Visão Liberal

Tatarana é Lampião

Ao ler o comentário de Luiz Zanin Oricchio sobre o documentário Os Últimos Cangaceiros, de Wolney Oliveira (veja aqui), não pude deixar de meditar sobre o fascínio que essa figura, o cangaceiro (ou jagunço, como às vezes é chamado) exerce sobre as pessoas, mesmo aquelas que vivem distante do sertão e nunca viram um jagunço em carne e osso. Há motivos.

Desde a Guerra de Canudos e o livro monumental Os Sertões, de Euclides da Cunha, a visão do jagunço/cangaceiro foi romantizada porque soube-se que essa gente, até então tida por primitiva e quase sub-humana (como os mestiços aliás eram vistos pelas elites de então e os cangaceiros eram quase sempre mestiços). O romance regionalista do Nordeste ampliou a aura de heroísmo e de romantismo em torno do homem sertanejo. Mas coube a Guimarães Rosa estilizar, de forma monumental, sua história ao escrever Grandes Sertões, Veredas, o grande épico que transformou o sertanejo em herói nacional, na figura de Riobaldo.

De onde vem esse interesse? Essa admiração? “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides da Cunha, que chegou ao sertão da Bahia cheio de preconceitos positivistas e republicanos contra os rebelados de Canudos. O choque com a realidade mudou a visão do escritor que, de crítico, passou a cronista simpático aos rebelados de forma sutil. Descobriu-se que o jagunço ou sertanejo ou cangaceiro era gente igual a todo mundo e que os mestiços poderiam produzir atos de coragem, de determinação, de heroísmo como qualquer ser humano. Deram três surras no Exército antes de serem derrotados. Canudos foi o desmentir de todas as teorias racistas que predominavam à época e dominavam a mente das elites nacionais.

Euclides fez mais: documentou as barbáries que o Exército cometeu contra os vencidos, as degolas, o massacre de mulheres e crianças. Quem era mesmo o primitivo e desumano? O encontro do engenheiro e jornalista paulistano com o homem sertanejo deu uma dimensão nacional ao seu próprio encontro consigo mesmo, com sua gente, com nosso país. Havia um lugar que essa gente predominava e esse lugar é em toda parte, como o sertão é em toda parte. O mestiço é a nossa realidade nacional mais marcante e óbvia. Quase ninguém dessa terra pode alegar argumento de raça em seu favor, posto que somos todos mestiços, em maior ou menor grau.

Guimarães Rosa foi outro que vinha da tradição de desqualificar os mestiços e os sertanejos. Sua viagem com Manuelzão pelos sertões mineiros mudou sua forma de ver. No Sagarana, livro publicado em 1946, ainda vemos os estereótipos tão comuns na literatura, de que o homem mestiço é vagabundo e desordeiro e a mulher mestiça só servia para a prostituição e a promiscuidade, nunca para esposa. Jorge Amado divulgou essa caricatura ao produzir Gabriela, Cravo e Canela, mas outros escritores foram pródigos ao fazer o mesmo.

Penso que a visão do cangaceiro é ainda mais fascinante à gente de hoje porque ele encarna a virilidade, a decisão, a força física, o espírito de sacrifício e aventura, o senso de justiça dentro do direito natural, qualidades perdidas para a maior parte das pessoas que nasceram e viveram em grandes centros urbanos. O jagunço não hesitava em confrontar o poder de Estado e suas leis, sendo esse o grande eixo do romance de Guimarães Rosa. Ao sul do Rio São Francisco era a civilização porque vigia a lei estatal; acima do Rio era o sertão indômito, com sua gente valente e aventureira.

Em 1953 Lima Barreto, o diretor, produziu um dos mais belos filmes de todos os tempos, O Cangaceiro (Veja aqui). Os diálogos foram escritos por Raquel de Queiroz. A cena inaugural do filme é de rara beleza poética, com o bando do cangaço cavalgando no alto de uma colina, ao som da belíssima canção:

Olê mulher rendeira,

Olê mulher rendá,

Tu me ensinas a fazer renda,

Que eu te ensino a namorar.

O lirismo do filme fica sublime no romance entre a mocinha o cangaceiro, ao tocar a linda canção (a trilha sonora é simplesmente espetacular, ganhou muitos prêmios):

A lua girou, girou

Traçou no céu um compasso

A lua girou, girou

Traçou no céu um compasso

Eu bem queria fazer um travesseiro dos seus braços

Em 1954 veio à luz o Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. A década de cinquenta foi um tempo de transição do Brasil rural para o Brasil urbano, bem simbolizado pela implantação da indústria automobilística, a construção de Brasília e o agigantamento dos grandes centros urbanos. O autor mineiro imortalizou a figura de Lampião porque o tomou como o modelo que usou para construir o personagem Riobaldo, que ganhou a alcunha de Tatarana, uma maneira muito literária de dizer que Riobaldo e Virgulino eram uma só pessoa. Tatarana é a lagarta de foro porque atirava bem e rápido, Lâmpião ganhou a alcunha porque a boca do seu fuzil nunca apagava em combate. Um achado.

Euclides da Cunha e Guimarães Rosa escreveram provavelmente o que há de mais expressivo na literatura brasileira do século XX. É o retrato do brasileiro, em branco e preto e colorido.

www.nivaldocordeiro.net – 30/05/2015

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, Nivaldo. Tatarana é Lampião. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/visao-liberal/tatarana-e-lampiao/ Acesso em: 25 abr. 2024