Pitacos de um Advogado Rabugento

Fim da lenda urbana: advogado NÃO é doutor

Rabugento

Bruno de Oliveira Carreirão*

Rabugento

No texto da coluna do mês passado, falei sobre como nós, juristas, somos chatos com a nossa cultura da pompa e circunstância e o nosso “juridiquês”. Um dos grandes símbolos dessa cultura é o péssimo costume de alguns advogados de se auto intitularem doutores. Alguns, inclusive, exigem serem tratados dessa forma – embora ‘doutor’ não seja um pronome de tratamento, mas sim um título acadêmico.

Para sustentar que o advogado faz jus ao título de doutor apenas por ser advogado, geralmente são dois os principais argumentos. O primeiro é a lenda urbana de que Dom Pedro I teria, por decreto, conferido o título de doutor a todos os advogados. O segundo se refere à tradição, de modo que os advogados já teriam sido tratados como doutores há tanto tempo, que o título se consolidou ao longo dos anos.

Eu, como rabugento que sou, não caio nessa ladainha e acho que está na hora de você parar de acreditar nessas bobagens também.

NEM NA ÉPOCA DO IMPÉRIO!

Existe uma lenda urbana que diz que os advogados possuem o título de doutor por conta de um decreto imperial de 1827. Essa lenda é bastante difundida pela internet, inclusive em postagens nas redes sociais acompanhadas de imagens com o lema “Advogado: doutor por excelência”. Acontece que essa lenda não é nada mais do que isso mesmo: lenda.

O tal decreto imperial, na verdade, é a Lei do Império de 11 de agosto de 1827[1]. Trata-se da lei que criou as primeiras faculdades de direito do Brasil, em Pernambuco e São Paulo – e, justamente por isso, o dia 11 de agosto é hoje celebrado como o Dia do Advogado.

O artigo que supostamente conferiria o título de doutor aos advogados é o seguinte:

Art. 9.º – Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem som os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.

Olha, eu sinceramente admiro a criatividade de quem leu isso e conseguiu chegar à conclusão de que ele dá ao advogado o título de doutor, mas como muita gente foi convencida por esse argumento, aparentemente a simples leitura do artigo não é suficiente para compreendê-lo.

A primeira parte não admite interpretações muito variantes; apenas dispõe que os alunos que frequentassem os cinco anos do curso de direito e fossem aprovados receberiam o título de Bacharel – nada diferente do que acontece atualmente.

É da segunda parte que surge a lenda urbana. Há quem defenda que os Estatutos ali referidos seriam o Estatuto da OAB e, por isso, os advogados, por terem sido aprovados no exame da Ordem, cumprindo assim os requisitos para sua inscrição como advogados, seriam merecedores do título de doutor. Acontece que nem mesmo a própria OAB existia naquela época e muito menos o seu estatuto.

Na realidade, os estatutos mencionados na Lei Imperial eram os estatutos dos cursos jurídicos, que, segundo o art. 10º da Lei Imperial, seriam provisoriamente os Estatutos do Visconde de Cachoeira, até que as congregações das faculdades elaborassem seus estatutos completos.

O Estatuto do Visconde de Cachoeira previa o seguinte:

1º Se algum estudantes jurista quizer tomar o gráo de Doutor, depois de feita a competente formatura, e tendo merecido a approvação nemide discrepante, circumstancia esta essencial, defenderá publicamente varias theses escolhidas entre as materias, que aprendeu no Curso Juridico, as quaes serão primeiro apresentadas em Congregação; e deverão ser approvadas por todos os Professores. O Director e os Lentes em geral assistirão a este acto, e argumentarão em qualquer das theses que escolherem. Depois disto assentando a Faculdade, pelo juizo que fizer do acto, que o estudante merece a graduação de Doutor, lhe será conferida sem mais outro exame, pelo Lente que se reputar o primeiro, lavrando-se disto o competente termo em livro separado, e se passará a respectiva carta.

Portanto, na realidade, os requisitos da época para a obtenção do título de doutor eram aparentemente até mais rigorosos que os atuais, pois não era exigida a elaboração e defesa de uma tese, mas sim de várias teses, defendidas perante a congregação e que deveriam ser aprovadas por todos os professores.

Há quem argumente, ainda, que as “várias teses” cuja defesa era exigida são as teses que os advogados defendem cotidianamente nas suas petições. Ou seja, o advogado defende em um processo no Juizado Especial que o dano moral decorrente de inscrição indevida em cadastro de inadimplentes é presumido, cola um trecho do livro da Flávio Tartuce e uma ementa de um acórdão do STJ e quer equiparar isso a uma tese acadêmica elaborada com metodologia científica ao longo de 4 anos de um curso de doutorado, com pesquisa em diversas fontes bibliográficas e defesa perante banca formada por professores doutores. É mole?

Vale destacar ainda que os “Lentes” mencionados na legislação da época eram os professores que estava na categoria mais elevada da carreira docente – e, justamente por isso, era exigido que obtivessem o grau de doutor. Ou seja: o grau de doutor era relacionado à docência e não à advocacia.

Por fim, há ainda o argumento de que o tal “Decreto Imperial” nunca foi revogado. Francamente, não é necessário muito raciocínio para perceber que essa Lei Imperial foi evidentemente revogada pelas leis de diretrizes e bases da educação posteriores, que estabeleceram novos regramentos e uma estruturação da educação universitária bem diferente da que existia na época do Império.

ALGUMAS TRADIÇÕES MERECEM FICAR NO PASSADO

Em um dos textos mais difundidos sobre esse tema[2], o advogado Júlio Cardella – que fazia questão de se intitular “Doutor” -, além de argumentar que os advogados são doutores por direito (pelas razões já rebatidas acima), defendeu também que o título advém da tradição.

Em seu texto, ele afirmou que, ao longo da história, o título de doutor já foi reconhecido a diversos pensadores e filósofos e que as universidades, na Idade Média, passaram a outorgar o título somente “àqueles versados na ciência do Direito”. Argumentou, inclusive, que o título deveria ser ostentado apenas pelos advogados e não pelos médicos:

Percebe-se daí, que, pelas suas origens, o título de Doutor é honraria legítima e originária dos Advogados ou Juristas, e não de qualquer outra profissão. Os próprios Juízes, uns duzentos anos mais tarde, protestaram (eles também recebiam o título de Doutor tanto das Faculdades Jurídicas como das de Teologia) contra os médicos que na época se apoderavam do título, reservado aos homens que reservam as ciências do espírito, à frente das quais cintila a do Direito! Não é sem razão que a Bíblia – livro de Sabedoria – se refere aos DOUTORES DA LEI, referindo-se aos jurisconsultos que interpretavam a Lei de Moisés, e PHISICUM aos curandeiros e médicos da época, antes de usucapido o nosso título! Houve portanto, como afirmamos, um caso de “usucapião por posse violenta” por parte dos médicos que passaram a ostentar a honraria, que no Brasil, é uma espécie de “collier a toutes les bêtes”, pois qualquer um que se vê possuidor de um diploma universitário, se auto-doutora… [ironicamente, essa última frase critica justamente o que o autor defende com relação aos advogados].

Ora, no Império Romano, os juristas eram chamados de jurisconsultos e os magistrados de pretores. Houve um tempo em que, no Brasil, existiam os rábulas, que tinham permissão para advogar mesmo sem formação jurídica. Nada disso permanece até hoje, simplesmente porque são nomenclaturas típicas de suas épocas e que são incompatíveis com os dias atuais.

A verdade é que quem defende a tese de que o advogado é doutor por tradição, tenta ostentar o título como um símbolo de status social que cada vez menos inspira qualquer respeito ou admiração, sobretudo em um país com mais de 1 milhão de advogados e com mais faculdades de direito do que o resto do mundo somado. Ser advogado há muito tempo deixou de ser razão para se sentir privilegiado. Curiosamente, quem realmente tem doutorado raramente exige esse tratamento.

Há ainda quem defenda que se o advogado é doutor por tradição, também o é por direito, por ser o costume uma fonte de direito. Se esse raciocínio simplório realmente fizesse algum sentido, imagine os problemas relacionados a reconhecimento de vínculo empregatício gerados para os pobres garçons que se acostumaram durante anos a serem chamados de “chefia” por seus clientes…

Para fechar: certa vez, vi o filósofo Luiz Felipe Pondé fazer uma ponderação bastante interessante[3]. Em um programa de TV, dizia ele que “se você tirar os salamaleques do poder, ele não se sustenta; então se você tirar esse tratamento com relação às instâncias do poder, as pessoas vão começar a perceber que eles são gente – e às vezes boba, como você pode ser”. O advogado que usa o “título” de doutor como um escudo pode ser apenas um bobo, que não se basta pela sua advocacia. O bom advogado, que tem reconhecimento e admiração por ser um bom profissional, se contenta em ser chamado simplesmente pelo que realmente é: advogado.



* Advogado e mestre em direito. Doutor, só depois do doutorado.



[1]  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM.-11-08-1827.htm

[2] Tribuna do Advogado de Outubro de 1986, pág. 5.

[3] Pode ser ouvida aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=AxHFHUx8F4U

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Fim da lenda urbana: advogado NÃO é doutor. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/fim-da-lenda-urbana-advogado-nao-e-doutor/ Acesso em: 28 mar. 2024