Filosofia do Direito

Resenha da Obra: Uma Questão de Princípio (Ronald Dworkin)

Resenha da Obra: Uma Questão de Princípio (Ronald Dworkin)

 

 

Ana Paula Brandão Ribeiro*

 

 

A presente obra é formada por seis partes. A primeira delas – O fundamento político do Direito – (DWORKIN, 2005, p. 3) estuda o papel que as convicções políticas devem desempenhar nas decisões que os vários funcionários e cidadãos tomam sobre o que é o Direito e quando ele deve ser imposto e obedecido.  Além disto, nesta mesma parte, o autor propõe uma diferenciação entre os termos princípio e política.

 

A parte dois – O Direito como interpretação – (DWORKIN, 2005, p.175) sustenta a afirmação de que a análise jurídica é fundamentalmente interpretativa, e, ainda, a tese de que o direito se assemelha à literatura, principalmente vista esta sobre a hipótese estética.

 

 A terceira parte – Liberalismo e Justiça – (DWORKIN, 2005, p.269) volta-se para as questões de teoria política que se encontram no pano de fundo (leia-se, paradigma), explorando, desta forma, o presente estado da teoria liberal.

 

A visão econômica do Direito, trabalhada na quarta parte da obra, (DWORKIN, 2005, p.351) propõe, novamente, uma junção das teorias política e jurídica, enfatizando a necessidade de se efetivar o direito de cada pessoa, singularmente considerada.

 

 Por sua vez, as duas últimas partes – A discriminação inversa – (DWORKIN, 2005, p.437) e – A censura e a liberdade de imprensa – (DWORKIN, 2005, p.497) buscam ilustrar o valor prático e a importância da distinção entre argumentos de princípio e de política.

 

A presente exposição da obra não se fará a partir de uma análise isolada de cada uma de suas partes, tendo em vista que o seu entendimento se faz a partir de uma interpretação extensiva. Tal exposição será feita de forma seqüencial, concatenada, uma vez que partirá das principais considerações do autor, de suas principais conceituações, para se chegar aos exemplos práticos colocados pelo mesmo.

 

Dworkin inicia sua obra partindo de uma questão que há muito se discutiram a respeito e muito já se perguntaram, mas, sobre a qual nunca obtiveram uma resposta precisa: o que é o Direito? Esta é uma indagação que permeia os pensamentos dos mais célebres pensadores.  Esta falta de resposta ou, como queira alguns, a pluralidade de respostas que se encontra para o termo, deve-se justamente ao fato de sua complexidade.

 

O autor, nessa obra, propõe um conceito para o termo que, aparentemente simplista em sua semântica, possui tamanha complexidade que somente se faz possível entendê-lo por meio dos casos concretos. Para o referido autor, Direito é princípio.  Partindo deste conceito, que somente é obtido a partir da leitura de sua obra como um todo, faz-se mister estabelecer uma diferenciação entre dois termos que se encontram presentes em toda a sua obra, quais sejam: princípio e política.

 

Princípios, na visão de Ronald Dworkin, seriam, de forma objetiva, os direitos individuais que cada um possui. Por sua vez, política é o conjunto de metas utilizadas para se alcançarem estes princípios – leia-se direitos individuais. Estas metas somente serão consideradas válidas desde que afirmativas destes direitos individuais. Desta forma, o direito público somente será de todos se, e somente se, for de cada um.

 

A partir destes conceitos, Dworkin, em seu capitulo três, intitulado Princípio, Política e Processo (DWORKIN, 2005, p.105) expõe a assertiva de que toda decisão, seja ela judicial ou não, será necessariamente política. Tal afirmativa parte do pressuposto de que o juiz, assim como qualquer indivíduo, é formado por uma gama de pré-conceitos, de pré-compreensões, de visões de mundo, conforme Gadamer já lecionava. Desta forma, não existe decisão neutra, mas antes, decisão imparcial. Sendo assim, o juiz, ao proferir uma sentença e, consequentemente, “optar” por uma das partes, realiza uma tarefa política. Ou seja, querendo ou não, deve ele se posicionar e fundamentar sua decisão; decisão esta que, além de pertencer a uma lógica binária do certo ou errado, do sim ou do não, é, conforme dito, formada por toda uma bagagem de pré-conceitos, própria de toda pessoa. 

 

Posteriormente a esta colocação, Dworkin expõe a possibilidade da desobediência civil (DWORKIN, 2005, p.153) como instituto democrático. Em sua exposição, o autor utiliza-se de exemplos, por meio dos quais ele procura demonstrar que desobediência civil difere-se de atividade criminosa. Sendo assim, ele deixa claro que o fato de que uma pessoa, individualmente considerada, não concordar com determina decisão judicial não se trata de atividade ilícita. Da mesma forma, o fato de que esta mesma pessoa considere injusto o valor dos impostos cobrados pelo Estado não configura crime. Tudo isso é possível em um Estado Democrático de Direito que leve em conta os princípios, ou seja, que busca preservar o direito individual de cada um e que disponha de meios para vê-los efetivar. O que é a coisa certa para as pessoas que acreditam que uma decisão política é errada ou imoral? Estas e outras perguntas são lançadas por Dworkin como forma de propor reflexões acerca do tema.

 

Seqüencialmente, o autor, na segunda parte de sua obra – O Direito como interpretação – (DWORKIN, 2005, p.175) deixa claro que o Direito, ou melhor, o conceito deste instituto jurídico deste ser visto como um conceito interpretativo, numa concepção de integridade. A partir desta visão de integridade, que será mais detalhada adiante, Dworkin expõe uma questão: “Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos?” ou “quando não existe nenhuma resposta certa para uma questão de Direito”? (DWORKIN, 2005, p.175). Antecipando o pensamento do autor, faz-se necessário deixar claro que existe sim uma resposta certa para uma questão de Direito. E, consequentemente, existe também uma resposta errada. Entretanto, esta resposta certa ou errada não é única. Ela varia conforme cada caso concreto. Da mesma forma, não existe necessariamente um caso fácil ou um caso difícil, mas antes, existe um caso concreto. Dependendo da maneira como ele é colocado, um caso fácil pode vir a se tornar um caso difícil, assim como um caso difícil pode vir a se tornar um caso fácil. Portanto, não existe uma diferenciação rígida entre caso fácil e caso difícil, bem como entre regras e princípios, uma vez que tal diferenciação somente se faz possível dentro de um contexto específico. A idéia de que algumas questões jurídicas não têm nenhuma resposta certa, porque a linguagem jurídica às vezes é imprecisa (DWORKIN, 2005, p.188), resulta  da razão dos juristas discordarem quanto às técnicas de interpretação e justificação usadas para responder tais questões. Ou seja, a resposta certa ou errada somente é obtida a partir da análise do contexto específico.

 

Neste sentido, Dworkin expõe que o Direito se assemelha à literatura (DWORKIN, 2005, p.217). Ele diz que esta semelhança ocorre quando há uma interpretação flexível do Direito. Ou seja, ele se assemelha na medida em que esteja pronto a reformular soluções que não se adequam mais àquele paradigma. Nesta parte, pode-se lembrar das colocações de Gadamer, quando o mesmo diz que o sentido atual do texto deve ser contextualizado a partir da história, não como mera repetição do passado, mas no sentido de atualização do texto jurídico, enquanto fusão de horizontes de sentido entre o texto originário e o interprete atual (DWORKIN, 2005, p.219). Além disso, assim como a hipótese estética da literatura, que objetiva, através da leitura e interpretação encontrar no texto aquilo que de melhor ele lhe oferece, além de se mostrar como a melhor obra de arte que este mesmo pode ser, deve o intérprete do Direito, igualmente, buscar em cada disposição jurídica aquilo que de melhor ela pode oferecer a um caso concreto (DWORKIN, 2005, p.221).

 

Vivemos em uma sociedade plural, demasiadamente complexa, ou seja, uma sociedade “colcha de retalhos. Nesta sociedade, não há como se criar um livro de regras que abarque todas as situações pelas quais a sociedade venha a passar. Desta forma, faz-se mister um Estado Democrático de Direito centrado nos direitos individuais. Por saber o juiz que o livro de regras é pobre demais, simplista e insuficiente demais para uma sociedade plural como a nossa, deve este juiz ultrapassar o legalismo. Entretanto, para que isto ocorra, não pode este mesmo juiz INVENTAR o Direito, mas antes, flexibilizar ou adaptar o Direito. Segundo o autor, isto não se trata de INVENÇÃO e sim de DESCOBERTA. Descoberta aqui entendida como aplicar o melhor direito para o caso em concreto. Neste viés, quando se fala em poder discricionário do juiz, não se fala em invenção, tendo em vista que a decisão deste encontra-se envolta pelos princípios, entendidos estes como direitos individuais das partes envolvidas.

 

E quais princípios seriam esses?

 

Dworkin não fala em hierarquia entre princípios, mas considera que existem dois dentre eles que representam o cerne do ordenamento jurídico e, por meio dos quais se desencadeiam todos os demais. São eles: a igualdade e a liberdade. Tais princípios serão mais bem compreendidos a partir da colocação do pensamento de Dworkin, na parte três – Liberalismo e Justiça – da presente obra, que segue abaixo.

 

Na parte três de seu livro – Liberalismo e Justiça – Dworkin lança a idéia do que venha a ser o liberalismo. Para o referido autor, de forma objetiva, liberalismo seria considerar a todos como iguais (DWORKIN, 2005, p.281). Tal conclusão parte da idéia de princípios, exposta do início da obra. Isto porque, segundo o mesmo, todos os direitos individuais devem ser considerados; desta forma, para que exista igualdade, necessário se faz tratar a cada pessoa, individualmente considerada, com igual consideração e respeito. Somente desta forma será possível obter a liberdade. Assim sendo, igualdade é a sombra da liberdade ou, não há que se falar em liberdade sem que os direitos individuais de cada pessoa sejam respeitados.

 

Dworkin critica a visão simplista de igualdade – tratar a todos como iguais – bem como a visão complexa do mesmo instituto – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam (DWORKIN, 2005, p.320). A primeira idéia de igualdade é simplista demais par a sociedade plural na qual vivemos. Já a segunda, ela falha em um aspecto: qual o critério diferenciador ou medidor de igualdade ou desigualdade? Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam é algo indeterminado, raso demais, para não dizer abstrato (DWORKIN, 2005, p.324).

 

Em face disto, Dworkin propõe a idéia de que igualdade significa tratar a todos de forma igual, e não igualmente, como dizem alguns. Como exposto, tratar igualmente ou desigualmente é algo muito vago, muito indeterminado. Ao passo que tratar de forma igual, percebe-se que esta igualdade refere-se a cada pessoa, individualmente considerada (DWORKIN, 2005, p 327).

 

Em seu capítulo 11 (DWORKIN, 2005, p.329) – Um Estado Liberal deve patrocinar a arte? – o autor deixa claro que não se pode impor critério de “vida boa” `as pessoas. Se todas são iguais e, portanto, se todas são livres, cabe a cada uma, a partir de sua visão de mundo, de seus próprios pré-conceitos escolherem aquilo que de melhor lhes compete. Pode o Estado ditar qual o gosto artístico de uma pessoa? Pode uma autoridade dizer que a exposição do quadro “Aristóteles contemplando Homero” é mais importante que se assistir a uma partida de futebol? (DWORKIN 2005, p.331). A resposta é clara: não. Se igualdade é considerar cada um de forma igual e, por conseqüência, possuir cada um a sua liberdade, a escolha de arte ou de vida boa compete única e exclusivamente a cada pessoa em particular.

 

Partindo da assertiva acima é que o autor critica a visão econômica do Direito, em seus capítulos 12 e 13.  A riqueza não pode ser considerada um valor em si. Muito pelo contrário,    a questão da maximização da riqueza ou, ainda, a questão da visão utilitarista do Direito, para Dworkin, é, sem sobra de dúvidas, um atentado ao próprio Estado Democrático de Direito. Não se trata de um problema de ganho. Trata-se de respeito aos direitos individuais. Assim sendo, a idéia do maior bem ao maior número de pessoas trata-se de algo descabido, frente ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Não se pode, por exemplo, ponderar a igualdade e a liberdade para preservar a segurança nacional. Estes dois princípios são inegociáveis e, portanto, não aceitam relativização. O Judiciário, por exemplo, visto sobre estas perspectiva, não deve realizar suas atividades com base no interesse coletivo. Uma decisão judicial não tem por fim satisfazer a maioria, mas antes, garantir os direitos individuais de cada um, ou seja, deve tratar as partes com igual consideração e respeito buscando uma solução justa para aquele caso, e não para uma coletividade.  Daí, Dworkin ter falado em esferas de justiça e ter, por conseguinte, colocado fim à idéia de que exista um conceito positivo de justiça. Como se percebe, tal conceituação deve ser feita a partir da análise de cada caso concreto, obedecidos os princípios da igualdade e liberdade, que corroboram a democracia.

 

Mas, o que vem a ser a democracia? Decisão da maioria?  Governo do povo?

 

Para o autor, democracia definitivamente não significa decisão ou vontade da maioria. Não se pode considerar tal instituto como sendo a decisão da maioria porque, conforme exposto, se assim fosse não se estaria preservando os direitos individuais de cada um. Ou seja, não se estaria tratando a todos de forma igual e, por conseguinte, estar-se-ia tolhendo a liberdade de cada indivíduo. Portanto, sem igualdade e sem liberdade, não há que se falar em democracia ou em Estado Democrático de Direito. Mas, por outro lado, democracia significa sim governo do povo. Tal expressão é realmente ampla, mas Dworkin, em sua obra, busca demonstrar que ela se efetiva a partir do momento em que todos os cidadãos, individualmente considerados, se vêem naquele projeto político como parceiros e co-responsáveis pelo sucesso do mesmo.

 

Na parte cinco de sua obra (DWORKIN, 2005, p.437) – A discriminação inversa -, Dworkin lança mão de alguns exemplos para demonstrar que a questão de se destinar, por exemplo, um número de vagas aos negros nas faculdades não se trata de aumentar ainda mais a discriminação desta classe. Procura-se, outrossim, pôr fim a todo um estigma que acompanha estas pessoas desde a época da escravidão. Estas ações de forca tarefa, como são chamadas pelo autor (DWORKIN, 2005, p.437), tratam-se de uma conveniência social que buscam promover uma consciência na sociedade e ao próprio negro. Daí, dizer que toda política de ação afirmativa deve ser passageira. O que justifica, então, o fato de um branco que, a princípio nada tem a ver com este problema, ter que, de certa forma, perder um direito individual? Dworkin diz que isto se trata de um problema nacional e somente desta forma é que se poderá tratar a todos como iguais, na medida em que se está buscando preservar o direito de cada um e não, necessariamente, da classe negra ou da classe branca da sociedade.

 

 Por fim, na parte seis de sua obra (DWORKIN, 2005, p.495) – A censura e a liberdade de imprensa -, Dworkin deixa claro, logo de início, que é um problema da teoria liberal determinar até que ponto as pessoas devem ter o direito de fazer algo errado. Dworkin diz que, sendo um indivíduo considerado igual às outras pessoas, na medida em que possui seus direitos individuais, consequentemente este mesmo indivíduo é livre o bastante para expor, por exemplo, sua forma de pensar acerca das decisões judiciais, da política vigente ou sobre qualquer outro assunto (DWORKIN, 2005, p.498). Assim sendo, “a priori” pode-se fazer tudo. Entretanto, a partir do momento em que este pensamento é colocado na arena pública, em que ele passa pelo espaço público, ou seja, em um momento “a posteriori” é que se poderá dizer que determinado posicionamento fere algum indivíduo ou não. Sendo tal resposta afirmativa, percebe-se que disto resultaria em uma afronta ou atentado ao princípio da igualdade, uma vez que não se estaria tratando a todos com igual consideração e respeito. Uma vez ofendido este princípio, igualmente estará o princípio da liberdade. E, sendo os dois o cerne do ordenamento jurídico e, por sua vez, sendo estes os desencadeadores dos demais princípios, não há que se falar em democracia e, muito menos, em Estado Democrático de Direito (DWORKIN, 2005, p.534).

 

Portanto, a partir da obra “Uma Questão de Princípio”, pode-se concluir que, para Dworkin, se existe um conceito para o instituto Direito, esse deve ser entendido como um conceito interpretativo numa concepção de integridade ou, para resumir, o Direito é princípio. Assim sendo, ele deve analisado com base em cada caso concreto. Para ele, normas e princípios, casos fáceis e casos difíceis não possuem uma diferenciação rígida. Tudo depende do contexto. Mais ainda: expõe o referido autor que não existe ponderação entre princípios[1]. Isto porque Dworkin trabalha o Direito como integridade, conforme já exposto. Por fim, ele deixa claro que este Direito, enquanto princípio, somente se realizará de forma efetiva a partir do momento em que o intérprete – leia-se aqui, aplicador do Direito – fornecer uma decisão pautada pela análise daquele caso concreto, de maneira tal que todos os indivíduos formadores daquela lide sejam tratados com igual consideração e respeito.

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luis Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

 

* Advogada, pós-graduanda em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da PUC Minas.

 

 

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[1] Ao contrário de Dworkin, Robert Alexy trabalha com a idéia de ponderação de princípios.

Como citar e referenciar este artigo:
RIBEIRO, Ana Paula Brandão. Resenha da Obra: Uma Questão de Princípio (Ronald Dworkin). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resenhas/filosofiadoreito/resenha-da-obra-uma-questao-de-principio-ronald-dworkin/ Acesso em: 29 mar. 2024