve observar, rigorosamente, os requisitos impostos pela lei e demais normas de regência, especialmente no tocante à prova da capacidade financeira, econômica e gerencial da empresa, estudos da viabilidade econômica dos planos e das formas e condições do emprego das importâncias a receber (art. 8º da Lei nº 5.768/71), sendo facilmente compreensível o motivo da preocupação do legislador e das autoridades responsáveis pela fiscalização de tais atividades, tendo como escopo a proteção da economia popular.

A empresa ré, como já se viu no item relativo à descrição dos fatos, oferece contrato padrão ao público em geral, recebendo as prestações pagas por dezenas, talvez centenas de pessoas, sem qualquer fiscalização quanto à forma de aplicação desses recursos e garantias de sua capacidade financeira.

Ora, a ré não é instituição financeira e não tem autorização da autoridade competente para exercer a atividade em questão, tudo levando à conclusão de que causaria prejuízos ao consumidor coletivamente considerado, o que, de fato, acabou ocorrendo, conforme reclamações que instruem a presente inicial.

Observe-se, por outro lado, que só existe “Sociedade em Conta de Participação” quando duas ou mais pessoas, sendo uma comerciante, se reúnem, sem firma social, visando o lucro comum, em uma ou mais operações de comércio determinadas, trabalhando um, alguns ou todos em seu nome individual para o fim social.

O objetivo único do sócio oculto é perceber LUCRO em decorrência dos negócios comerciais entabulados entre o sócio ostensivo e as pessoas que com ele contratarem. O LUCRO a ser obtido é dinheiro, e não outros bens, como imóveis.

À simples leitura dos contratos de adesão da empresa ré percebe-se que estes têm por objeto apenas a concessão de crédito para que os consumidores, chamados de “sócios ocultos”, adquiram bens imóveis mediante o pagamento antecipado de parte do preço, não havendo qualquer possibilidade de LUCRO a ser auferido por estes, haja vista que as parcelas pagas correspondem exatamente ao valor do bem imóvel adquirido, mais as despesas com gerenciamento e manutenção mensal da “sociedade”.

Saliente-se que a aquisição do imóvel mediante pagamento do preço corrigido mais ….% a título de manutenção e gerenciamento da “sociedade”, além dos ….% do valor do contrato pagos no momento da contratação, muito provavelmente representará prejuízo para o consumidor, ao invés de lucro.

Não havendo o lucro comum não se vislumbra a existência da Sociedade em Conta de Participação.

2. COMUNICADO Nº 9.609, DE 12.6.2002, DO BANCO CENTRAL

O BANCO CENTRAL DO BRASIL, percebendo o desvirtuamento da utilização da figura da sociedade em conta de participação pelas diversas empresas que surgiram no mercado de consumo, atuando como verdadeiras instituições financeiras sem a prévia autorização exigida nos arts. 7º e 8º da Lei 5.768/71 e 33 da Lei 8.177/91, emitiu o COMUNICADO Nº 9.609, de 12.6.2002, em que “Divulga entendimento de que a formação e o funcionamento de grupos para aquisição de bens por meio de sociedades em conta de participação não tem respaldo legal”.

No referido comunicado, o BACEN deixou apenas três alternativas às referidas empresas: a) solicitar autorização ao Banco Central do Brasil; b) converter os grupos já formados para a modalidade de consórcio de imóveis, transferindo-os para administradoras de consórcio autorizadas, ficando a cargo do sócio ostensivo a responsabilidade pelos custos dessa conversão ou c) dissolver os grupos já formados, garantindo-se os direitos dos atuais participantes aos valores já desembolsados, de modo a preservar o poder de compra dessas parcelas.

3. O ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL

O E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também já se pronunciou sobre a matéria, reconhecendo a ilegalidade da atuação de empresa que, sob o manto da sociedade em conta de participação, exercia atividade de verdadeira administradora de consórcio, conforme v. acórdão proferido pela Sétima Câmara de Direito Privado no julgamento da Apelação Cível nº 126.798-4/4, votação unânime, relator Desembargador Leite Cintra, destacando-se, da respectiva ementa, o seguinte trecho:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Exercício de atividade ilegal praticado pela empresa ré, que revestida como sociedade em conta de participação, contratos onde não comprovada a existência de lucro comum prevista na conceituação legal do art. 325 do Código Comercial, divulgava planos de telefonia, atuando, na prática, como administradora de consórcio para aquisição de linhas telefônicas, sem obtenção de cadastro como instituição financeira ou administradora de grupos de consórcio – Desconsideração da personalidade jurídica lastreada no abuso do direito contra o consumidor – Exegese do art. 28 da Lei nº 8.078/90 – Condenação em honorários advocatícios – Descabimento em razão da qualidade do autor, dado ser-lhe vedado recebê-los – Recurso parcialmente provido para esse fim”.

Nas várias ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, sempre por meio da Promotoria de Justiça do Consumidor, distribuídas à 5ª, 9ª, 12ª, 22ª, 26ª e 30ª Varas Cíveis da Capital, foram acolhidos os pedidos liminares a fim de se determinar às rés a cessação da atividade consistente na celebração dos chamados Contratos de Sociedade em Conta de Participação que, na verdade, mascaram a atuação das rés como se instituições financeiras ou administradoras de consórcios fossem, destacando-se, das referidas decisões monocráticas os seguintes trechos:

“A captação de poupança popular visando formação de fundo financeiro comum com o objetivo de fornecer casa própria, percebendo a ré – sócio ostensivo – taxa de adesão e taxa de administração do sócio oculto – aderentes -, caracteriza, em tese, exploração de contrato de consórcio, atividade esta que embora não sendo ilegal é dependente de autorização do Ministério da Fazenda e Banco Central do Brasil nos termos da Lei 5768/71, art. 7º, I, c.c. Lei 8177/91, art. 33.

E como no Inquérito Civil os co-réus, não comprovaram tenha sido autorizada até a presente data a exploração de consórcio de imóveis, e nem de deterem reserva técnica frente ao ínfimo valor de seu capital social a impor a desconsideração da personalidade jurídica, viola direito do consumidor, potencialmente considerado, a continuidade da captação popular para essa finalidade com a alegada dissimulação em contrato de sociedade em conta de participação, razão pela qual reputo presentes os requisitos legais e (…) defiro o pedido liminar …” (Proc. 000.01.053870-4, Juiz José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto – 12ª vara Cível, decisão de 28.5.2001)

“A prova documental que acompanha a petição inicial é suficiente a revelar a veracidade da alegação de que a ré ….., valendo-se de documento redigido sob o nomen juris de “….”, capta recursos junto a consumidores interessados em adquirir imóveis, como se instituição financeira fosse, administrando a seu exclusivo talante verdadeiro fundo de poupança popular sem dispor de autorização legal ao exercício de tal mister. É também possível observar, desde logo, mercê do teor das reclamações contra ela apresentadas em órgãos de proteção ao consumidor, que a referida pessoa jurídica não dá regular cumprimento aos dispositivos contratuais por ela própria estabelecidos e que há fortes indícios de desvirtuamento da finalidade a que legalmente se destina o contrato de sociedade em conta de participação, fazendo crer que o contrato oferecido à população tem objetivo diverso … “ (Juiz Carlos Henrique Miguel Trevisan – Proc. nº 02.141178-6, 26ª Vara Cível, decisão de 17.7.20 02).

3. A LEGITIMIDADE ATIVA

Para que se afirme a legitimidade do Ministério Público para a propositura da presente ação impõe-se, antes, que se indague sobre a natureza dos direitos tutelados nesta via, o que, por sua vez, depende do pedido deduzido.

Com efeito, discorrendo sobre a metodologia correta para classificar determinado tipo de interesse ou direito, ensina NELSON NERY JÚNIOR que “a pedra de toque do método classificatório é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial” (in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo, Ed. Forense Universitária, 4ª ed. – 1995, p. 630).

Ora, o que se pretende, nesta via, é que cesse a atividade ilícita desenvolvida pelos réus – tutela voltada para o futuro, relativa a potenciais consumidores que ainda não celebraram os contratos em tela, mas virão a fazê-lo, caso não cesse o exercício da atividade ilícita -, bem como a indenização dos prejuízos causados aos consumidores que celebraram Contratos de Sociedade em Conta de Participação com a empresa demandada – tutela voltada para o passado.

Em relação às pessoas que, futuramente, poderão celebrar contratos de concessão de crédito com os réus – pessoas indeterminadas -, a tutela versa sobre a defesa de interesses e direitos difusos, marcados pelos traços da transindividualidade e da indivisibilidade, definidos no art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.

Em relação aos consumidores que já celebraram contratos com a ré e têm direito à indenização dos prejuízos sofridos, o pedido versa, em última análise, sobre a defesa de interesses individuais homogêneos, definidos no art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC.

Tais interesses ou direitos são denominados individuais homogêneos em virtude de sua origem comum, qual seja, o contrato padronizado, celebrado por adesão, por meio do qual os réus exercem a atividade ilícita descrita na presente inicial.

Nessa hipótese, para haver a indenização, os consumidores deverão, individualmente, liquidar e executar a sentença genérica (arts. 95 e 97 do CDC).

Patente, portanto, a legitimidade do Ministério Público, tendo em vista que se pretende, na presente via, a defesa de interesses e direitos difusos e individuais homogêneos.

Com efeito, segundo os arts. 127 e 129, inciso III, da Carta Magna, incumbe ao Parquet a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, encontrando-se, entre suas finalidades, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

A Lei nº 7.347/85, por sua vez, atribui legitimidade ao Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública objetivando a prevenção e reparação de danos causados ao consumidor em decorrência da violação de interesses e direitos difusos e coletivos (Cf. artigos 1º, 3º, 4º, 5º, caput e 21).

A Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) estabelece a legitimação do Ministério Público para a defesa coletiva, em juízo, dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos do consumidor (art. 82, inciso I, c.c. o art. 81, parágrafo único, incisos I a III).

Por último, impõe-se ressaltar que, na hipótese vertente, a legitimidade do Ministério Público decorre também do interesse social patenteado pela magnitude da lesão, decorrente do número considerável de contratos celebrados com a empresa ré, por adesão, por consumidores de boa fé, acarretando dispersão dos lesados.

4. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O Código de Defesa do Consumidor consagra mecanismos de proteção ao pólo mais vulnerável da relação de consumo, qual seja, o consumidor, buscando garantir a efetiva reparação dos danos por ele sofridos, o que, aliás, constitui direito básico estabelecido em seu art. 6º, inciso VI.

Assim é que o art. 28, caput, da Lei nº 8.078/90 estabelece que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência ou estado de insolvência, encerramento ou inatividade de pessoa jurídica provocados por má administração.

O parágrafo 5º do citado dispositivo legal determina, ainda, que a pessoa jurídica também poderá ser desconsiderada sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

É cediço que a personalidade jurídica não pode acobertar propósitos ilícitos e desvios da finalidade da empresa, sendo certo que a autonomia que o direito confere à pessoa jurídica não possui o condão de transformá-la em ente fadado à completa abstração, sem qualquer vinculação à pessoa de seus sócios.

Ao tratar do tema, LUCIANO AMARO ensina o seguinte:

“Se é o direito que reconhece a autonomia da pessoa jurídica, em relação aos titulares do capital desta, e afirma a limitação da responsabilidade dos sócios ao valor do capital que subscreveram, o próprio direito pode cercear os possíveis abusos de sua criatura, restringindo aquela autonomia, ou em especial, restringindo a referida limitação da responsabilidade. Quem dá a função pode limitá-la, restringi-la, excepcioná-la, condicioná-la; enfim, regular o seu exercício (…) A desconsideração da pessoa jurídica é uma técnica casuística (e, portanto, de construção pretoriana) de solução de desvios da pessoa jurídica, quando o juiz se vê diante de situações em que prestigiar a autonomia e a limitação da responsabilidade da pessoa jurídica implicaria sacrificar um interesse que ele reputa legítimo” (in Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito Mercantil nº 88, out/dez. 92, pp. 70/80).

Considerando-se a doutrina tradicional da desconsideração do ente moral, verifica-se que o Código do Consumidor foi além, “admitindo outras situações que parecem ter suporte em outras considerações doutrinárias como a teoria ultra vires e a teoria da aparência”, tendo em vista que prepondera, na defesa do consumidor, a proteção da boa-fé, como bem assinala a eminente juíza e professora gaúcha GENACÉIA DA SILVA ALBERTON (AJURIS, 54/171).

No caso concreto, em que os sócios da empresa ré, por meio dela, exercem atividade ilícita, como fartamente demonstrado nos autos do inquérito civil, verifica-se que, quer se caracterize a hipótese como abuso não permitido pelo direito (utilização da pessoa jurídica no exercício de atividade ilícita), quer como infração da lei ou ato ilícito praticado pelos sócios da empresa demandada (caso de responsabilização direta dos sócios à luz da teoria clássica e de desconsideração da pessoa jurídica segundo o Código do Consumidor), a conclusão é a mesma: devem os sócios responder com seu patrimônio pessoal pelos prejuízos causados aos consumidores.

Ressalte-se que, para agravar a situação, nos presentes autos, o capital da empresa ré, de R$ ….., deve ser considerado ínfimo, considerando-se que ela atua no mercado de consumo como se fosse instituição financeira.

Os contratos de Sociedade em Conta de Participação oferecidos ao público consumidor pela empresa demandada têm por finalidade a concessão de crédito para “compra, construção ou reforma de bem imóvel”, de modo que o valor do objeto de cada contrato celebrado com consumidores ultrapassa, em muito, o capital social da empresa.

A falta da autorização exigida na Lei nº 5.768/71, por sua vez, faz com que não haja qualquer tipo de fiscalização por parte do Banco Central do Brasil ou do Ministério da Fazenda.

Trata-se, portanto, de hipótese em que incidem os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, antes mencionados.

Bem por isso, deve ser desconsiderada a personalidade jurídica da empresa ré a fim de que sejam alcançados os bens de todos os sócios da empresa ré, com vista à efetiva indenização dos danos causados aos consumidores indevidamente denominados de sócios ocultos da pretensa Sociedade em Conta de Participação.

5. DA NECESSIDADE DE CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR.

Verificou-se que a empresa ré vem exercendo atividade ilícita, assemelhada à administração de consórcio de fato ou às atividades típicas de bancos, atividade essa que, em última análise, consiste na captação antecipada da poupança popular para liberação futura de crédito ou entrega futura do capital contratado para aquisição, reforma e construção de imóvel, sem a obrigatória autorização do BANCO CENTRAL DO BRASIL ou do MINISTÉRIO DA FAZENDA, não se submetendo, portanto, à fiscalização do Poder Público.

Exerce, assim, prática comercial abusiva, incompatível com os princípios da boa-fé e da equidade, que norteiam as relações de consumo (CDC, art. 4º, inc. III), além de violadora de direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º do mencionado Código consumerista. Presente, então, o “fumus boni juris” para a concessão da ordem liminar.

Patente, também, o “periculum in mora”.

É que, enquanto não coibida a atividade, a empresa ré poderá continuar a exercê-la, em outro endereço, prejudicando número ainda maior de consumidores. O mesmo ocorre em relação a seus sócios, que poderão constituir novas empresas, se não lhes for dirigido o comando judicial para que se abstenham da prática da atividade ilícita.

Cuida-se, in casu, de hipótese em que, tendo em vista a relevância do fundamento da demanda e o receio da ineficácia do provimento final, conforme exposto, cabe a concessão de medida liminar, nos termos do art. 84, §3º, da Lei nº 8.078/90, sob pena de grave risco no sentido de não ser mais possível a reparação dos prejuízos causados em razão do exercício da atividade ilícita.

Em caso similar, decidindo o Agravo de Instrumento nº 790.692-9 da Comarca de Campinas, o E. PRIMEIRO TRIBUNAL DE ALÇADA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, relator o eminente juiz Itamar Gaino, assim se pronunciou:

“A liminar foi bem concedida, com o propósito de evitar prejuízos às pessoas que contrataram com a empresa, bem como obstar novas contratações.

A atividade, que de fato se caracteriza como consórcio, é nitidamente ilegal, visto que não há previsão em lei ou regulamento quanto à formação de consórcio envolvendo direito de uso de linha telefônica, e visto que a criação de grupos, objetivando bens móveis, depende de autorização expressa do órgão governamental competente, que é o Banco Central do Brasil, autorização essa que não existe …

A ilicitude da atividade, com potencial lesivo ao patrimônio de grande número de cidadãos, deve ser obstada de maneira eficaz, ainda que por meio de provimento judicial liminar, não importando que, para o alcance desse objetivo, os réus sejam submetidos ao cumprimento de determinações rigorosas. O interesse coletivo sobrepõe-se ao individual, ainda mais em situação como esta, em que a atuação da empresa e dos indivíduos que a integram, em tese, caracteriza crime.

São apropriadas, e os elementos informativos disponíveis desde logo as justificam, as medidas solicitadas na petição inicial e deferidas pelo juízo, tendentes a obstar a realização de novos contratos (…), a oficiar aos órgãos públicos para bloqueio dos bens dos réus …”.

Logo, encontrando-se presentes os pressupostos necessários, impõe-se a concessão da liminar, “inaudita altera parte”.

DOS PEDIDOS

Diante do exposto, requer o autor:

1. a concessão de MEDIDA LIMINAR, inaudita altera parte, com fundamento nos artigos 12 da Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985 e 84, § 3º, da Lei nº 8.078/90, para o fim de:

a) tendo em vista o poder geral de cautela, determinar a indisponibilidade e o bloqueio de todo e qualquer ativo da empresa ré e dos co-réus, inclusive financeiro, até que seja comprovado nos autos que todos os consumidores que celebraram Contratos com a empresa ré receberam a devolução da totalidade das importâncias por eles pagas à empresa demandada;

b) para a efetivação da indisponibilidade de bens postulada e como medidas assecuratórias dos direitos dos consumidores que celebraram Contratos com a empresa ré, requer-se o seguinte:

b.1) sejam requisitadas à Delegacia da Receita Federal as declarações de bens e rendimentos dos últimos cinco anos da empresa ré e dos co-réus;

b.2) seja oficiado à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, comunicando-se o decreto de indisponibilidade dos bens imóveis dos réus para que seja participado a todos os órgãos de Registro Imobiliário do Estado de …., e para que determine aos Cartórios de Notas e de Títulos e Documentos do Estado que procedam busca e apreensão de títulos de que os requeridos sejam beneficiários, solicitando-se, ainda, que esses órgãos informem nos autos a eventual existência dos imóveis e dos títulos em tela;

b.3) seja determinada a quebra do sigilo bancário da empresa ré e dos co-réus no período de…. (data de constituição da empresa ré – fls. …. do I.C.) até a presente data, implicando na relação dos documentos que comprovem a movimentação das respectivas contas bancárias, no período apontado.

b.4) para efetivação da medida objeto do item “b.3” supra, a expedição de ofício ao Banco Central do Brasil, comunicando-se a quebra do sigilo bancário de todos os réus, e determinando-se que solicite às instituições bancárias o encaminhamento, ao D. Juízo, dos documentos que comprovem a movimentação, no período apontado, das contas-correntes, de poupança e de quaisquer outros ativos financeiros (encerradas ou não), em nome de todos os réus, bem como para que procedam ao bloqueio de todas estas contas e ativos, reservando-se o direito de os réus poderem movimentá-los somente mediante autorização judicial. Devem ainda informar sobre a existência de cofres em instituições financeiras em nome dos réus, procedendo a sua lacração para posterior abertura e apreensão dos bens encontrados, bem como transações financeiras em moeda estrangeira e cautelas de metais e pedras preciosas;

b.5) a expedição de ofício ao DETRAN, comunicando-se a indisponibilidade de veículos registrados em nome dos réus e com a determinação de que informem quais são os veículos que foram bloqueados para alienação;

b.6) seja determinada a publicação, no Diário Oficial, da r. decisão concessiva da medida liminar, a fim de que chegue ao conhecimento de todos a indisponibilidade dos bens dos réus até que seja comprovado nos autos que todos os consumidores que celebraram Contratos com a empresa ré receberam a devolução da totalidade das importâncias por eles pagas à empresa demandada;

c) determinar aos réus o cumprimento de obrigação de não fazer, consistente em se abster de oferecer ao público e de celebrar os contratos intitulados “…..” – ou com qualquer outra nomenclatura equivalente – tendo por objeto a liberação de crédito para aquisição, construção ou reforma de imóveis ou de qualquer outro bem, sob pena de multa equivalente a …. vezes o valor do salário mínimo por infração, sem prejuízo do crime de desobediência;

d) determinar à empresa ré e aos co-réus que, no prazo de 30 (trinta) dias, procedam à apuração da totalidade das quantias recebidas em relação a todos os Contratos celebrados com os consumidores denominados sócios ocultos que ainda não receberam o crédito contratado, restituindo-lhes a totalidade das quantias apuradas nos respectivos contratos (sem desconto de qualquer percentual, mesmo que a título de despesas de manutenção e gerenciamento, tendo em vista a natureza ilícita da atividade), corrigidas monetariamente a partir de cada desembolso e acrescidas de juros moratórios, sob pena de pagamento de multa correspondente a …. salários mínimos por dia de atraso no cumprimento da determinação, sem prejuízo do crime de desobediência;

e) determinar à empresa ré e aos co-réus que, imediatamente, se abstenham de exigir, cobrar ou receber qualquer quantia devida pelos consumidores que com eles celebraram Contratos (ou permitir ou autorizar o recebimento por terceiros), mesmo em relação aos que já receberam o crédito (dinheiro) objeto do contrato por eles celebrados e ainda não quitaram os respectivos planos, sob pena de multa diária de ….. salários mínimos, por infração, sem prejuízo do crime de desobediência;

f) em consequência da determinação objeto da letra “e” supra, determinar à empresa ré que, no prazo de 05 (cinco) dias, comunique aos consumidores que já receberam o dinheiro correspondente à liberação de seus créditos (ou fundos sociais), tendo ou não empregado os mesmos na compra, reforma ou construção de bem imóvel, mas ainda não os amortizaram integralmente, que as prestações devidas deverão ser depositadas em conta vinculada ao r. juízo com incidência de juros e correção monetária, com vista ao futuro rateio entre os consumidores denominados sócios ocultos que não tiverem recebido a restituição da totalidade das importâncias desembolsadas, monetariamente atualizadas, sob pena de multa de ….. salários mínimos por dia de atraso no cumprimento da obrigação;

g) determinar aos réus que, no prazo de 20 dias, providenciem a apresentação em juízo da relação completa dos consumidores que celebraram o denominado “Contrato ….”, tendo por objeto a liberação de crédito para compra, construção ou reforma de bem imóvel, constando nome, endereço e situação de cada um, sob pena de multa diária equivalente a ….. salários mínimos, sem prejuízo do crime de desobediência;

h) determinar aos réus o cumprimento de obrigação de não fazer, consistente em se abster de veicular ou manda veicular qualquer tipo de publicidade sobre a “….” (ou outro nome equivalente que venha a ser utilizado para a atividade ilegal), sob pena do pagamento de multa no valor de R$ ….. por veiculação, sem prejuízo do crime de desobediência;

2. no mérito, seja o pedido julgado procedente, a fim de que:

a) seja tornada definitiva a liminar;

b) no tocante aos consumidores que não receberam os créditos para compra, reforma e construção de bem imóvel objeto dos contratos celebrados, sejam os réus condenados, genericamente, nos termos do art. 95 da Lei nº 8.078/90, a indenizar os prejuízos causados em razão do exercício da atividade ilícita, restituindo-lhes o total das prestações pagas, devidamente atualizadas e com os acréscimos legais ou as importâncias equivalentes à diferença entre o total dos valores pagos pelos referidos consumidores, devidamente corrigidos, e o total das quantias por eles recebidas em eventuais rateios, igualmente atualizadas monetariamente, com os acréscimos legais, sem prejuízo de indenizar eventuais perdas e danos, a serem demonstradas em sede de liquidação de sentença;

3. a reversão ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados, no Estado de ….,do quantum a ser apurado em liquidação, correspondente às multas eventualmente fixadas com vistas ao cumprimento da ordem liminar.

Requer, ainda:

4. a citação dos réus, pelo correio, a fim de que, advertidos dos efeitos da revelia, a teor do artigo 285, última parte, do Código de Processo Civil, apresentem, querendo, resposta ao pedido ora deduzido, no prazo de 15 (quinze) dias;

5. a condenação dos requeridos ao pagamento das custas processuais, com a devida atualização monetária;

6. a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, em face do previsto no artigo 18 da Lei nº 7.347/85 e do art. 87 da Lei nº 8.078/90;

7. a publicação do edital do art. 94 da Lei nº 8.078/90 no órgão oficial;

8. sejam as intimações do autor feitas pessoalmente, mediante entrega dos autos na Promotoria de Justiça do Consumidor, situada na Rua ….., n.º ….., Bairro ….., Cidade ….., Estado …..

9. seja deferida a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor.

Protesta provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em direito, especialmente pela produção de prova testemunhal e pericial, e, caso necessário, pela juntada de documentos.

Instruem esta inicial os autos do INQUÉRITO CIVIL nº ….. com ….. folhas.

Dá-se à causa o valor de R$ …..

Nesses Termos,

Pede Deferimento.

[Local], [dia] de [mês] de [ano].

[Assinatura]

Como citar e referenciar este artigo:
MODELO,. Modelo de Ação Civil Pública – atividade de instituição financeira sem autorização dos órgãos competentes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/modelos/direito-do-consumidor-modelos/modelo-de-acao-civil-publica-atividade-de-instituicao-financeira-sem-autorizacao-dos-orgaos-competentes/ Acesso em: 28 mar. 2024