Antropologia Jurídica

O Direito Guarani Frente Ao Direito Missioneiro E A Defesa Do Direito De Ser Guarani

Rafael Becker*

 

COLAÇO, Thais Luzia. ‘’Incapacidade’’ indígena: tutela religiosa e violação do direto guarani nas missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 2000. Cap. 4.

4 – O DIREITO GUARANI FRENTE AO DIREITO MISSIONEIRO E A DEFESA DO DIREITO DE SER GUARANI

4.1 O DIREITO GUARANI FRENTE AO DIREITO MISSIONEIRO

4.1.1 O Sistema de Liderança Política

O direito Guarani era consuetudinário e adequado a uma sociedade sem estado. O chefe, legitimado por seus atributos pessoais, devia muito à comunidade e recebia, basicamente, prestígio. Sua condição era absolutamente adequada à coletividade e a um conselho dos anciões. Podia, em grupos pequenos, exercer a autoridade judicial buscando sempre um acordo entre partes capaz de manter a paz interna. Somente em tempos de guerra sua autoridade era incrementada. A hereditariedade não era regra. ‘’A sociedade Guarani pré-colonial não era totalmente igualitária, existiam diferenças entre indivíduos ou categorias de indivíduos: homens e mulheres, jovens e velhos, adultos e crianças, personalidades e habilidades. No entanto, essas diferenças não eram suficientes para caracterizar uma sociedade hierarquizada (p.170)’’.

Com a colonização, substituiu-se o direito consuetudinário Guarani pelo direito espanhol e pelo direito canônico, de ‘’caráter formal, escrito e estatal (p.167)’’. ‘’De partidários e solidários aos líderes políticos, os Guarani passam a ser indiretamente súditos do rei da Espanha e subalternos diretos e tutelados dos padres jesuítas (p.170- 171)’’. Nas reduções, o autoritarismo, a disciplina e a repressão faziam-se presentes.

Implantou-se, nas missões, o sistema de cabildo espanhol (‘’prefeito, delegado, juiz, policial, zelador, oficial de justiça, escrivão, procurador, almoxarife, oficial militar, músico, fiscal de ofício e sacristão (p.170)’’) com cargos públicos e eleições indiretas das quais só os próprios membros do cabildo participavam. O padre representava a figura principal dessa sociedade, seguido pelo corregedor e os demais membros do cabildo, pelos caciques e pelos participantes de congregações religiosas. Dessa forma a sociedade Guarani hierarquizou-se. Tornaram-se ‘’os tutores dos índios os novos chefes políticos, econômicos e religiosos, comandando toda a vida nas reduções (p.169)’’.

A coletividade e o direito consuetudinário foram substituídos pela hierarquia e o direito espanhol. Caciques se aliaram aos missionários em busca de vantagens pessoais, tornando-se súditos do rei de Espanha, obtendo cargo político vitalício e hereditário. Entre seus privilégios constavam a isenção de impostos, moradia, alimentação, vestuário, honrarias, estudo para os filhos, posse de terras e amenização de julgamento em caso de crime.

 

4.1.2 A Guerra

Os Guarani eram povos guerreiros. Era uma honra lutar sem temer a morte. Os objetivos das guerras eram: ‘’a expansão territorial, o sentimento de vingança que passava de geração a geração, a vitimação de cativos, a discriminação étnica, orapto de mulheres e o prestígio social (p.171)’’.

A presença missioneira modificou completamente as relações entre tribos, especialmente, pois algumas se aliaram aos espanhóis cumprindo com dois dos objetivos destes: a defesa das fronteiras espanholas do sul e a garantia de segurança aos colonos.

O exército Guarani assumiu as mesmas características da hierárquica estrutura militar espanhola incluindo armas de fogo e cavalaria. Não mais se praticou a antropofagia com índios perdedores, que poderiam ser escravizados.

 

4.1.3 O Direito Civil

A sociedade Guarani pré-colonial admitia três noções de propriedade. A propriedade coletiva constituía o próprio território da tribo pertencente a todos onde se praticavam ‘’a caça, a pesca, o extrativismo e a agricultura (p.173)’’. A terra era parcelada entre as famílias que a devolviam à comunidade esporadicamente num sistema de alternância. A produção era propriedade de cada família bem como os instrumentos de trabalho. Os excedentes redistribuíam-se. Cada um tinha seus objetos pessoais, mas como a troca era muito comum, o que melhor caracteriza a propriedade Guarani é o caráter rotativo.

O teýy, um grupo macrofamiliar, chegava a comportar sessenta famílias numa habitação única. Constituía a célula da comunidade Guarani. O matrimônio mantinha o grupo coeso, haja vista que a família se fazia elemento básico da sociedade indígena. No entanto, as relações matrimoniais admitiam grande flexibilidade.

Não havia, para os índios, a separação de recreação e produção. Produzia-se o necessário para a subsistência e ainda faziam-se festas e ritos. O trabalho era dividido pelo sexo e pela idade. As mulheres cuidavam do trabalho doméstico, da agricultura e do transporte de carga. Os homens, da caça, pesca, construção –armas, casas, embarcações- e guerra.

Com as missões, o império espanhol subjugou os índios e obrigou a conversão ao cristianismo. Estruturou-se a propriedade missioneira, ‘’assim dividida: a propriedade provincial que correspondia ao conjunto dos Trinta Povos; a propriedade interreducional, caracterizada pela posse conjunta ou por obra comum de duas ou mais reduções; a propriedade municipal, que era de uma única redução, composta pelo território das diversas tribos que lhe eram anexadas; a propriedade cacical, normalmente um bem imóvel reservado aos caciques; a propriedade familiar, formada por objetos de uso exclusivo da família; a propriedade individual correspondia à posse real do indivíduo de armas de caça e pesca, vestimentas e adornos (p.175)’’.

O cabildo determinava as terras disponíveis a um cacique que as distribuía entre as famílias até seu esgotamento. Estimulou-se a propriedade com a contenção da produção de cada família em cada família. Mas, o que era produzido em terras comunitárias comercializava-se, servia para impostos e para manter oficinas e igrejas.

Toda a noção de trabalho indígena caiu por terra. Pela produtividade e desenvolvimento econômico, foi traçado um esquema labutar que englobava os trabalhos no Abambaé –bens familiares e individuais- e no Tupambaé –bens coletivos-. Disciplina rígida foi empregada. ‘’Os jesuítas tentavam incutir nos indígenas a responsabilidade individual no trabalho e a valorização da propriedade individual (p.176)’’. O trabalho continuou a ser dividido entre sexo e idade, mas com novas função e com a adição de metas e prazos. Os homens trabalhavam na agricultura e em ofícios importados da sociedade européia –tecelão, ferreiros, sapateiros, etc-, além de envolverem-se em ofícios burocrático-administrativos e militares. As mulheres cuidavam dos afazeres artesanais –fiação do algodão- e domésticos.

Reduziu-se a família ao seu núcleo cristão –pai, mãe e filhos-. A poligamia dos caciques foi abolida. Alguns tipos de casamentos, como os entre homens mais velhos e mulheres mais novas ou como os incestuosos, foram também proibidos. Idéias de virgindade, fidelidade, castidade, celibato, sexo somente para reprodução e abstinência sexual foram introduzidas na cultura Guarani. Separavam-se os sexos em atividades comunitárias como as religiosas e laboriais.

 

4.1.4 O Direito Penal

Para os Guarani, havia clara distinção entre direito penal privado e público. O primeiro englobava infrações diretas entre pessoas e consistia na vingança. O segundo representava tudo aquilo que ia contra a coesão social. Nesse último sentido, eram crimes: ‘’a caça predatória, o furto, o homicídio, o estupro, o rapto, o adultério feminino, o incesto, a feitiçaria, a revelação de um segredo iniciático, as infrações religiosas e o não-cumprimento de obrigações (p.184)’’. Expulsão, censura pública e morte eram as devidas punições que iam de acordo somente com o delito, sem noções de culpa –ou dolo- ou prestígio do agente. O senso de responsabilidade criminal era, pois, majoritariamente, coletivo e residia na culpa de atos que causavam desequilíbrio da ordem da vida terrena dos indígenas. Justo por isso o atrito entre grupos não era incomum.

Nas reduções todo o direito penal passou a ser público com base na moral cristã. À autoridade tutelar, tudo cabia. Foram probidos: ‘’o adultério de ambos os sexos, o concubinato, o incesto, a poligamia, a sodomia, a bestialidade, a luxúria, as bebedeiras, o escândalo, as festas pagãs, a vadiagem, a indisciplina, a feitiçaria, a rixa, a lesão corporal, o aborto, o homicídio, o envenenamento, a deserção, o roubo e a antropofagia (p.185)’’. Havia castigos físicos –açoite, acorrentamento, arrastamento-, de ordem moral –orações, tosa do cabelo, censura-, prisão –perpétua- e banimento. A aplicação de tais elementos coercitivos variava por tribo, sexo, idade e prestígio, no caso do abrandamento das penas dos caciques.

Para manter a ordem foi criado um sistema de vigilância. A catequese contribuiu incutindo a idéia de pecado na mentalidade dos índios. Isso tudo tornou os índios ‘’incapazes’’ pelo seu aprisionamento e submissão, o que revela a não assimilação da cultura européia nas sociedades autóctones da América.

 

4.1.5 A Transformação dos Princípios do Direito Guarani Pré-Colonial A prioridade dos interesses coletivos sobre os individuais

A vontade da maioria não prevalece mais na eleição da autoridade, o padre, assim como a propriedade individual cresce em relação à coletiva.

 

A responsabilidade coletiva

A responsabilidade por um crime recai somente sobre o indivíduo, não mais havendo o envolvimento de seu grupo (tribo ou família).

A solidariedade Desintegra-se de maneira semelhante à responsabilidade coletiva. A grande família Guarani se esfacela, juntamente com costumes de solidariedade não ligados ao direito, como as festas.

 

A reciprocidade

Semelhante às duas questões anteriores, a reciprocidade cessa também sobre a rotatividade dos bens e a redistribuição da produção.

 

*Acadêmico de Direito da UFSC

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Como citar e referenciar este artigo:
BECKER, Rafael. O Direito Guarani Frente Ao Direito Missioneiro E A Defesa Do Direito De Ser Guarani. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/antropologia-juridica/odtodeserguara/ Acesso em: 29 mar. 2024