Direito Internacional Público

A Soberania no Mundo Moderno – Ferrajoli

Hernane Elesbão Wiese*

FERRAJOLI, Luigi. A SOBERANIA NO MUNDO MODERNO. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

1 capítulo I – as origens jusnaturalistas da idéia de soberania

1.1 A communitas orbis (comunidade mundial) como sociedade de Estados soberanos no pensamento de Francisco de Vitoria

A origem jusnaturalista da dimensão de soberania externa remonta ao pensamento de Francisco de Vitoria, depois a Gabriel Vasquez de Menchaca, a Baltazar de Ayala e a Francisco Suarez, que anteciparam a reflexão de Hugo Grotius. Essa origem tem como objetivo oferecer um fundamento jurídico para a conquista do Novo Mundo.

Vitoria contestou, em suas Prelações, todos os títulos de legitimação originalmente feitos pelos espanhóis, dentre eles: o direito de descobrimento, a idéia da soberania do Império e da Igreja, a infidelidade e o comportamento pecaminoso dos índios, sua submissão voluntária e finalmente à concessão divina dada aos espanhóis para tal dominação.

A esses títulos ilegítimos, Vitoria contrapõe outros, reelaborando velhas doutrinas, dando fundamento ao direito internacional moderno e do conceito moderno de Estado soberano. São três esses títulos:

a)       “A configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos” (p. 7), rechaçando a idéia de mundo submetido ao império e ao papa. Cada Estado deve produzir leis que devem ser cumpridas por todos, inclusive pelos reis e os legisladores, afinal os governantes recebem sua autoridade da república e devem usá-la em prol dela. O mundo inteiro é um tipo de república e por isso deve fazer leis justas para todos, e nenhum país tem o direito de desrespeitá-las.

b)       “A teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados” (p. 7). São eles o direito de se comunicar, de viajar, de permanecer, de comércio, de ocupação, de migrar. A esses são anexados mais quatro direitos divinos: direito de evangelizar, dever da censura fraternal dos bárbaros, dever de proteger os convertidos de seus antigos caciques, dever de substituir os caciques por líderes cristãos caso haja conversão da maioria dos índios. E o mais importante deles é o direito à defesa incondicional dos espanhóis, mesmo que para isso seja necessário massacrar suas cidades e subjugá-los.

c)       “A reformulação da doutrina cristã da ‘guerra justa’, redefinida como sanção jurídica às ofensas sofridas” (p. 7). “A guerra é justa e necessária […] porque os Estados estão submetidos ao direito das gentes e, na falta de um tribunal superior, seus argumentos não podem ser impostos senão com a guerra” (p. 13). Desse pensamentos temos três conseqüências, são elas: a guerra pode ser feita legalmente pelos Estados, o príncipe que entra em guerra é um juiz competente para conhecer as pretensões que levam à guerra e, por último, “uma longa série de limites, seja quanto aos seus pressupostos […], seja quanto às suas modalidades […]” (p. 14). A violência nessa guerra deve ser a mínima necessária e os inimigos são submetidos ao direito.

1.2 O aperfeiçoamento da idéia de soberania na época do Absolutismo: Grotius, Hobbes e Locke

“Estas três doutrinas […] estão na base da doutrina da soberania estatal externa e, mais em geral, da teoria internacionalista moderna como um todo” (p. 15). No século XVII o modelo vitoriano entra em crise definitivamente. A secularização e a absolutização envolvem tanto a soberania interna como a externa.

Grotius torna o direito das gentes autônomo em relação ao jusnaturalismo, “definindo-o o que por vontade de todas ou de muitas gentes assume a força de obrigação” (p. 17-18). O direito deriva da vontade dos sujeitos mais fortes internacionalmente.

Hobbes remonta a primeira formulação das idéias do Estado-pessoa, legitimando o atributo da soberania. O que agrada ao príncipe tem força de lei, o príncipe tem o monopólio da produção jurídica e da força coercitiva. Isso se reflete também na soberania externa, porém como todos os outros Estados também são soberanos externamente, cria-se um estado de natureza hobbesiano entre estes Estados (efetivamente e não hipoteticamente).

Locke também compartilha da mesma visão de Hobbes da sociedade internacional. A única diferença (tanto em Hobbes como em Locke) é que o estado de natureza não é composto mais por “homens comuns”, mas por “homens artificiais” (Estados).

“Ao mesmo tempo, seculariza-se, por obra da filosofia jusnaturalista do século XVII, o paradigma vitoriano de legitimação das conquistas coloniais” (p. 23). Pelo fato dessas populações “bárbaras” viverem num “estado de natureza” que deve obrigatoriamente ser superado pelo “estado civil” (que será trazido pelos colonizadores).

Tanto Hobbes como Locke retratam os indígenas no estado de natureza. Para Locke, as terras indígenas infinitas e incultas podem ser apropriadas pelos colonizadores “sem prejuízos de outros”.

“A superação do estado de natureza, internamente, e a sua conservação (ou melhor, instauração), externamente, tornam-se, assim, as duas coordenadas ao longo das quais se desenrola a história teórica e prática dos Estados soberanos modernos […]” (p. 25).

2 Capítulo II – os percursos opostos da soberania interna e da soberania externa na era liberal

2.1 A limitação da soberania interna com a formação do estado de direito. A construção do Estado-pessoa

A oposição entre estado civil e estado de natureza origina duas histórias paralelas e opostas da soberania: “a de uma progressiva limitação interna da soberania, no plano do direito estatal, e a de uma progressiva absolutização externa da soberania, no plano do direito internacional” (p. 27).

O estado de natureza dos Estados modernos atinge seu auge no período que vai da metade do séc. XIX à metade do séc. XX. As soberanias externas e internas seguem caminhos inversos: “aquela se limita tanto quanto esta se libera, em correspondência com a dupla face do Estado, fator de paz internamente e de guerra externamente” (p. 27-28).

Para Rousseau e Hegel, “o povo e os indivíduos de carne e osso, que mesmo nas doutrinas contratualistas liberais, e até em Hobbes, sempre mantinham uma subjetividade autônoma como partes contratantes do […] (contrato de sujeição), anulam-se no Estado: ‘O Estado’, escreve Hegel, ‘é enfim a realidade imediata de um povo específico e naturalmente determinado’, e, por sua vez, ‘o povo, enquanto é articulado em si e constitui um todo orgânico, é o que chamamos de Estado” (p. 29-30).

“É do final do século XIX a construção […] da figura jurídica e não mais simplesmente política do Estado-pessoa como sujeito originário, que funda, mas não é fundado, titular de soberania em lugar do princeps ou do povo” (p. 30).

É na Itália e na Alemanha que o paradigma hobbesiano toma forma, reconhecendo o Estado como única fonte de direito.

Um resíduo desse absolutismo permanece ainda no séc. XIX, porém logo se esvanece com a rigidez constitucional do séc. XX, com normas superiores às ordinárias e com o direito positivo.

Essa constituição subordina a todos, inclusive ao legislativo. “A garantia dos direitos de todos – até mesmo contra a maioria – tornou-se o traço característico do estado democrático de direito” (p. 33).

2.2 A absolutização da soberania externa e a parábola do Estado-nação

“Totalmente diferente e oposto é o percurso simultâneo […] da idéia de soberania externa” (p. 33-34). Essa soberania laica, popular e nacional não tem mais nenhum vínculo com o jusnaturalismo. É nessa época, entre meados do séc. XIX e meados do séc. XX, que essa soberania alcança seu auge. Auge bem representado pelas guerras e conquistas coloniais, caracterizando muito bem o estado de natureza hobbesiano.

“O estado de direito, internamente, e o estado absoluto, externamente, crescem juntos como os dois lados da mesma moeda. Quanto mais se limita – e, através de seus próprios limites, se autolegitima – a soberania interna, tanto mais se absolutiza e se legitima, em relação a outros Estados e sobretudo ao mundo ‘incivil’, a soberania externa” (p. 34-35).

A cidadania internamente representa a base da igualdade, e externamente age como privilégio e como discriminação para os não-cidadãos.

“O Estado configura-se como um sistema jurídico fechado e auto-suficiente. O monopólio exclusivo da força por ele alcançado é afirmado no que diz respeito não apenas ao seu interior […], mas também ao seu exterior […]” (p. 36). O Estado torna-se, então, autônomo no cenário internacional.

Disto se originam duas conseqüências:

                                               i.            Negação do próprio direito internacional.

                                             ii.            Espírito de potência e vocação expansionista e destrutiva (alimentando o paradigma da soberania estatal).

3 Capítulo III – a crise hodierna da soberania

3.1 O nascimento da ONU e a antinomia da soberania no novo direito internacional

O paradigma da soberania externa atinge seu auge e seu declínio na primeira metade do séc. XX, no período das duas guerras (1914-1945). Seu fim é dado pela criação da ONU em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948.

Tais documentos tiram o mundo, ao menos no plano normativo, do estado de natureza e o levam para o estado civil. A soberania deixa de ser livre e se subordina a duas normas fundamentais:

                                               i.            Imperativo da paz.

                                             ii.            Tutela dos direitos humanos.

A carta da ONU equivale a um contrato social internacional.

Neste novo ordenamento, são sujeitos de direito internacional os Estados, os indivíduos e os povos.

Porém esse “ordenamento internacional hodierno pe ineficaz pelo fato de que os seus órgãos não mais equivalem a um ‘terceiro ausente’, mas sim a um ‘terceiro impotente’” (p. 43).

“A história jurídica da soberania é a história de uma antinomia entre dois termos – direito e soberania -, logicamente incompatíveis e historicamente em luta entre si. […] Essa antinomia […] resolveu-se no plano do direito interno com o nascimento do estado constitucional de direito, em virtude do qual o direito regula a si próprio […]” (p. 44).

3.2 O direito internacional levado a sério e a crise do Estado nacional

“Repensar o Estado em suas relações externas à luz do atual direito internacional não é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso quer dizer analisar as condutas dos Estados em suas relações entre si e com seus cidadãos [(guerras, massacres, torturas, etc.)], interpretando-as […] como violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado em seus princípios fundamentais” (p. 46).

O aumento do poderio bélico, a destruição da natureza, a desigualdade e a miséria, etc. tornam o equilíbrio internacional da paz cada vez mais complicado. Por outro lado o fim dos blocos e a interdependência (cultural, econômica, política, ecológica) transformam o mundo numa aldeia global. A rapidez das comunicações também não deixa nenhuma parte do mundo alienada.

Por isso que hoje se torna cada vez mais possível uma integração mundial baseada no direito. A soberania externa sempre teve como justificativa a proteção contra inimigos externos. Porém a decadência de blocos contrapostos, a intensificação da interdependência e a não obediência às diretrizes da ONU (paz, igualdade, desenvolvimento, direitos universais dos homens e dos povos) “estão produzindo uma crise de legitimação desse sistema de soberanias desiguais e de relações cada vez mais assimétricas entre países ricos e países pobres, em que a comunidade internacional se transformou: um sistema que não parece ser tolerável, em longo prazo, pelos próprios ordenamentos políticos dos países avançados, que baseiam sua identidade e legitimação democrática justamente naquelas mesmas promessas e no seu universalismo” (p. 48).

“O Estado nacional como sujeito soberano está hoje numa crise que vem tanto de cima quando de baixo. De cima, por causa da transferência maciça para sedes supra-estatais ou extra-estatais […] de grande parte de suas funções – defesa militar, controle da economia, política monetária, combate à grande criminalidade […] De baixo, por causa dos impulsos centrífugos e dos processos de desagregação interna que vêm sendo engatilhados, de forma muitas vezes violenta, pelos próprios desenvolvimentos da comunicação internacional, e que tornam sempre mais difícil e precário o cumprimento das outras duas grandes funções […]: a da unificação nacional e a da pacificação interna” (p. 48-49).

Porém o paradigma do velho Estado soberano já não serve mais porque o Estado “é demasiado grande para as coisas pequenas e demasiado pequeno para as coisas grandes” (p. 50).

3.3 Por um constitucionalismo de direito internacional

“É verdade que esse paradigma nasceu e ficou até agora amarrado à forma constitucional do Estado-nação. […] O modelo garantista do Estado constitucional de direito […] tem validade seja qual for o ordenamento” (p. 53).

 

* Acadêmico de Direito na UFSC

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Como citar e referenciar este artigo:
WIESE, Hernane. A Soberania no Mundo Moderno – Ferrajoli. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/dip/asobernianomundomoder/ Acesso em: 25 abr. 2024