Novo CPC

Comentários ao novo CPC – Parte 1 – art. 1º

 

 

Animado pela vitória do Brasil, sobretudo pela boa apresentação de nossa equipe, cumpro a promessa de encaminhar o primeiro comentário sobre o novo CPC.

 

Em primeiro lugar é preciso enfatizar, como aliás tem sido exaustivamente repetido pelo Presidente da Comissão, Min. Luiz Fux, que não se trata de uma grande reforma, mas, sim, de um novo Código. Há uma nova ideologia, um novo jeito de compreender o processo civil.

 

Pela leitura do texto, é possível perceber a preocupação em sintonizar as regras legais com os princípios constitucionais, revelando a feição neoconstitucional do trabalho.

 

A rápida acolhida do Senado, que logo no dia seguinte ao da entrega do anteprojeto, já o autuou como Projeto de Lei (PLS 166/10) já nos dá uma idéia da excelência do trabalho.

 

A anatomia do texto é a seguinte: um total de 970 artigos distribuídos em cinco livros, a saber: Parte Geral, Processo de Conhecimento, Processo de Execução, Processo nos Tribunais e meios de impugnação, e Disposições finais e transitórias.

 

A Parte Geral é dividida em 11 títulos.

 

O Título I trata dos Princípios e Garantias, das normas processuais, da jurisdição e da ação.

 

Neste primeiro comentário, abordaremos os primeiros artigos do capítulo I, intitulado “Dos Princípios e das Garantias Fundamentais do Processo Civil”.

Vamos aos dispositivos:

 

“Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.”

 

Observa-se uma preocupação em distinguir princípios de valores, que vem sendo acompanhada pela doutrina processual, notadamente Marinoni (Teoria Geral do Processo) e Eduardo Cambi (neoconstitucionalismo e neoprocessualismo).

 

Ao dizer que o Código será disciplinado de acordo com os valores e princípios, o legislador está adotando, expressamente, a teoria do direito processual constitucional.

 

Grandes expoentes do direito italiano, como Taruffo e Trocker já sedimentaram a teoria segundo a qual o direito constitucional é o tronco da árvore do direito e o direito processual é um de seus ramos. Ou seja, não é possível conceber uma única regra processual que não tenha sido inspirada na atmosfera constitucional.

 

Nesse passo, importante refletir sobre a necessidade da renovação do direito processual; tanto o novo CPC, como o novo CPP (PLS 156/09) cujos textos anteriores (na verdade os atuais, em vigor), foram editados antes da Carta de 1988.

 

Como afirma Luis Roberto Barroso, somos um país de democracia tardia (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo). A nova Constituição, e, sobretudo, a defesa intransigente das liberdades públicas (direitos de primeira dimensão) e a implementação dos direitos sociais (segunda dimensão) fizeram com que nos encontrássemos na desagradável situação de ter um pé na modernidade e outro na pós-modernidade (Gisele Cittadino, Poder Judiciário, Ativismo e Democracia).

 

A edição de novos Códigos é um sinal de ruptura com a modernidade, reduzindo o abismo antes existente entre o direito constitucional (e a interpretação ativa que vem sendo feita de suas normas) e o direito infraconstitucional (Eduardo Bittar, O Direito na Pós-modernidade).

 

O dispositivo diz ainda que o processo civil será interpretado conforme a Constituição.

 

É o fim da hermenêuica tradicional, baseada no silogismo: a norma é a premissa maior e o fato a menor. Nessa concepção, caberia ao juiz fazer o exame deste, em acordo com aquela. Para tanto, seriam usados métodos como a interpretação literal, sistêmica, teleológica e comparativa.

 

Agora a hermenêutica passa a ser neoconstitucional, pressupondo que as normas podem assumir a feição de regras ou princípios. As regras devem ser interpretadas de acordo com os Princípios. Havendo colisão de regras, usa-se a hermenêutica tradicional. Havendo uma contraposição de princípios, é preciso recorrer a técnica da ponderação, buscando ou uma composição destes ou a solução que melhor se adeque ao espírito constitucional (Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática).

 

É bem verdade que essa nova hermenêutica aumenta, e muito, os poderes do juiz. Os mais alarmistas, falam em ditadura do juiz (Ingeborg Maus, O Judiciário como superego da sociedade). Cria-se, portanto, a necessidade de uma fundamentação mais profunda nas decisões judiciais. Uma fundamentação analítica (Marinoni, O precedente na dimensão da igualdade). É o que eu chamo do “fundamento do fundamento”. As partes tem o direito de saber quais as premissas que o juiz levou em consideração para tomar aquela decisão.

 

É bem verdade que isso, embora já constitua um grande avanço, não é por si só suficiente. Há uma enorme discussão sobre a natureza da atividade hermenêutica, sobretudo a dificuldade da separação das fases da interpretação da aplicação, bem como os pré-conceitos que influenciam internamente o juiz (Lenio Streck, Verdade e Consenso; Adalberto Hommerding, Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo civil), mas isso é tema para outra conversa … .

 

De toda sorte, o dispositivo é de suma relevância e sua posição como artigo 1º tem enorme simbolismo.

 

Obviamente, temos que estar atentos às observações e aos conselhos de François Ost (Os três modelos de Juiz) e de Boaventura de Souza Santos (Os Tribunais nas sociedades contemporâneas) a fim de que o dispositivo não seja distorcido.

 

Contudo, é sem dúvida, o sinal de uma nova era, que merece, portanto, um novo Código.

 

HD, 20.06.10

 

 

* Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Promotor de Justiça no RJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ e na UNESA

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Comentários ao novo CPC – Parte 1 – art. 1º. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/novo-cpc/comentarios-ao-novo-cpc-parte-i-art-1o/ Acesso em: 29 mar. 2024