Direito Penal

A Doutrina do Mestre Goldschmidt

 

 

Foi  James Goldschmidt, quem, em sua obra Der Prozess als Rechtslage (Berlin, 1925) (“O Processo como situação jurídica”), construiu a natureza jurídica do processo de uma nova perspectiva: O processo como conjunto de situações processuais pelas quais atravessam as partes até chegar a uma sentença definitiva. Fundou, por assim dizer, – A teoria da relação jurídica.

 

            Numa primeira parte de sua obra, realiza Goldschimidt uma detida e minuciosa crítica à tese que concebe o processo como uma relação jurídica processual, realizando-a em uma tríplice vertente: Atacando os pressupostos da relação jurídica, negando o conteúdo da mesma (a existência de direitos e obrigações processuais) e reputando, definitivamente, como estática ou metafísica a então doutrina imperante. Diz Goldschimidt que os pressupostos processuais não condicionam o nascimento da relação jurídica processual, mas são pressupostos da sentença.

 

            Em seguida volta a sua atenção para o conteúdo da relação jurídico-processual. Examina em primeiro lugar a obrigação do Juiz de conhecer a demanda e chega à conclusão de que nem no Direito Romano, nem no Moderno, pode-se afirmar que tal obrigação derive ou se corresponda com uma pretensão do autor, com o que formaria a relação processual, mas que, ao contrário, provém da “obrigação estatal de administrar a justiça”.

 

            Depois revisa todas e cada uma das obrigações processuais (de contestar a ação, provas etc.) e põe em evidência que estas obrigações na realidade não o são, já que as partes a elas se submetem para evitar um efeito desfavorável. Mais que obrigações, o que existem no processo são “ônus”, mediante cuja realização se evitam prejuízos a uma sentença desfavorável.

 

            Concepção empírico-dinâmica do processo: Entendia Goldschimidt que a função do processo se constitui na obtenção de uma sentença com força de coisa julgada, concebida esta como “validade judicial de uma pretensão, juridicamente fundada ou infundada”.

 

            Os sujeitos processuais, presididos por esse objetivo, se encontram em uma situação essencialmente dinâmica. Atuam com o esforço de obter uma sentença de determinado conteúdo que, mediante sua força de coisa julgada, resolva o conflito de maneira favorável às suas respectivas aspirações dentro do processo. Todos os atos processuais têm como objetivo alcançar uma sentença favorável, conforme as pretensões de cada uma das partes.

 

            As normas jurídicas não podem, portanto, continuar sendo concebidas como meros imperativos para os sujeitos processuais, mas devem ser também consideradas como “medidas jurídicas para a atividade “sentenciadora” do Juiz. Dito em outras palavras: “Medidas do Juiz que têm o caráter de promessas ou ameaças de uma conduta determinada do Juiz e em última análise de uma sentença de determinado conteúdo”.

 

            O estado de expectativa de uma sentença favorável ou de uma perspectiva de uma sentença desfavorável em que se encontram as partes que os induz a agir dentro do processo e que originam, em definitivo, os laços, liames ou vínculos entre os sujeitos processuais.

 

            Para gerar esse estado de expectativa de uma sentença favorável, deve geralmente a parte interessada realizar com êxito um ato processual. Ao contrário, as perspectivas de uma sentença desfavorável dependem sempre da omissão de um ato processual da parte interessada.

 

            Os atos processuais já não são concebidos como a expressão do exercício de um direito ou obrigação processual. As partes não ostentam direito, mas “chances”, ou seja, “possibilidades” ou “ocasiões e oportunidades” processuais, com cujo aproveitamento, mediante a realização do ato processual correspondente, obtém uma vantagem processual.

 

            Tampouco às partes incumbem obrigações, mas “ônus processuais”, entendidos como que cada ato processual deve realizá-lo a parte interessada a fim de que possa prevenir uma desvantagem processual, em última análise, uma sentença desfavorável.

 

            Cada ato processual é realizado como expressão de uma “chance” ou de uma “carga processual”, e cria uma “situação processual”, da qual cada sujeito processual considera e examina as suas perspectivas sobre a sentença desejada. Por processo deve-se entender, portanto, o conjunto destas situações processuais, vistas do prisma da posterior sentença com força de coisa julgada.

 

O direito material (civil, penal, constitucional etc.) trata de normas vigentes e feitos jurídicos existentes. As normas se aplicam aos Feitos. A aplicação das normas aos Feitos engendram configurações: A pessoa, a coisa, a relação jurídica, o direito subjetivo, a obrigação. Tais configurações podem ser submetidas a valorações contraditórias; uma conduta pode ser lícita ou ilícita; uma relação jurídica é válida ou nula; um direito pode ser satisfeito extrajudicialmente e, em caso contrário, a norma estabelece a imposição da sanção. Mas um mundo novo se abre ao se entrar em um processo: Aqui existem petições, afirmações, provas…; as petições podem ser admissíveis o inadmissíveis, fundadas ou infundadas, mas tudo isso envolto em uma nuvem de incerteza. Uma afirmação pode ser ou não verossímil, a decisão pode ser ou não acertada, uma testemunha pode ou não dizer a verdade. Neste mundo de instabilidade e de aparência não existem, em sentido próprio, direitos, porque nós nos movemos no mundo da realidade. Assim como o direito material é um mundo de entes irreais, constituído à semelhança da matemática pura, o mundo do processo é o das realidades, pelo qual a ordem judicial se enfrenta nesse sentido com a ordem legal. O direito material é como o norte para o qual o mundo do processo se dirige, mas sem poder coincidir jamais, já que as controvérsias se cortam no processo com atos de vontade: Daí o caráter fraccionado da atuação do direito no processo. (grifo meu).

 

– Deve-se a James Goldschmidt a definitiva formulação do caráter dinâmico do processo, com a conseqüente transformação da certeza própria do direito material  na  incerteza característica da atividade processual. (grifo meu).

 

Para J. Goldschmidt, as normas jurídicas têm uma dupla natureza, já que, por um lado representam imperativos, e por outro, são medidas para o juízo do Juiz. Esta dubiedade faz que a norma jurídica deva coincidir, mas não pode coincidir. Assim, segundo o Código Penal, o autor de um delito de homicídio deve ser punido com uma determinada pena. Entretanto, um autor de um delito, ao ser julgado, passa à situação incerta, segundo a qual pode ser condenado com determinada pena. Quando o ser e o dever ser coincidem, o processo verificou a norma contida no Código Penal. Mas ninguém pode desconsiderar o fato de que essa identidade nem sempre é possível, e muito menos é sempre realizável na prática, que é um campo de atuação do processo. Por isso, Goldschmidt afirma que da natureza das normas legais como medidas para o juízo do Juiz (o chamado “direito justiciável material”) resulta que tais normas têm, face aos indivíduos o caráter de promessas ou ameaças de determinada conduta do Juiz; em último termo, de que pode recair uma sentença de um conteúdo determinado. Daí se deduz que os nexos jurídicos entre os sujeitos do Processo, que se constituem em função do indicado caráter das normas, somente são expectativas ou perspectivas de uma sentença favorável ou desfavorável. Por isso, há de criar-se uma série de categorias específicas do mundo do processo, como são as de carga, dispensa de carga, possibilidade etc.

 

Deve-se entender bem que esta especial natureza do Direito no processo não se aplica exclusivamente às normas processuais, mas também às normas materiais, quando se encontram submetidas à ação dinâmica do processo. Qualquer direito subjetivo, inclusive o próprio direito subjetivo de punir, se transforma em uma exigência – que no processo penal tem uma natureza distinta do processo civil, que determina a iniciação do processo; mas esta própria exigência sofre uma segunda transformação que a converte em uma nova expectativa ou possibilidade processual. Qualquer acusador faz esta metamorfose quando antes de formular a acusação se pergunta se poderá acusar com êxito.

 

* Marcelo Batlouni Mendroni, Promotor de Justiça/SP do GAECO – Doutor em Direito Processual pela Universidad Complutense de Madrid

 

Como citar e referenciar este artigo:
MENDRONI, Marcelo Batlouni. A Doutrina do Mestre Goldschmidt. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/doutrina/direitopenal/a-doutrina-do-mestre-goldschmidt/ Acesso em: 29 mar. 2024