STF

Informativo nº 581 do STF

 

Brasília, 5 a 9 de abril de 2010 Nº 581

 

Data (páginas internas): 14 de abril de 2010

 

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

Sumário

Plenário

Composição de TRT: Elaboração de Lista e Competência do Supremo – 2

Mandado de Segurança: Resolução do CNMP e Vedação do Exercício de outra Função Pública – 1

Mandado de Segurança: Resolução do CNMP e Vedação do Exercício de outra Função Pública – 2

ADI e Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso – 1

ADI e Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso – 2

Atividades Nucleares e Competência da União

Abuso do Poder de Litigar e Comunicação à OAB Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 1

Abuso do Poder de Litigar e Comunicação à OAB Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 2

Abuso do Poder de Litigar e Comunicação à OAB Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 3

Abuso do Poder de Litigar e Comunicação à OAB Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 4

1ª Turma

ED: Inquérito Policial e Direito de Vista – 2

Saídas Temporárias Automatizadas

Busca e Apreensão em Escritório de Advocacia

Prefeito e Negativa de Execução de Lei

Reincidência e Confissão Espontânea: Concurso

2ª Turma

Ação Penal e Trancamento mediante ‘Habeas Corpus’

Transcrições

Proteção Integral à Infância e à Juventude – Omissão do Poder Público – Política Pública Delineada na Constituição – Legitimidade do Controle Jurisdicional das Omissões Estatais (RE 482611/SC)

Inovações Legislativas

 

Plenário

 

Composição de TRT: Elaboração de Lista e Competência do Supremo – 2

Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu, em parte, mandado de segurança, impetrado contra ato do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região e da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Estado do Rio de Janeiro, e, preventivamente, contra ato do Presidente da República, para determinar a este último que se abstenha de deliberar sobre a lista tríplice que está em seu poder, para o preenchimento de vaga no TRT da 1ª Região decorrente do falecimento de desembargador, até o julgamento definitivo dos mandados de segurança 26438/DF e 26787/DF. Na espécie, o presidente do TRT da 1ª Região devolvera a primeira lista sêxtupla remetida pela OAB-RJ para preenchimento de vaga do cargo de juiz daquela Corte destinada à representação dos advogados. Contra tal ato, impetrara-se, perante o Supremo, um mandado de segurança, no qual se informara que o Conselho Plenário da OAB-RJ anulara todo o procedimento interno de elaboração da referida lista sêxtupla. Impetrara-se, ainda, um segundo mandado de segurança contra aquele ato e o da OAB-RJ por meio do qual se anulara a lista. Requereram, nesses writs, o deferimento da medida liminar para sustar todos os atos relativos ao processo eletivo em curso na OAB-RJ e para que se determinasse ao Presidente da República que não efetuasse qualquer nomeação de juízes para o TRT da 1ª Região relativamente à vaga em questão. Em 29.10.2007, o Supremo, resolvendo questão de ordem, entendera ser da competência do TRT da 1ª Região o julgamento desses mandados de segurança. Após esses fatos, impetrara-se o presente mandado de segurança, questionando-se a continuidade da elaboração de nova lista sêxtupla pela OAB-RJ, independentemente do aguardo da decisão final naqueles writs e da liminar concedida no MS 26787/DF, bem como a votação e formação da lista tríplice pelo TRT da 1ª Região e seu envio ao TST, para posterior remessa ao Presidente da República — v. Informativo 546. Tendo em conta o fato de, em questão de ordem, ter sido declinada a competência para o TRT da 1ª Região para julgamento dos dois mandados de segurança impetrados anteriormente, a fim de que lá seja apreciada a questão de mérito, entendeu-se que o pronunciamento do Supremo, nos presentes autos, estaria restrito a determinar ao Presidente da República que não nomeasse ninguém até o julgamento daqueles writs, com o objetivo de assegurar a eficácia prática das decisões que vierem a ser prolatadas pelo TRT.

MS 27244/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 7.4.2010.  (MS-27244)

 

Mandado de Segurança: Resolução do CNMP e Vedação do Exercício de outra Função Pública – 1

Os membros do Ministério Público, especialmente aqueles que ingressaram na instituição após a promulgação da vigente Constituição, não podem exercer cargos ou funções em órgãos estranhos à organização do Ministério Público, somente podendo titularizá-los, se e quando se tratar de cargos em comissão ou de funções de confiança em órgãos situados na própria estrutura administrativa do Ministério Público. Com base nesse entendimento, o Tribunal indeferiu mandado de segurança impetrado por promotor de justiça contra ato do Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, consubstanciado na Resolução 5/2006, que disciplina o exercício de atividade político-partidária e de cargos públicos por membros do Ministério Público. Na espécie, o impetrante, promotor de justiça desde 1994, teria sido convidado, em 30.4.2007, pela então Ministra de Estado do Meio Ambiente, a assumir o cargo de Diretor de Planejamento, Administração e Logística do IBAMA. Preliminarmente, a Corte, por maioria, conheceu do writ, na linha do que decidido no MS 26325/DF (DJU de 1º.2.2007) por entender que, em razão de a resolução dirigir expressa proibição aos membros do parquet, teria efeitos concretos, alcançando, de maneira direta e imediata, a posição jurídica do impetrante. Possuiria, portanto, por si só, força suficiente para impor as vedações nela contidas, tanto que a aceitação do convite feito ao impetrante sofrera a inibição imediata decorrente da incidência das cláusulas proibitivas dela constantes. Vencidos, no ponto, os Ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não o conheciam por reputar estar-se tratando de impetração contra lei em tese.

MS 26595/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 7.4.2010.  (MS-26595)

 

Mandado de Segurança: Resolução do CNMP e Vedação do Exercício de outra Função Pública – 2

Quanto ao mérito, asseverou-se que a Resolução 5/2006 teria sido editada dentro das prerrogativas constitucionalmente atribuídas ao CNMP e que a proibição do exercício de outras funções por membros do Ministério Público estaria expressamente prevista no art. 128, § 5º, II, d, da CF (“Art. 128.§ 5º – Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: … II – as seguintes vedações: … d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) exercer atividade político-partidária;”). Observou-se que haveria, então, apenas duas exceções constitucionais: o exercício de uma função de magistério, prevista no já citado dispositivo constitucional, e a hipótese do art. 29, § 3º, do ADCT, quando o membro do Ministério Público, admitido antes da promulgação da CF/88, tiver feito a opção pelo regime jurídico anterior (“Art. 29. Enquanto não aprovadas as leis complementares relativas ao Ministério Público e à Advocacia-Geral da União, o Ministério Público Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, as Procuradorias e Departamentos Jurídicos de autarquias federais com representação própria e os membros das Procuradorias das Universidades fundacionais públicas continuarão a exercer suas atividades na área das respectivas atribuições. … 3º – Poderá optar pelo regime anterior, no que respeita às garantias e vantagens, o membro do Ministério Público admitido antes da promulgação da Constituição, observando-se, quanto às vedações, a situação jurídica na data desta.”). Acrescentou-se que a inserção da referida vedação nas leis complementares, reguladoras dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, não seria facultativa e teria sido repetida pelo art. 44, IV, da Lei Orgânica do Ministério Público Nacional. Concluiu-se que o impetrante, desde 1994, não teria direito de assumir qualquer outro cargo público fora da administração do próprio Ministério Público. Outros precedentes citados: RMS 25500/SP (DJU de 18.11.2005); MS 26584/DF (DJU de 1º.8.2007).

MS 26595/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 7.4.2010.  (MS-26595)

 

ADI e Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso – 1

O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente pedido formulado em ação direta proposta pelo Procurador-Geral da República para declarar a inconstitucionalidade das seguintes expressões e dispositivos da Constituição do Estado de Mato Grosso: da expressão “do Procurador-Geral do Estado”, contida no inciso XXII do art. 26; da expressão “e o Procurador-Geral do Estado”; constante do inciso XXIII do mesmo art. 26; da expressão “à Procuradoria-Geral do Estado”, do art. 39; da íntegra do art. 67; da íntegra do parágrafo único do art. 110; da expressão “cuja iniciativa é facultada ao Procurador-Geral do Estado”, do caput do art. 111; da expressão “e escolhido dentre os integrantes da carreira de procurador, através da lista tríplice elaborada pelo Colégio de Procuradores, para mandato de dois anos, permitida uma recondução”, do § 2º do art. 111; da íntegra dos incisos II e VI do art. 112; da expressão “assegurando-se-lhes independência no exercício das respectivas atribuições”, do parágrafo único do art. 112; e da íntegra do inciso II do art. 113. Entendeu-se que a norma do art. 26, XXII e XXIII, ao condicionar a exoneração do Procurador-Geral do Estado à aprovação do Poder Legislativo, estaria em confronto com os artigos 84, XXV, e 131, § 1º, da CF, por restringir as prerrogativas do Chefe do Poder Executivo. Considerou-se, ademais, que o art. 39, ao conferir à Procuradoria- Geral do Estado iniciativa em matéria de processo legislativo, violaria o art. 61, caput, § 1º e II, da CF, por usurpar competência do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre matérias exclusivas de sua iniciativa. Reputou-se que o art. 67, que tipifica crimes de responsabilidade, usurparia competência privativa da União para dispor sobre a matéria (CF, artigos 22, I, 85, parágrafo único), segundo orientação fixada pela Corte (Inq 1915/RS, DJU de 28.10.2004).

ADI 291/MT, rel. Min. Joaquim Barbosa, 7.4.2010.  (ADI-291)

 

ADI e Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso – 2

No que se refere ao art. 110, parágrafo único, que estabelece como princípios institucionais da Procuradoria-Geral do Estado a unidade, a indivisibilidade, a autonomia funcional e a administrativa, apontou-se afronta ao disposto no art. 127, §§ 1º e 2º, da CF, já que a norma estadual estaria a repetir normas federais aplicáveis ao Ministério Público e à Defensoria Pública, não obstante as atribuições dos Procuradores do Estado não guardarem pertinência com as dos membros daquelas instituições, que têm deveres e atribuições próprios, inconfundíveis com as de agentes sujeitos ao princípio hierárquico. Quanto ao art. 111, que confere faculdade de iniciativa legislativa ao Procurador-Geral do Estado no que tange à organização e ao funcionamento da Procuradoria Geral do Estado, vislumbrou-se afronta aos artigos 131 e 132 da CF. Em relação ao § 2º do art. 111, que prevê que o Governador do Estado nomeará o Procurador-Geral do Estado, e que este será escolhido dentre os integrantes da carreira de Procurador, por meio de lista tríplice elaborada pelo Colégio de Procuradores, também reconheceu-se desrespeito aos artigos 131 e 132 da CF, por caber ao Governador do Estado, na linha de recente precedente do Tribunal (ADI 2682/AP, DJE de 19.6.2009), escolher e nomear para o cargo em comissão de Procurador-Geral do Estado aquele que, no seu entender, melhor desempenhará essa função. No que tange aos incisos II e IV e ao parágrafo único do art. 112, que, respectivamente, elencam funções institucionais da Procuradoria Geral do Estado e conferem independência aos seus integrantes no exercício de suas atribuições, verificou-se ofensa ao art. 132, da CF, haja vista terem sido estabelecidas outras funções além das contidas no texto federal, extrapolando-se, ademais, as prerrogativas taxativamente nele estipuladas. Por fim, quanto ao inciso II do art. 113, que assegura aos Procuradores do Estado a inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do Colégio de Procuradores, concluiu-se que a garantia em questão extrapolaria os limites constitucionais, já que somente conferida aos magistrados e aos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública (CF, artigos 93, VIII; 95, II; 128, § 5º, b; 134, parágrafo único). Vencido, em parte, o Min. Dias Toffoli, que divergia apenas quanto ao parágrafo único do art. 110, e a Min. Cármen Lúcia, que divergia quanto ao parágrafo único do art. 110 e quanto à parte final da expressão contida no § 2º do art. 111, todos dispositivos da Constituição estadual.

ADI 291/MT, rel. Min. Joaquim Barbosa, 7.4.2010.  (ADI-291)

 

Atividades Nucleares e Competência da União

O Tribunal, por maioria, julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Governador do Estado de São Paulo para declarar a inconstitucionalidade da Lei paulista 6.263/88, que prevê medidas de polícia sanitária para o setor de energia nuclear no território da referida unidade federada. Entendeu-se que a norma estadual invade a competência da União para legislar sobre atividades nucleares (CF, art. 22, XXVI), na qual se inclui a competência para fiscalizar a execução dessas atividades e legislar sobre essa fiscalização. Aduziu-se competir, também, à União, explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os princípios e condições que estabelece (CF, art. 21, XXIII). Observou-se que toda a atividade nuclear desenvolvida no país, portanto, está exclusivamente centralizada na União, com exceção dos radioisótopos, cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob o regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 da CF (art. 177, V, com a redação dada pela EC 49/2006). Vencidos os Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ayres Britto que julgavam o pleito improcedente, por considerar que a lei impugnada não incidiria na esfera da competência federal, limitando-se a viabilizar, no âmbito do Estado de São Paulo, medidas que tornassem efetiva a proteção do meio ambiente e a defesa da saúde, matérias em relação às quais haveria situação de condomínio legislativo entre a União e os Estados-membros.

ADI 1575/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 7.4.2010.  (ADI-1575)

 

Abuso do Poder de Litigar e Comunicação à OAB

O Tribunal resolveu questão de ordem suscitada em ação penal — movida pelo Ministério Público Federal contra diversas pessoas acusadas da suposta prática de crimes ligados ao esquema denominado “Mensalão” — no sentido de indeferir todos os requerimentos formulados pela defesa de um dos denunciados, e determinou, por maioria, que se encaminhe à Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para a consideração que mereça, cópia do acórdão, das notas taquigráficas e das peças indicadas pelo Min. Joaquim Barbosa, relator. Tratava-se de treze pedidos, contidos em petições de agravo regimental, nos quais se sustentava a existência de inúmeras nulidades que teriam causado prejuízo ao exercício da ampla defesa e contaminado todo o processo, desde os interrogatórios dos réus. Entendeu-se que os pedidos seriam totalmente improcedentes, consubstanciando abuso do poder de litigar, com o objetivo de impedir o trâmite regular do processo. No ponto, a Min. Ellen Gracie observou que a tentativa de obstaculizar o andamento processual, tal como no caso, seria, em qualquer tribunal do mundo, rechaçada como contempt of court, tendo o Min. Cezar Peluso afirmado ser lamentável o fato de o Código de Processo Penal não ter uma disciplina específica para punir aquilo que é ilícito porque viola o dever jurídico de lealdade processual. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, que consideravam não se justificar o encaminhamento à OAB, no momento, por não vislumbrar a existência de dano processual.

AP 470 Quinta QO/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 8.4.2010.  (AP-470)

 

Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 1

O Tribunal, por maioria, denegou habeas corpus, afetado ao Pleno pela 1ª Turma, em que se sustentava a nulidade do julgamento da apelação do paciente pela 11ª Câmara Criminal “B” do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao fundamento de ofensa ao princípio do juiz natural, já que, à exceção do desembargador que presidira a sessão, todos os demais membros do órgão eram juízes de primeiro grau convocados. Apontava-se, ainda, violação aos artigos 93, III, 94 e 98, I, da CF — v. Informativo 549. De início, o Tribunal, por maioria, rejeitou preliminar suscitada pelo Min. Marco Aurélio no sentido de que o julgamento fosse realizado com a composição integral, tendo em conta a importância da matéria de fundo. Considerou-se o fato de somente estarem ausentes da sessão dois Ministros, havendo quórum suficiente para a deliberação da matéria, e salientou-se a urgência em resolver a questão, haja vista recentes julgamentos do Superior Tribunal de Justiça no sentido de anular decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em matéria criminal. Vencido o suscitante.

HC 96821/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 8.4.2010.  (HC-96821)

 

Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 2

No mérito, entendeu-se não ocorrer, na hipótese, qualquer ofensa a regra ou princípio constitucional. Registrou-se que a convocação de juízes para atuar nos julgamentos levados a efeito na Corte paulista fora, originalmente, regulamentada pela Lei Complementar 646/90, que criou os cargos de magistrados substitutos e de segundo grau, diploma este reputado constitucional pelo Supremo. Fez-se menção, em seguida, à EC 45/2004 que, dentre outras inovações, teria assegurado a todos os jurisdicionados a duração razoável do processo, determinando a distribuição imediata dos feitos ajuizados em todos os foros e tribunais do país. Observou-se que, em relação especificamente a São Paulo, a EC 45/2004 teria determinado à Justiça bandeirante a unificação dos Tribunais de Alçada com o Tribunal de Justiça, impondo-lhe a tarefa de reorganizar administrativamente uma Corte enorme, de forma a manter, minimamente, a rapidez e eficiência da prestação jurisdicional. Considerou-se que tal determinação, além das dificuldades de reorganização, teria ocasionado outra conseqüência de relevante repercussão, qual seja, a imediata transferência de um imenso estoque de feitos criminais, antes dividido entre as duas Cortes. Mencionou-se que o Tribunal paulista teria cumprido essa determinação prontamente, ordenando, com base na Resolução 204/2005, a imediata distribuição de todos os feitos aos desembargadores e juízes substitutos de segundo grau. Além disso, para dar conta desse acervo de processos acumulados, teria criado câmaras extraordinárias, integradas, inicialmente, por juízes titulares da capital e, depois, por juízes titulares do interior, da mesma entrância, presididas por um desembargador, que também atuaria como vogal ou terceiro juiz, a partir de edital de convocação, publicado no diário oficial, após deliberação do Conselho Superior da Magistratura, com fundamento no art. 73, parágrafo único, da Constituição do Estado de São Paulo. Asseverou-se, ainda, que os juízes de primeiro grau, apesar da denominação de convocados, participariam desses colegiados por meio de inscrição voluntária. Reconheceu-se que essa providência, por um lado, teria proporcionado uma significativa redução no número de feitos pendentes de decisão, evitando, por conseguinte, a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva do Estado, bem como teria acelerado o julgamento de grande número de presos detidos em caráter provisório. Por outro lado, no entanto, acarretara uma enxurrada de recursos e de habeas corpus perante o STJ e o STF, com o intuito de anular os arestos proferidos pelas câmaras extraordinárias.

HC 96821/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 8.4.2010.  (HC-96821)

 

Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 3

Em seqüência, aduziu-se que o âmago do princípio do juiz natural (CF, art. 5º, XXVII e LIII) consistiria na estrita prevalência de um julgamento imparcial e isonômico para as partes, por meio de juízes togados, independentes e regularmente investidos em seus cargos. Afirmou-se que a hipótese dos autos não se afastaria dessas premissas, visto que o sistema de convocação de magistrados de primeiro grau na Justiça paulista seria uma resposta aos comandos emanados da EC 45/2004, tendo sido implantado nos termos da Lei Complementar estadual 646/90, dela se distinguindo apenas no aspecto de que a convocação dos magistrados de primeiro grau se daria mediante publicação de edital na imprensa oficial. Acrescentou-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo em nada teria inovado quanto a essa prática, tendo em vista que a Justiça Federal também dela faria uso, com base no art. 4º da Lei 9.788/99 (“Os Tribunais Regionais Federais poderão, em caráter excepcional e quando o acúmulo de serviço o exigir, convocar Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos, em número equivalente aos de Juízes de cada Tribunal, para auxiliar em Segundo Grau, nos termos de resolução a ser editada pelo Conselho da Justiça Federal.”), sem que nenhum de seus julgamentos tivesse sido anulado. Observou-se que a integração dos juízes de primeiro grau nas câmaras extraordinárias paulistas se daria de forma aleatória, sendo os recursos distribuídos livremente entre eles, e que as convocações seriam feitas por ato oficial, prévio e público, não havendo se falar em nomeação ad hoc. Assim, tais magistrados não constituiriam juízes de exceção. Sua convocação para atuar perante a segunda instância, ao contrário, seria resposta dada pelo Tribunal de Justiça paulista, diante da difícil conjuntura de sobrecarga de trabalho, para dar efetividade a um novo direito fundamental introduzido na Constituição a partir da EC 45/2004, ou seja, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5º, LXXVIII). Enfatizou-se não se poder esquecer, ainda, que os direitos e garantias fundamentais, a teor do que disposto no § 1º do art. 5º da CF, teriam aplicação imediata, não podendo ser outra a reação da Corte estadual que a de atender prontamente a esse comando constitucional. Além disso, esse novo direito fundamental teria íntima relação com outros princípios constitucionais, como o da dignidade humana e da eficiência da Administração Pública, cujo cumprimento não poderia ser postergado.

HC 96821/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 8.4.2010.  (HC-96821)

 

Composição de Órgão Colegiado: Juízes Convocados e Princípio do Juiz Natural – 4

Portanto, as medidas levadas a efeito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo não só teriam dado concreção às exigências postas pelos constituintes derivados, como também se amoldariam, perfeitamente, aos princípios e regras da Carta Magna, sobretudo porque respeitariam a imparcialidade e a independência dos magistrados que integrariam as câmaras extraordinárias, os quais, de resto, jamais teriam desbordado os lindes da competência jurisdicional da Corte. Ressaltou-se, inclusive, que o art. 96, I, a, da CF permite que os tribunais disponham sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos, e que a própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN (LC 35/79) admite, em seu art. 118, a convocação de juízes de primeiro grau para integrarem colegiados de segundo grau, em caráter excepcional e transitório, nas situações que explicita, sem que jamais se tivesse invocado, contra essa prática, o argumento de ofensa ao princípio do juiz natural. Por fim, consignou-se que se se pudesse entender, apenas ad argumentandum tantum, que o princípio do juiz natural tivesse sido de alguma forma malferido, haver-se-ia de se proceder a uma necessária ponderação de valores, contrastando o referido postulado com o da segurança jurídica. No ponto, explicou-se que se estaria a cogitar, ainda que indiretamente, de dezenas de milhares de decisões criminais, a maioria das quais já transitadas em julgado, que poderiam ser sumariamente anuladas, inclusive aquelas que concluíram pela absolvição dos réus, sendo que, nesse sopesamento de normas com densidade axiológica equivalente, haveria de prevalecer, no caso, o postulado da segurança jurídica. Vencido o Min. Marco Aurélio que concedia a ordem, assentando que o paciente se encontraria condenado sem observância da norma maior segundo a qual ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente, tendo em conta o julgamento de sua apelação por uma câmara que legalmente se mostrara inexistente. Reputava ter havido clonagem imprópria, visto que criadas, dentro do Tribunal paulista, câmaras suplementares, tendo sido convocados, para compô-las — em sobreposição, e não em substituição de ausentes ou para preenchimento de cadeira vaga, nos termos do art. 118 da LOMAN —, juízes que teriam passado a atuar não só na 1ª como também na 2ª instância.

HC 96821/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 8.4.2010.  (HC-96821)

 

Primeira Turma

ED: Inquérito Policial e Direito de Vista – 2

Em conclusão de julgamento, a Turma, tendo em conta a Súmula Vinculante 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”), rejeitou embargos de declaração opostos pelo Ministério Público Federal contra acórdão que deferira habeas corpus para permitir o acesso dos defensores dos acusados a procedimento investigativo sigiloso — v. Informativo 553. Entretanto, de ofício, concedeu a ordem para que a defesa tenha acesso ao que já coligido nos autos do inquérito policial. Na presente situação, o embargante sustentava que a concessão da ordem, sem ressalvas na parte dispositiva, poderia levar o juízo de 1ª instância ao engano de autorizar o acesso a todos os atos do procedimento investigatório e não somente àqueles referentes às diligências já concluídas. Os Ministros Ricardo Lewandowski, relator, e Cármen Lúcia reajustaram seus votos.

HC 94387 ED/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.4.2010.  (HC-94387)

 

Saídas Temporárias Automatizadas

A Turma deferiu habeas corpus para tornar subsistente entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que deferira o benefício de saída temporária ao paciente. No caso, ante o caótico quadro penitenciário, a Corte local assentara a possibilidade de, após o exame do perfil do reeducando, conceder automaticamente aos encarcerados saídas temporárias, sem a necessidade de, em relação a cada uma, acionar-se o Ministério Público e movimentar-se a máquina judiciária. Considerou-se que, uma vez observada a forma alusiva à saída temporária, gênero, manifestando-se os órgãos técnicos, o parquet e o Juízo da Vara de Execuções Criminais, as subseqüentes mostrar-se-iam consectários legais, descabendo a burocratização a ponto de a cada uma delas — no máximo de 3 saídas temporárias — ter-se que formalizar novo processo, potencializando-se a forma pela forma. No ponto, enfatizou-se que a primeira decisão, não vindo o preso a cometer falta grave, respaldaria as saídas posteriores. Aduziu-se que se cuidaria de conferir interpretação teleológica à ordem jurídica em vigor, consentânea com a organicidade do Direito e com o princípio básico da República, a direcionar a preservação da dignidade do homem.

HC 98067/RS, rel. Min. Marco Aurélio, 6.4.2010.  (HC-98067)

 

Busca e Apreensão em Escritório de Advocacia

A Turma indeferiu habeas corpus em que pleiteado o desentranhamento, dos autos de ação penal, de provas coligidas e apreendidas no escritório de advocacia do paciente. A impetração sustentava ofensa ao direito à intimidade do paciente, haja vista que o mandado judicial deveria ter sido cumprido “nas sedes das empresas” das quais o paciente seria sócio e não no seu escritório de advocacia, cujo endereço não constava do citado mandado. Reputou-se demonstrado que, no caso, o escritório de advocacia também era utilizado pelo paciente para o gerenciamento de seus negócios comerciais, sendo uma extensão da empresa. Salientou-se, ademais, que o sucesso da medida comprovaria que, de fato, aquele local seria usado como sede de negócios outros, além das atividades advocatícias.

HC 96407/RS, rel. Min. Dias Toffoli, 6.4.2010.  (HC-96407)

 

Prefeito e Negativa de Execução de Lei

A Turma desproveu recurso ordinário em habeas corpus no qual se discutia se o descumprimento de lei por titular do Poder Executivo municipal — ao argumento de sua inconstitucionalidade — tipificaria a conduta descrita no art. 1º, XIV, do Decreto-lei 201/67 (“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal (sic), sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores: … XIV – Negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente;”). Na situação dos autos, o prefeito do Município de Itapema/SC fora denunciado como incurso nas sanções do art. 1º, XIV, do Decreto-lei 201/67 porque teria se negado a aplicar a Lei Municipal 2.334/2005, que estabelece os símbolos municipais, além daqueles contidos na Lei Orgânica. Pleiteava-se, na espécie, o trancamento do inquérito policial sob a alegação de inexistência de justa causa. Ocorre que a mencionada lei fora revogada, ensejando o prejuízo da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada na Corte local. Entendeu-se que a solução da questão dependeria do exame, em cada caso e no próprio juízo competente, dos elementos que poderiam conduzir à conclusão de que o descumprimento subsumir-se-ia, ou não, ao tipo pelo qual denunciado o recorrente. Consignou-se, ademais, que, como a inicial acusatória sequer fora recebida, não haveria como, na via estreita do writ, estancar o conhecimento e a decisão do Tribunal de Justiça catarinense sobre o recebimento da denúncia.

RHC 100961/SC, rel. Min. Cármen Lúcia, 6.4.2010.  (RHC-100961)

 

Reincidência e Confissão Espontânea: Concurso

A agravante da reincidência prepondera sobre a atenuante da confissão espontânea, a teor do art. 67 do CP (“No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência.”). Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que a Defensoria Pública da União requeria a compensação da agravante da reincidência com a atenuante da confissão espontânea, na 2ª fase da imposição de pena ao réu.

HC 102486/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, 6.4.2010.  (HC-102486)

 

 

Segunda Turma

 

Ação Penal e Trancamento mediante ‘Habeas Corpus’

A Turma indeferiu habeas corpus no qual militar denunciado pela suposta prática do crime de desobediência (CPM, art. 301), por ter se recusado a receber diversas notificações e a comparecer à Organização Militar para prestar testemunho em sindicâncias e inquérito policial militar, pleiteava o trancamento de ação penal instaurada contra ele na origem. Sustentava falta de justa causa para a persecução criminal, dado que as notificações foram recepcionadas por sua esposa, que não as repassara, seguindo orientação de profissional da área de saúde, pois o paciente se encontrava afastado de suas funções por motivo de incapacidade física. Alegava, ademais, que o elemento subjetivo do delito de desobediência se encontraria pautado em dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de não obedecer à ordem legal da Administração Militar, o que não teria ocorrido no caso. Preliminarmente, recebeu-se o presente recurso ordinário — porque intempestivo — como habeas corpus. Observou-se que, quando o recurso ordinário carecer dos requisitos formais previstos no art. 310 do RISTF, pode, excepcionalmente, ser recebido como habeas corpus. Ressaltou-se, por outro lado, que as alegações formuladas pelo impetrante — falta de justa causa e ausência de dolo — exigiriam a realização de exame aprofundado de provas que, em sede de habeas corpus, não se mostraria possível, visto tratar-se de instrumento destinado à proteção de direito líquido e certo, que não admite dilação probatória. Assinalou-se que tal vedação teria especial aplicação na situação sob exame, porquanto os autos originários se encontrariam em momento processual no qual a dúvida milita pro societate. Considerou-se que esta Corte tem decidido, reiteradamente, que o trancamento de ação penal por falta de justa causa ou por inépcia da denúncia, na via estreita do habeas corpus, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não se verificara na espécie.

RHC 94821/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 6.4.2010.  (RHC-94821)

 

 

Pleno        7.4. 2010        8.4.2010               30

1ª Turma    6.4.2010                                366

2ª Turma    6.4.2010                               134

 

 

 

Transcrições

 

Com a finalidade de proporcionar aos leitores do Informativo STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

 

Proteção Integral à Infância e à Juventude – Omissão do Poder Público – Política Pública Delineada na Constituição – Legitimidade do Controle Jurisdicional das Omissões Estatais (Transcrições)

 

RE 482611/SC*

 

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

 

EMENTA: CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220). RECURSO EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO.

 

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra acórdão, que, proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, está assim ementado (fls. 348):

 

Apelação cível. Ação civil pública. Programa SentinelaProjeto Acorde. Atendimento de criança. Determinação judicial. Impossibilidade. Princípio da separação dos Poderes. Política social derivada de norma programática. Recurso provido.

À Administração Pública, calcada no seu poder discricionário, compete estabelecer as políticas sociais derivadas de normas programáticas, vedado ao Poder Judiciário interferir nos critérios de conveniência e oportunidade que norteiam as prioridades traçadas pelo Executivo.” (grifei)

 

O Ministério Público do Estado de Santa Catarina, parte recorrente, sustenta que o acórdão ora impugnado teria transgre­dido o art. 227 da Constituição da República.

O exame desta causa – considerada a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise (AI 583.136/SC, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 503.658/SC, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.) – convence-me da inteira correção dos fundamentos, que, invocados pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, informam e dão consistência ao presente recurso extraordinário.

É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que a proteção aos direitos da criança e do adolescente (CF, art. 227, “caput”) – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, con­sistente num “facere”, pois o Estado dele se desincumbirá cri­ando condições objetivas que viabilizem, em favor dessas mesmas crianças e adolescentes, “(…) com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissio­nalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (CF, art. 227, “caput” – grifei).

Para BERNARDO LEÔNCIO MOURA COELHO (“O Bloco de Constitucionalidade e a Proteção à Criança”, “inRevista de Informação Legislativa nº 123/259-266, 263/264, 1994, Senado Federal), a proteção integral da criança e do adolescente, tal como objetivada pelo Programa Sentinela–Acorde, exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normativo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem:

 

Neste ponto é que entra a função do Estado, que, conceituando a proteção à criança como um direito social e colocando como um de seus princípios a justiça social, deve impedir que estas pessoas, na correta colocação de Dallari, sejam oprimidas por outras. É necessário que seja abolida esta discriminação e que todo ‘menor’ seja tratado como criança – sujeito de direitos que deve gozar da proteção especial estatuída na Constituição Federal e também nas Constituições Estaduais.” (grifei)

 

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à proteção da criança e do adolescente – ainda mais se considerado em face do dever que incumbe, ao Poder Público, de torná-lo real, mediante concreta efetivação da garantia de atendimento sócio-educativo às crianças vítimas de exploração ou violência (CF, art. 227, “caput”) – não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafas­tável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, um de seus precípuos destinatários.

O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de proteção ao direito da criança e do adolescente, traduz meta cuja não-realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser (necessa­ria­mente) implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis.

Ao julgar a ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF nº 345/2004):

 

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DARESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DOMÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DES­CUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

 

Salientei, então, em tal decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam – enquanto direitos de segunda geração – com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal:

 

DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um ‘facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

……………………………………………….

A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

 

É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

Impende assinalar, no entanto, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais pre­missas, significativo relevo ao tema pertinente àreserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Renovar), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à criança e ao adolescente – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 227) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município, disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial, tal como já advertiu o Supremo Tribunal Federal:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIOCRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – EDUCAÇÃO INFANTIL DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) – COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – RECURSO IMPROVIDO.

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).

Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ‘crianças de zero a seis anos de idade’ (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

– A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

– Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à reserva do possível’. Doutrina.

(RTJ 199/1219-1220, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

 

Cabe referir, ainda, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, ilustre Procuradora Regional da República (“Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público”, p. 59, 95 e 97, 2000, Max Limonad), cujo magistério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em tema de concretização das políticas públicas constitucionais, corretamente assinala:

 

Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.

………………………………………………

Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitu­cionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria à finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social.

………………………………………………

Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração.

……………………………………………….

As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.” (grifei)

 

Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que os Municípios (à semelhança das demais entidades políticas) não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 227, “caput”, da Constituição, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público, cujas opções, tratando-se de proteção à criança e ao adolescente, não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

Entendo, por isso mesmo, que se revela acolhível a pre­tensão recursal deduzida pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, notadamente em face da jurisprudência que se formou, no Supremo Tribunal Federal, sobre a questão ora em exame.

Nem se atribua, indevidamente, ao Judiciário, no contexto ora em exame, uma (inexistente) intrusão em esfera reservada aos demais Poderes da República.

É que, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário (de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito), inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos.

Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.

A colmatação de omissões inconstitucionais, realizada em sede jurisdicional, notadamente quando emanada desta Corte Suprema, torna-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.

As situações configuradoras de omissão inconstitu­cional ainda que se cuide de omissão parcial derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política – refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se como uma das causas geradoras dos processos informais de mudança da Constituição, tal como o revela autorizado magistério doutrinário (ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 230/232, item n. 5, 1986, Max Limonad; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II/406 e 409, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Fundamentos da Constituição”, p. 46, item n. 2.3.4, 1991, Coimbra Editora).

O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

A percepção da gravidade e das conseqüências lesivas derivadas do gesto infiel do Poder Público que transgride, por omissão ou por insatisfatória concretização, os encargos de que se tornou depositário, por efeito de expressa determinação constitu­cional, foi revelada, entre nós, no período monárquico, em lúcido magistério, por PIMENTA BUENO (“Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 45, reedição do Ministério da Justiça, 1958) e reafirmada por eminentes autores contemporâneos em lições que acentuam o desvalor jurídico do comportamento estatal omissivo (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, p. 226, item n. 4, 3ª ed., 1998, Malheiros; ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 217/218, 1986, Max Limonad; PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969, tomo I/15-16, 2ª ed., 1970, RT, v.g.).

O desprestígio da Constituição – por inércia de órgãos meramente constituídos – representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, pois reflete inaceitável desprezo, por parte das instituições governamentais, da autoridade suprema da Lei Fundamental do Estado.

Essa constatação, feita por KARL LOEWENSTEIN (“Teoria de la Constitución”, p. 222, 1983, Ariel, Barcelona), coloca em pauta o fenômeno da erosão da consciência constitucional, motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante processo de desvalorização funcional da Constituição escrita, como já ressaltado, pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos julgamentos, como resulta da seguinte decisão, consubstanciada em acórdão assim ementado:

 

(…) DESCUMPRIMENTO DE IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL LEGIFERANTE E DESVALORIZAÇÃO FUN­CIONAL DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA.

O Poder Públicoquando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório – infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional (ADI 1.484-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

 

A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

 

DIREITO SUBJETIVO À LEGISLAÇÃO E DEVER CONSTITUCIONAL DE LEGISLAR: A NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DO PERTINENTE NEXO DE CAUSALIDADE.

O direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando também existir – simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional – a previsão do dever estatal de emanar normas legais. Isso significa que o direito individual à atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público. (…).

(RTJ 183/818-819, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

 

Em tema de implementação de políticas governamentais, previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente nas áreas de educação infantil (RTJ 199/1219-1220) e de saúde pública (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213), a Corte Suprema brasileira tem proferido decisões que neutralizam os efeitos nocivos, lesivos e perversos resultantes da inatividade governamental, em situações nas quais a omissão do Poder Público representava um inaceitável insulto a direitos básicos assegurados pela própria Constituição da República, mas cujo exercício estava sendo inviabilizado por contumaz (e irresponsável) inércia do aparelho estatal.

O Supremo Tribunal Federal, em referidos julgamentos, colmatou a omissão governamental e conferiu real efetividade a direitos essenciais, dando-lhes concreção e, desse modo, viabilizando o acesso das pessoas à plena fruição de direitos funda­mentais, cuja realização prática lhes estava sendo negada, injus­tamente, por arbitrária abstenção do Poder Público.

O fato que tenho por relevante consiste no reconhecimento de que a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente.

O caráter programático da regra inscrita no art. 227 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – impõe o reconhecimento de que as normas constitucionais veiculadoras de um programa de ação revestem-se de eficácia jurídica e dispõem de caráter cogente.

Ao contrário do que se afirmou no v. acórdão recorrido, as normas programáticas vinculam e obrigam os seus destinatários, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Impende destacar, neste ponto, por oportuno, ante a inquestionável procedência de suas observações, a decisão proferida pela eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA (AI 583.136/SC), em tudo aplicável, por identidade de situação, ao caso em análise:

 

Ao contrário do que decidido pelo Tribunal ‘a quo’, no sentido de que a manutenção da sentença provocaria ingerência de um em outro poder, a norma do art. 227 da Constituição da República impõe aos órgãos estatais competentes – no caso integrantes da estrutura do Poder Executivo – a implementação de medidas que lhes foram legalmente atribuídas. Na espécie em pauta, compete ao Estado, por meio daqueles órgãos, o atendimento social às crianças e aos adolescentes vítimas de violência ou exploração sexual. Tanto configura dever legal do Estado e direito das vítimas de receber tal atendimento.

……………………………………………….

É competência do Poder Judiciário, vale dizer, dever que lhe cumpre honrar, julgar as causas que lhe sejam submetidas, determinando as providências necessárias à efetividade dos direitos inscritos na Constituição e em normas legais.

……………………………………………….

9. Exatamente na esteira daquela jurisprudência consolidada é que cumpre reconhecer o dever do Estado de implementar as medidas necessárias para que as crianças e os adolescentes fiquem protegidos de situações que os coloquem em risco, seja sob a forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade ou a de opressão, situações que confiscam o mínimo existencial sem o qual a dignidade da pessoa humana é mera utopia. E não se há de admitir ser esse princípio despojado de efetividade constitucional, sobre o que não mais pende discussão, sendo o seu cumprimento incontornável.

10. Reitere-se que a proteção contra aquelas situações compõe o mínimo existencial, de atendimento obrigatório pelo Poder Público, dele não podendo se eximir qualquer das entidades que exercem as funções estatais, posto que tais condutas ilícitas afrontam o direito universal à vida com dignidade, à liberdade e à segurança.” (grifei)

 

Isso significa, portanto, que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da pessoa, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a proteção à criança e ao adolescente, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 227, “caput”, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, a proteção integral da criança e do adolescente.

Sendo assim, em face das razões expostas e considerando, ainda, anterior decisão que proferi sobre o mesmo tema (AI 583.264/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO), conheço do presente recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, para dar-lhe provimento (CPC, art. 557, § 1º-A), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo magistrado local de primeira instância.

 

Publique-se.

 

Brasília, 23 de março de 2010.

 

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

 

*decisão publicada no DJE de 7.4.2010

 

Inovações Legislativas

       5 a 9 de abril de 2010

 

 

CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE SERVIDORES DO JUDICIÁRIO (CEAJUD) – Criação

Resolução nº 111/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Institui o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário – CEAJud e dá outras providências. Publicada no DJE/CNJ de 9/4/2010, n. 63, p. 8.

 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)

Conflito Fundiário – Discussão

Resolução nº 110/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Institucionaliza, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum de Assuntos Fundiários, de caráter nacional e permanente, destinado ao monitoramento dos assuntos pertinente a essa matéria e à resolução de conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas. Publicada no DJE/CNJ de 9/4/2010, n. 63, p. 6.

 

Estrutura Administrativa

Portaria nº 54/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Dispõe sobre a estrutura orgânica do Conselho Nacional de Justiça. Publicada DJE/CNJ de 9/4/2010, n. 63, p. 2.

 

Tribunal de Justiça – Maranhão – Tortura – Abuso de autoridade – Preso

Portaria Conjunta nº 6/CNJ/TJMA , de 7 de abril de 2010   Institui grupo de trabalho para levantamento e apuração de abuso de autoridade, tortura e qualquer tipo de violência perpetrados por agentes públicos contra presos no Estado do Maranhão. Publicada no DJE/CNJ de 8/4/2010, n. 62, p. 7.

 

Prazo Processual – Prescrição – Processo Penal

Resolução nº 112/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Institui mecanismo para controle dos prazos de prescrição nos tribunais e juízos dotados de competência criminal. Publicada no DJE/CNJ de 8/4/2010, n. 62, p. 6.

 

Videoconferência – Interrogatório

Resolução nº 105/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Dispõe sobre a documentação dos depoimentos por meio do sistema audiovisual de interrogatório e inquirição de testemunhas por videoconferência. Publicada no DJE/CNJ de 8/4/2010, n. 62, p. 5.

 

Tribunal de Justiça – Tribunal Regional Federal – Agente de Segurança Judiciária – Fundo Nacional de Segurança

Resolução nº 104/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Dispõe sobre medidas administrativas para a segurança e a criação de Fundo Nacional de Segurança. Publicada no DJE/CNJ de 8/4/2010, n. 62, p. 4.

 

Processo Judicial – Assistência Médica – Direito à Saúde

Resolução nº 107/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. Publicada no DJE/CNJ de 7/4/2010, n. 61, p. 9.

 

Magistrado – Promoção por Merecimento

Resolução nº 106/CNJ, de 6 de abril de 2010 – Dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos tribunais de 2º grau. Publicada no DJE/CNJ de 7/4/2010, n. 61, p. 6.

 

Processo Judicial – Assistência Médica – Eficiência

Recomendação nº 31/CNJ, de 30 de março de 2010 – Recomenda aos tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. Publicada no DJE/CNJ de 7/4/2010, n. 61, p. 4.

 

 

Assessora responsável pelo Informativo

Anna Daniela de A. M. dos Santos

informativo@stf.gov.br

 

Como citar e referenciar este artigo:
STF,. Informativo nº 581 do STF. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/informativos-de-jurisprudencia/stf-informativos-de-jurisprudencia/informativo-no-581-do-stf/ Acesso em: 29 mar. 2024
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