Sociologia

O neoliberalismo em Harvey: da acumulação flexível à ideologia da classe dominante

O NEOLIBERALISMO EM HARVEY: DA ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL À IDEOLOGIA DA CLASSE DOMINANTE[1]

Marlon de Oliveira Xavier*

Resumo

O neoliberalismo é um conceito confuso, ainda nublado pela existência de dezenas de concepções contrárias e contraditórias. Um dos autores mais conhecido na área é David Harvey, que estuda os chamados “choques neoliberais” desde a década de 1980. A sua compreensão sobre o fenômeno, no entanto, apresenta grandes divergências, principalmente quando comparadas as obras A Condição Pós-Moderna e Neoliberalismo, História e Implicações. O objetivo deste artigo é apresentar o desenvolvimento das condições materiais do neoliberalismo, na forma estudada por Harvey, e a partir dessa análise identificar o que define a mudança na interpretação que Harvey tem do processo. Pretende-se apontar alguns problemas da disputa que ocorre em torno do conceito de neoliberalismo, explicar a passagem do modo de acumulação fordista para o keynesianismo e deste para o modo de acumulação flexível, resultado das crises de acumulação do pós segunda guerra e do desenvolvimento do capitalismo em sua forma mais dinâmica e financeirizada. Ao final, buscamos apresentar questionamentos ao conceito de neoliberalismo advertido por Harvey, principalmente no seu sentido político de atuação de classe e o aspecto ideológico pouco explorado pelo autor.

Introdução

David Harvey é um geógrafo britânico, professor universitário e um dos marxistas contemporâneos mais conhecidos do ocidente. Reconhecido por seu trabalho de apresentação e introdução das obras de Marx e por diversos livros que buscam relacionar os processos do capitalismo expostos em O Capital com a atualidade, também ficou renomado por seu estudo acerca do neoliberalismo.

Conceito ainda nebuloso e indiscriminadamente recorrente, o fenômeno do neoliberalismo é analisado por Harvey com detalhe em três obras: A Condição Pós-Moderna (1989); O Novo Imperialismo (2003); e Neoliberalismo – história e implicações (2005). Apesar disso, a leitura dos fenômenos que englobam tal termo acompanham Harvey em praticamente todos seus escritos, principalmente naqueles em que se aprofunda na análise da mobilidade geográfica do capitalismo do final do século passado.

Contudo, a interpretação que Harvey tem do neoliberalismo – embora a leitura de O Neoliberalismo dê a entender o contrário – se altera ao longo dos anos, havendo uma diferença substancial entre o primeiro escrito sobre o tema, em 1989, e este último, de 2005. Como veremos, esta diferenciação não se trata de adição de novos elementos ou subtração de outros, mas divergência da relação do autor com os dados e os fenômenos que analisou, estando intimamente ligada a sua interpretação sobre a ideologia.

Buscaremos demonstrar, neste artigo, o caminho teórico que David Harvey fez ao analisar o desenvolvimento do capitalismo no século XX, apontando os elementos materiais que constituem os fundamentos de sua teoria, e indicar a mudança de Harvey quanto à sua compreensão do que é o neoliberalismo, que se dá ao se deparar com sua dimensão ideológica, mesmo que não o tenha feito expressamente.

Neoliberalismo: conceito em disputa

Inicialmente, é importante para este trabalho conceituar e delimitar o neoliberalismo, a fim de trazer luz a esse enevoado conceito, tão amplamente discutido no meio político, mas que raramente encerra em si um consenso. Começamos, portanto, com a definição que Harvey traz ao início de seu livro “O neoliberalismo. História e implicações”:

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio.[2]

Harvey nos apresenta, pelo menos neste primeiro plano, a categorização do neoliberalismo como uma teoria de práticas político-econômicas, ou seja, intimamente relacionada ao Estado e ao Mercado, duas instituições marcadas pela relação dialética que perpetuam entre si. Essa tradição de conflitos vem desde o surgimento dos Estados Nacionais e do próprio capitalismo em si e tem-se configurado de formas diversas a cada período e em cada delimitação geográfica, de modo que, para a compreensão dessa relação, é necessário partir de uma análise do capitalismo em geral para as especificidades regionais históricas, determinadas pelo modo de desenvolvimento do capitalismo nesses países. A melhor base teórica para desenvolver uma análise dessa evolução é com certeza Karl Marx e sua análise do modo de produção capitalista em O Capital.

Uma das críticas direcionadas à conceituação dada por Harvey ao neoliberalismo é de seu excessivo economicismo[3], já que suas análises partem das políticas econômicas das décadas de 1970 e 1980 e prioriza a análise do comportamento do capital nesses períodos. Entretanto, esse caráter aparentemente economicista de David Harvey é condizente com a sua formação marxista e justifica-se pelo óbvio caráter social do materialismo histórico. Partindo das teorias de Marx, Harvey estuda as relações sociais, inclusive da luta de classes, a partir das relações econômicas dos indivíduos. Como veremos, apesar dessa crítica ser comum e geralmente infundada, não faltarão críticas ao modo como Harvey analisa a progressão do neoliberalismo e, em alguns momentos, esquece ou distorce alguns conceitos marxistas, deixando de aplicar o materialismo histórico aos fenômenos analisados.

Há, contudo, e apesar da teorização de Harvey, uma dificuldade muito grande em definir o neoliberalismo, pois este se apresenta de diversas formas, seja em relação aos métodos utilizados, a diferenciação entre a teoria e a prática, as relações distintas que ocorrem dentro dos Estados no processo de neoliberalização, ou ainda pela categorização multifacetada que o neoliberalismo possui. Nesse sentido, Stephanie Lee Mudge[4] define o neoliberalismo como um “sistema ideológico sui generis nascido do processo histórico de luta e colaboração em três mundos: intelectual, burocrático e político”.

Para a autora, a face intelectual do neoliberalismo seria definida pela transnacionalidade ancorada nos países anglo-americanos, pela gestação interna nas instituições de bem-estar e na divisão da Guerra fria, além da elevação do mercado como fonte e regulador das liberdades humanas. A face burocrática do neoliberalismo é expressa na política de Estado, relacionando liberalização, desregulação, privatização, despolitização e monetarismo. Já a sua face política é direcionada pela política centrada no mercado e dirigida pelos “não-políticos” que dominam um senso comum enquanto exercem a prática de liberar o mercado a cada possibilidade.

Na mesma linha, William Davies[5] ao nos apresentar o Estado neoliberal, indica que nesse novo momento da dinâmica dos poderes o neoliberalismo envolve a transferência do poder estatal a esferas não políticas, em um processo contraditório mas direcionado. O Estado assume o caráter de empresa, e sua direção passa a tomar decisões como se empresa fosse, assim, incorpora dois princípios do mercado: competitividade e publicidade. Por um lado, a ideia de que os serviços públicos devem fazer parte de um sistema competitivo, bem como todo indivíduo deve ser um empreendedor, por outro, a ideia de que o mercado mantém às claras os seus interesses e suas leis e que, por isso, o Estado também deveria, de modo a realizar sempre a análise custo-benefício das políticas a serem realizadas.

Na prática, segundo Davies, o Estado neoliberal mantém o seu sistema de favorecimento a grandes empresas, porém, agora todo o processo é não-político e, assim, “sem influências obscuras”. Para que tal método se mantenha, o Estado passa a desenvolver alguns elementos de controle e justificação, como o controle do sentimento popular, centrado no conservadorismo, a ideia de tecnocracia, em que as decisões são tomadas por técnicos com base apenas no seu conhecimento “científico”, e a política a partir das decisões executivas, tomadas de pronto pelo poder executivo e, por isso, fora dos espaços populares e democráticos, como o poder legislativo.

Ao se analisar o neoliberalismo, fica muito clara a sua caracterização como doutrina econômica ou como projeto político, tendo em vista a sua intrínseca relação com a formação de mercados e com a política estatal, contudo, há um terceiro viés que funciona como fundamento para as duas anteriores, que é a sua caracterização como ideologia social. Seria precisamente essa faceta a responsável pela formação e difusão de um senso comum internalizado, uma ideia geral de como o neoliberalismo possui as respostas para as crises que a sociedade capitalista vivencia. Enquanto o economista neoliberal fornece elementos intelectuais e teóricos para estabelecer uma economia de livre mercado mantida pelo Estado, o projeto político realiza e aplica o neoliberalismo dentro da realidade estatal, enquanto a ideologia difundida mantém as classes subalternas alheias às demais facetas.

 Devido a essa caracterização multifacetada, Philip Mirowski[6] definirá o neoliberalismo como um pensamento coletivo. O autor entende o neoliberalismo como uma intrincada estrutura de projeto filosófico e político cujo conhecimento tem sido mobilizado para moldar o discurso e as políticas públicas num nível nacional e internacional e, portanto, para estabelecer o que hoje é visto como senso comum no campo da política. Essa concepção, apesar de bastante teorética, nos ajuda a compreender a dimensão da estrutura ideológica do neoliberalismo, que se desenvolve em diversos âmbitos, assumindo características diferentes, mas, mesmo assim, propagando um certo ideário pró-mercado, que na maioria das vezes, em vez de analisar, apenas justifica.

Além dos diversos pontos de vista apresentados, que desenvolvem o neoliberalismo como inteiramente relacionado ao sistema econômico, ou que o compreendem como uma nova filosofia que encontrou no campo intelectual espaço para florescer e espalhar suas raízes, a análise de Pierre Dardot e Christian Laval, categorizada em A Nova Razão do Mundo, apresenta-se de forma transdimensional às anteriores. Para os sociólogos franceses, que desenvolveram suas teses com fundamento em Michel Foucault e Pierre Bourdieu, o neoliberalismo trata-se de uma nova forma de governabilidade e racionalidade e, para além, uma nova forma de organização da sociedade, em suas palavras, uma nova razão de mundo.

Esse ponto de análise parte principalmente da biopolítica foucaultiana e interpretam o neoliberalismo como a transformação das relações de governabilidade, tanto social, num nível de ingerência estatal, como individual, na governabilidade subjetiva. A sua análise possui íntima relação com a crítica às visões estritamente econômicas do desenvolvimento do neoliberalismo, que o entendem como uma ideologia difundida pelas classes dominantes ou como a evolução do liberalismo clássico a um ultraliberalismo mantido pelo Estado. Para Dardot e Laval, o neoliberalismo tem mais de existencialismo que economicismo.

Essa discussão não é facilmente superada, e talvez sequer devesse ser, porém, para se chegar a um nível de compreensão das linhas traçadas pelo neoliberalismo, é preciso analisar as relações, tanto econômicas como sociais, que formaram o neoliberalismo como é hoje. É possível relacionar o desenvolvimento teórico do neoliberalismo com a Constituição do Colóquio Walter Lippman, em 1936, bem como a obras do início do século XX, principalmente de autores da Escola de Chicago ou dos chamados Ordoliberais. Nos limitaremos, contudo, a analisar o desenvolvimento das condições materiais que permitiram o desenvolvimento do processo histórico contemporâneo que é o neoliberalismo[7].

Do fordismo ao keynesianismo: mudanças de meio século

O Fordismo pode ser entendido de modo simples como o sistema implementado por Henry Ford em 1914, em que introduziu um padrão das relações produtivas, determinando a carga horária diária de 8 horas e salário de cinco dólares pelo desempenho de um papel pontual na linha automática de montagem de carros que havia estabelecido. Para Harvey[8], o que diferenciava esse sistema do taylorismo era a sua visão, “seu reconhecimento explícito de que a produção de massa significava consumo de massa uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista”.

Essa sociedade que Ford buscava criar era baseada nessa dupla relação, da produção de massa e do consumo de massa. Desse modo, a própria relação fixa da carga horária e dos salários pagos cumpriria um papel dobrado: de impor aos trabalhadores a disciplina necessária ao sistema de linha de montagem de alta produtividade e garantir a eles renda e tempo de lazer suficientes para que se tornassem também consumidores dos produtos produzidos em massa. Os trabalhadores se tornariam, portanto, produtores da grande massa de bens, e consumidores dos produtos que eram colocados no mercado em cada vez maiores quantidades.

De acordo com Harvey, Ford possuía tamanha crença no “poder corporativo de regulamentação da economia como um todo que sua empresa aumentou os salários no começo da Grande Depressão na expectativa de que isso aumentasse a demanda efetiva”[9]. Buscava, assim, estimular o giro de mercado aumentando o poder de compra aos trabalhadores com o intuito de restaurar as forças de mercado. Tal empreitada não funcionou, devido à dimensão limitada dos poderes de Ford, pelas relações de mercado competitivas ou pelo tamanho da crise, sendo preciso que o Estado implementasse as reformas do New Deal para que a economia superasse a crise.

No período entre guerras, o Fordismo, que se desenvolveu estritamente nos Estados Unidos, teve diversas dificuldades para avançar em direção à Europa e à sua universalização. Havia grande oposição a um sistema de produção puramente rotinizado, de grandes jornadas de trabalho, necessidade de habilidades nada qualificadas e que concedia pouco ou nenhum controle do trabalhador sobre o processo produtivo. Em seu início, Ford utilizou-se quase que exclusivamente de mão de obra imigrante, já que os americanos lhe eram hostis, e a rotatividade da força de trabalho se mostrou muito alta. Desse modo, as relações de classe do pós-guerra, somadas à oposição dos trabalhadores, impediram o avanço do Fordismo (e do Taylorismo) na Europa, “apesar do domínio capitalista dos mercados de trabalho, do fluxo contínuo de mão de obra imigrante e da capacidade de mobilizar exércitos de reserva da América rural (e, por vezes, negra)”[10]. Foi preciso, portanto, uma revolução das relações de classe[11] para acomodar a disseminação do fordismo na Europa, contudo, essa revolução, que começou na década de 30, só daria frutos nos anos 50, após a Segunda Guerra Mundial.

Uma segunda barreira à difusão do fordismo, segundo Harvey, estava nos modos de intervenção estatal. De acordo com o autor,

Foi necessário conceber um novo modo de regulamentação para atender aos requisitos da produção fordista; e foi preciso o choque da depressão selvagem e do quase-colapso do capitalismo na década de 30 para que as sociedades capitalistas chegassem a algumas novas concepções da forma e do uso dos poderes do Estado[12].

Como veremos mais adiante, foi à luz da profunda crise da década de 30 que se produzirem as obras e, principalmente, se formaram os pensadores neoliberais, que frente ao colapso da economia produzido pelo liberalismo clássico laissez-faire, buscaram a reconstrução dos fundamentos do liberalismo trazendo o Estado como ponto central para a manutenção da sociedade de livre mercado.

A crise de acumulação da década de 20, a quebra da bolsa em 1929, e a posterior depressão de 30, podem ser caracterizadas como resultado da falta de demanda efetiva por produtos. Após a devastação total ocorrida na Europa durante a Primeira Grande Guerra, os Estados Unidos assumiram o patamar de grande indústria mundial e, fomentando a produção em larga escala (utilizando-se do fordismo e do taylorismo), passaram a ser os maiores, senão os únicos, exportadores de bens ao Velho Continente. A produção desenfreada, somada à rápida recuperação da indústria europeia, acarretou no desaparecimento do principal mercado americano, na queda brusca da demanda e a consequente estagnação da produção estadunidense.

As soluções que essa crise requeria, porém, foram pensadas nas mais diversas direções, resultando em formulações teóricas e aberrações políticas. Se, por um lado, os liberais do Colóquio Walter Lippmann defendiam a reformulação do liberalismo em suas bases, por outro, ressurgiam teorias sindicalistas e cooperativistas. Acabaram se destacando nesse período, contudo, as formulações teóricas de John Maynard Keynes de uma social-democracia, e as sublevações autoritárias. É nesse contexto confuso, destaca Harvey[13], que é necessário entender as tentativas diversificadas dos países de chegar a “arranjos políticos, institucionais e sociais que pudessem acomodar a crônica incapacidade do capitalismo de regulamentar as condições essenciais de sua própria reprodução”.

O problema da configuração estatal e do uso de seus poderes somente foi resolvido após o final da Segunda Guerra, permitindo que o fordismo se desenvolvesse como regime de acumulação plenamente acabado e distintivo. Ele veio a se tornar a base do período de expansão pós-guerra e se manteve sólido até 1973. Nesse período, “os padrões de vida se elevaram, as tendências de crise foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota”[14]. O capitalismo desse período se desenvolveu aliado ao keynesianismo e ao fordismo para alcançar as nações descolonizadas em um surto de expansão internacional. As forças de trabalho privilegiadas se expandiam no mundo capitalista com grande demanda efetiva e havia forte alocação de recursos para a reconstrução das economias devastadas, na renovação urbana e formação de subúrbios, na expansão dos sistemas de transporte e linhas de comunicação e no desenvolvimento da infraestrutura, tanto dentro como fora do mundo capitalista.

Essa expansão, contudo, veio aliada a uma forte política keynesiana, a qual foi amplamente contraposta pelo neoliberalismo nascente. O Estado teve de assumir novos papéis, construir novos poderes institucionais, elaborar sistemas de controle do capital corporativo e de manutenção da força de trabalho. A garantia de estabilidade tomou o lugar, por um curto período de tempo, dos riscos do desenvolvimento desenfreado e novas relações de classe se estabeleceram entre o capital e as forças trabalhistas.

Assim, as forças sindicais, fortes no período entreguerras e com poder de barganha no mercado, foram dominadas, através da disciplina legal e sob a acusação de infiltração comunista. De modo a evitar perdas ainda mais consideráveis, essas forças sindicais se viram forçadas a cooperar na implementação das técnicas fordistas de produção e das estratégias corporativas de aumento da produtividade para assegurar certos direitos, como os benefícios da seguridade social, salário-mínimo e outras políticas sociais. As organizações sindicais, cada vez mais burocratizadas, foram pressionadas, através da repressão violenta a greves, por exemplo, a trocar ganhos reais de salário pela cooperação na disciplina dos trabalhadores.

Essas relações são um elemento de extrema importância na análise de David Harvey. Elas vão figurar como protagonistas na diferenciação entre os processos de acumulação fordista e de acumulação flexível, tanto no tratamento dispensado pelo Estado, como no modo de desenvolvimento de relações paralelas ao trabalho organizado. É importante ressaltar, contudo, que a relação entre os processos de acumulação e a força de trabalho provém essencialmente de Marx, em seu livro O Capital, quando este explica o processo que leva ao surgimento do mais-valor a partir do capital e ao surgimento do capital a partir do mais valor em escala ampliada, já que a apropriação da força de trabalho está intimamente ligada à acumulação:

Sendo processo de produção e, ao mesmo tempo, processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, o produto do trabalhador transforma-se continuamente não só em mercadoria, mas em capital, em valor que suga a força criadora de valor, em meios de subsistência que compram pessoas, em meios de produção que se utilizam dos produtores. Por conseguinte, o próprio trabalhador produz constantemente a riqueza objetiva como capital […] e o capitalista produz de forma igualmente contínua a força de trabalho como fonte de riqueza[…].[15]

No período pós-guerra, as formas de intervencionismo estatal se diferenciavam de um país capitalista a outro, mantendo, contudo, um crescimento econômico estável e o aumento das condições materiais da população através de políticas de bem-estar social, administração econômica keynesiana e controle de relações de salário. Como o fordismo dependia, internacionalmente, de ampliação dos fluxos de comércio mundial, e internamente, de uma certa regulação das relações sociais, este acabou se entrelaçando com os Estados e formando uma relação simbiótica com o modernismo:

O fordismo também se apoiou na, e contribuiu para a, estética do modernismo – particularmente na inclinação desta última para a funcionalidade e a eficiência – de maneiras muito explícitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal (orientadas por princípios de racionalidade burocrático-técnica) e a configuração do poder político que davam ao sistema a sua coerência se apoiavam em noções de uma democracia econômica de massa que se mantinha através de um equilíbrio de forças de interesse especial.[16]

Isso concedia ao fordismo a condição de se desprender da simples categorização de sistema de produção em massa e passar a ser entendido como um novo modo de vida, presente nos mais diversos âmbitos da vida social. A própria visão fordista, que requeria a necessidade de produtividade em todas as ações (e produtos) cotidianas, além do consumo massivo passou a ser difundida e interpretada com maior empenho. A visão de boa vida era traduzida como ter acesso aos bens de consumo, fazer parte da massa de consumidores.

No plano internacional, esse sistema não foi tanto difundido como foi imposto, seja através das políticas de ocupação ou pelo Plano Marshall. Essa abertura dos mercados estrangeiros, principalmente na Europa, permitiu aos Estados Unidos escoar sua produção e ajudou na formação de “mercados de massa globais e absorção de massa pela população mundial”[17]. Esse novo internacionalismo propagou uma nova cultura internacional e se apoiou em capacidades recém-descobertas de difusão de informações, em um novo processo que permitia a globalização da oferta de matérias-primas e a difusão de um novo sistema financeiro. Harvey lembra que o “acordo de Bretton Woods, em 1944, transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana”.

Os Estados Unidos dominaram a política financeira internacional, concedendo empréstimos em troca da abertura econômica que favorecesse a presença do capital e das mercadorias das grandes corporações. Sob essa influência, o fordismo se disseminou no âmbito global, porém, de forma desigual, já que as únicas limitações eram as relações de classes próprias de cada país e o controle que cada Estado impunha sobre sua própria administração econômica. A desigualdade se verificou também internamente. Aqueles trabalhadores que não tinham acesso ao consumo de massa devido à exclusão social se movimentaram em forte contramovimentos, revoltas sociais, de modo que a legitimação do Estado dependia de aumentar a abrangência dos benefícios do fordismo concomitantemente ao prolongamento dos benefícios sociais, contudo, a própria manutenção do Estado de bem-estar social dependia da contínua aceleração da produtividade do trabalho e solidificação do mercado.

Crise no pós-guerra e solução para o capital: a acumulação flexível

Em suma, a realidade se distanciava do ideário prometido. Enquanto parte do mercado (a monopolista) crescia de modo constante, utilizando-se de negociações de salário ao estilo fordista e apresentavam investimentos de larga escala na tecnologia de produção de massa, outra parte (competitiva) estava distante do modo de produção fordista, onde a produção sofria com altos riscos e dependiam de salários baixos e fraca garantia de emprego. Esse mercado competitivo, paralelo ao monopolista, se expressava precisamente nas áreas de dependência e influência econômica americana, nos limites do mercado capitalista de produção fordista. Como Harvey explica, crescia o número de

insatisfeitos do Terceiro Mundo com um processo de modernização que prometia desenvolvimento, emancipações das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos (por exemplo, no campo da saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional.[18]

A transformação do processo de acumulação fordista para o processo de acumulação flexível, assim como praticamente todos os processos de reconfiguração social que ocorreram dentro do capitalismo, não se deu da noite para o dia. Foram anos de progressivo surgimento de novas relações, modificações das políticas aplicadas e de desenvolvimento de novas técnicas que puderam, a partir de certo momento, ser interpretada como algo novo. O ponto decisivo, a crise do petróleo de 1973, forçou a generalização e aceleração dessa transformação, de modo que a partir desse período, começa-se a verificar a formação de uma ideologia, a hegemonização do processo de acumulação flexível.

Os problemas com o processo de acumulação fordista já iam se aprofundando a partir da década de 1960, quando se concluira a recuperação da Europa Ocidental e do Japão, e estes dois polos passaram a expandir os seus mercados e zonas de influência para escoar a produção que o mercado interno não dava conta de consumir. Nos Estados Unidos o enfraquecimento da demanda efetiva foi contida através da guerra à pobreza e da guerra do Vietnã, contudo, “a queda da produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 marcou o começo de um problema fiscal nos Estados Unidos que só seria sanado às custas de uma aceleração da inflação”[19]. Esta inflação minou a força do dólar e seu papel como moeda-reserva internacional estável.

Foi nesse período, inclusive, que tomados por uma ideologia desenvolvimentista, os países da América Latina promoveram uma série de políticas econômicas que envolviam a abertura do mercado interno a investidores internacionais, contra o movimento anterior de substituição de importações, e que, “associadas ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro […] geraram uma nova onda de industrialização fordista competitiva”[20]. Desse modo, a competição internacional, renovada pela nova força econômica europeia e japonesa forçaram à desvalorização do dólar e a substituição das taxas fixas de expansão do pós-guerra por taxas de câmbio flutuantes.

Por um certo período de tempo, que Harvey delimita de 1965 a 1973, as contradições inerentes ao capitalismo suplantaram o fordismo e o keynesianismo, que se mostraram incapazes de conter as crises de superexploração, devido, principalmente, à rigidez de seu sistema de “investimento em capital fixo de larga escala e longo prazo em sistemas de produção em massa”[21], que se apresentava um processo muito mais concentrado, centralizado e especializado. As tentativas de superação da rigidez, principalmente no que concerne aos contratos trabalhista, eram barradas pela força da classe trabalhadora, que promoveram diversas greves no período. A única ferramenta “de resposta flexível estava na política monetária, na capacidade de imprimir moeda em qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia estável”[22], fazendo com que a nova onda inflacionária afundasse a expansão estável do pós-guerra.

Havia, então, um excesso de fundos e poucas áreas produtivas para investimento e um sistema de produção voltado inteiramente para os recursos e para a expansão de impérios econômicos. A tentativa de refrear a inflação em 1973 gerou uma crise mundial nos mercados imobiliários e diversas dificuldades nas instituições financeiras, agravados pela decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e o embargo árabe da exportação dos produtos ao ocidente. Os choques do petróleo geraram uma crise energética sem precedentes, forçando novas formas de economia de energia na produção através de alterações tecnológicas e organizacionais e trazendo o problema da reciclagem dos petrodólares excedentes, que gerou ainda mais instabilidade nos mercados financeiros internacionais. Nas palavras de Harvey:

A forte deflação de 1973-1975 indicou que as finanças do Estado estavam muito além dos recursos, criando uma profunda crise fiscal e de legitimação. […] as corporações viram-se com muita capacidade excedente inutilizável (principalmente fábricas e equipamentos ociosos) em condição de intensificação da competição. Isso as obrigou a entrar num período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho […] A mudança tecnológica, a automação, a busca por novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo de giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias de sobrevivência em condições gerais de deflação.[23]

Os modos de superação dessas dificuldades proporcionadas pela crise estavam intrinsecamente ligadas ao disciplinamento do trabalho que, a partir daquele momento, como veremos posteriormente, adentrava em processo de globalização, já alinhado ao ideal neoliberal. Era necessário propagar, criar e manter uma competitividade entre as diferentes forças de trabalho em escala mundial, o que requeria, por sua vez, um capital muito mais fluido e aberto à mobilidade geográfica. Esse foi um momento de expansão e transformação do capital em uma configuração inteiramente nova, fundada em uma lógica inteiramente globalizante. Para David Harvey, ocorre mais nitidamente o solapamento do fordismo e ascensão do processo de acumulação flexível. Importante analisar nas palavras do geógrafo britânico:

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas […] Ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista — os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.[24]

Em suma, o processo de acumulação flexível envolve uma modificação das relações trabalhistas na direção de uma precarização avançada, se desenrolando através do ampliamento da terceirização, da descentralização, do rompimento com sistemas de solidariedade como os sindicatos, desregulamentação e redução das políticas sociais. Enquanto na produção, representa o fim do sistema de estoques, a descentralização e desmembramento dos grandes monopólios, o movimento das grandes empresas para a periferia e a constante movimentação do capital. Verifica-se que dentro da produção há uma terceirização ampla e o fortalecimento de um processo de competitividade entre pequenas empresas para assumir as áreas de produção intermediárias das grandes empresas. Em vez de integralizarem a produção internamente, as empresas a externalizam ao mercado através de contratos de serviço.

A possibilidade da constante movimentação da produção gera um desalinho nas relações de trabalho: de um lado, gera o enfraquecimento das relações trabalhistas, já que o trabalhador (e seus órgãos representativos) perdem o poder de barganha frente a necessidade de empregos — o desemprego é essencial para a baixa dos salários, já dizia Marx[25] -; do outro, as empresas aumentam seu poderio, pois podem se evadir para qualquer lugar com melhores benefícios, ajudas de custos e mão de obra mais barata e precarizada.

O que fica claro nesse processo é a pressão sobre o enfraquecido poder sindical para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis, substituindo o emprego regular pelo uso de trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado, o que evidencia, de fato, o tamanho do exército de reserva disponível nesse período.

Como Harvey[26] apresenta, por um lado o crescimento da subcontratação e da consultoria “permitem que atividades antes internalizadas nas firmas manufatureiras (legais, de marketing, de publicidade, de secretaria etc) sejam entregues a empresas separadas”, promovendo uma valorização de projetos de “empreendimentismo inovador e ‘esperto’”. Por outro, argumenta que a acumulação flexível é uma espécie de “recombinação simples das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx”, falando tanto da mais-valia absoluta quanto da mais-valia relativa.

Neoliberalismo para Harvey: resultado da crise do capitalismo, produto das condições materiais ou projeto político das elites?

Nesse momento, antes de adentrarmos na análise ao desenvolvimento da teoria de Harvey sobre o neoliberalismo, faz-se necessário abrir um parênteses quanto ao desenvolvimento dos estudos de David Harvey sobre a acumulação capitalista no século XX. Harvey estuda e escreve sobre o processo de acumulação ao menos desde a década de 1980, e percebe-se uma progressão nas conceituações e no pensamento utilizado em A Condição Pós-Moderna de 1989, O Novo Imperialismo de 2003 e O Neoliberalismo, história e implicações de 2005. Enquanto em A Condição Pós-Moderna, Harvey explica os processos de transição dos modos de acumulação originados a partir das crises de superacumulação, e desenvolve os elementos característicos desses novos processos, em O Novo Imperialismo, o autor analisa a política de Reagan e Tatcher como tipicamente neoliberais. Já em O Neoliberalismo, traz a crise do petróleo de 1973 como elemento econômico central do surgimento da doutrina neoliberal no âmbito mundial, através dos choques neoliberais, sem tratá-la, especificamente, como crise de acumulação, e fazendo uma nova interpretação dos processos que antes havia classificado como de acumulação flexível ou de acumulação por espoliação — que nada mais é que a acumulação primitiva renomeada.

De certa forma, Harvey interpreta diferentemente os mesmos elementos em fases distintas de sua produção teórica. Se, por um lado, ele identifica os processos de flexibilização geográfica do capital, somados à fluidez das relações de trabalho e às relações entre Estado e monopólio, como elementos críticos da transformação do processo de acumulação fordista em acumulação flexível; por outro, passa a interpretar esses mesmos elementos como parte da doutrina neoliberal e os novos processos de financeirização como integrantes de um projeto político sólido das elites, dependente, por exemplo, da concentração do capital.

A aparente contradição das formulações de Harvey nos obriga a ir mais a fundo em uma leitura sistemática da obra do autor, que busca apresentar uma compreensão mais aprofundada das relações entre as práticas econômicas e os interesses políticos do século XX. É certo que para o entendimento completo de O Neoliberalismo se requer a leitura prévia da obra anterior de Harvey, já que para a compreensão do desenvolvimento do neoliberalismo, é preciso estudar as crises, as propensões econômicas e as evoluções históricas do capitalismo, bem como os processos de acumulação.

Porém, a análise inversa também nos rende certos frutos. De alguma maneira, é possível verificar que Harvey alterou a sua leitura do desenvolvimento do capitalismo em algum momento entre 2001 e 2005, adicionando o elemento ideológico do neoliberalismo na sua compreensão das transições econômicas. Se antes de 2005 não havia uma menção apropriada do neoliberalismo em seus escritos, ou ele passou a compreender esse elemento nesse período, ou tal ideia ainda estava em gestação, de modo que o autor aguardou o seu amadurecimento, provavelmente incentivado pelas novas movimentações econômicas americanas da Guerra ao Terror.

Independentemente da origem dessa transformação, o importante é verificar que Harvey muda a sua concepção ao trazer para a sua análise o elemento ideológico, que até então não estava tão evidente. Ao incluir a ideologia no paradigma analisado, o geógrafo consegue traçar uma linha entre a modificação dos processos de acumulação e os interesses políticos das elites, onde se encaixa, a nosso ver, as formulações teóricas liberais do século XX e que passaremos a expor no próximo segmento.

Contudo, antes de progredirmos, é importante trazer alguns pontos de crítica aos apontamentos expostos por Harvey em sua análise. Primeiramente, ao caracterizar o neoliberalismo como um projeto político para restauração do poder de classe das elites dirigentes, Harvey estabelece que a) é um projeto político direcionado, com resultados esperados e consequências previstas — e, portanto, teorizado — e b) como projeto político, obedece e reproduz uma certa ideologia positiva das classes dominantes promovida de modo consciente.

Esse é um ponto que merece atenção. No primeiro capítulo de O Neoliberalismo Harvey parabeniza a escolha dos neoliberais pelo princípio da liberdade como seu elemento primordial, pois é um princípio que realmente vale a pena ser defendido. Nas suas palavras, “fizeram uma sábia escolha, porque esses certamente são ideais bem convincentes e sedutores (dignidade humana e liberdade individual)[27]. Essa colocação dá a entender que essa foi uma escolha pragmática pela facilidade como esses princípios são aceitos, e não por ser um valor realmente defendido. Pautar a principiologia do neoliberalismo dessa forma gera o risco de cair em um panorama conspiratório e ter sua teoria legada a um caráter de supraciência, ou ideologia, como diria Marx. É preciso compreender que, na realidade, a propagação desse princípio é defendido e reproduzido pelos liberais pois se tornou o valor dominante das sociedades capitalistas, acompanhando as mudanças da realidade do sistema.

Convém indicar que a elevação desses princípios, de liberdade individual e dignidade humana, a fim máximo da sociedade, foi a forma mais orgânica de justificar os processos de exploração que o sistema capitalista impõe. Ao declarar que no capitalismo todos são livres para tomar as próprias decisões e escolher o próprio caminho, os liberais difundem a ideia de que os indivíduos são responsáveis pela sua condição de vida, a qual é resultado das suas escolhas, e mesmo que estejam em posições deploráveis, ainda é melhor do que não ter a opção. Como exemplo, apresento as palavras de Ludwig von Mises ao caracterizar a liberdade:

Mas liberdade econômica significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem liberdade para fazer o que quer.

É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através da liberdade econômica, o homem é libertado das condições naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liberdade; há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o significado exclusivo de liberdade na sociedade.[28]

Ou no caso da formulação dada por Milton Friedman:

A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade livre. De um lado, a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em sentido mais amplo e, portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também um instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política.[29]

A uma primeira e rápida leitura, é uma aceitável conceituação: o poder de escolher o próprio destino. Porém, parando para analisar mais precisamente, nos encontramos com uma questão básica: o capitalismo realmente concede isso? Apesar de que diversos autores liberais apresentarem o capitalismo como o fundo provedor de escolhas e opções, velados sob a possibilidade de mobilidade social, na realidade essa gama de opções, de escolher “sua função na sociedade”, é relegada a uma fração da sociedade. Enquanto esses poucos indivíduos podem escolher se querem ser médicos ou advogados, a imensa maioria do mundo capitalista se vê obrigado a vender sua força de trabalho pelo menor preço possível na tentativa de não morrer de fome.

Vender o paradigma da liberdade econômica, mascarada de liberdade individual, é esconder que a verdadeira escolha é entre vender sua força de trabalho não para empresa A, mas para a empresa B, e as raras chances de mobilidade social servem como apaziguadoras dos ânimos, a esperança que se desvanece por último. Com as crises de acumulação, a ideologia dominante precisa formar um indivíduo diferente, um trabalhador que produz mais e guarda o restante na poupança, onde seu dinheiro, em vez de virar a possibilidade de ascensão social, vira investimento na mão do mercado financeiro.

A ideologia neoliberal, portanto, se utiliza de diversos desses valores, transmutados em aforismos lógicos, concepções morais e pressupostos que, partindo de meias-verdades ou verdades distorcidas, é propagada e permeia a sociedade capitalista, principalmente nos países da América Latina sob influência dos Estados Unidos, como o Brasil. Entretanto, quando se fala de uma política de classe, não se trata de simples articulação maquiavélica, mas da transmutação de interesses específicos de determinada classe em interesses universais, na transformação da essência das condições materiais em mera aparência, em justificação plena da realidade material.

Aí talvez esteja o maior equívoco de David Harvey: ele minimiza o poder social da ideologia ao transformá-la em um plano de poder para a articulação da classe, sem remeter, para isso, aos elementos materiais. Harvey não conseguiu entender a mediação entre as condições materiais da crise de acumulação e as tendências e saídas possíveis para o capital. Compreender essa relação, ir a fundo na crítica da economia política e no movimento do capital faria Harvey observar que a saída da crise naquele momento indicava como solução a flexibilização das condições de trabalho, o investimento direto nos países subdesenvolvidos e no solapamento do Estado de Bem-Estar Social europeu. Os elementos que Harvey vê como neoliberais na economia e o projeto político das classes dominantes não são elementos diversos, mas resultados do mesmo movimento do capitalismo em escala global.

Conclusão

Harvey fez a conjunção dos elementos materiais que permitiram o desenvolvimento do neoliberalismo – crise de acumulução, crise do sistema de bem-estar social, alteração do modo ou processo de acumulação e de organização do trabalho – com a formação de um complexo ideológico das classes dominantes, contudo, não o fez expressamente, o que se tornou o elemento de maior fragilidade de seus estudos. Ao não desenvolver a contento e de forma explícita os elementos ideológicos que justificam a nova fase do capitalismo, Harvey abriu mão do conceito de totalidade e deixou as lacunas serem preenchidas por seus leitores, à sorte de seus próprios acúmulos teóricos.

Não à toa as maiores críticas à Harvey são direcionadas à sua caracterização do neoliberalismo como política da classe dominante para reaver o seu poder. Essa caracterização, de forma simples – na forma como expressa por David Harvey -, realmente rebaixa sua teoria à ao caráter de supraciência, à teoria da conspiração.

A ausência de desenvolvimento, a abstenção de Harvey em aplicar o conceito dialético de totalidade, pugnou, à vista dos seus críticos, grande debilidade ao seu sistema teórico. Contudo, os estudos que Harvey faz dos processos de acumulação de capital e do desenvolvimento histórico são, ainda, de grande valia. Cabe aos seus leitores mais interessados a tarefa de tomar o que é, de fato, útil, e desenvolver de forma ampla estudos que, sem esquecer as bases definidas por David Harvey, possam avançar na compreensão da realidade e do neoliberalismo.        

Bibliografia

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https://academic.oup.com/ser/article/6/4/703/1739555 em 29/06/2019.



[1] Este artigo é resultado da pesquisa desenvolvida pelo autor no primeiro capítulo de seu Trabalho de Conclusão do Curso de Direito intitulado “Neoliberalismo: ideologia e dependência na reforma trabalhista”.

* Mestrando em Teoria e História do Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. <marlon.xavier.arquivo@gmail.com>;.

[2] HARVEY, 2005, p. 12.

[3] MIROWSKI, 2009, p. 421.

[4] MUDGE, 2008, p. 703-731.

[5] DAVIES, 2009,              p. 273-283.

[6] MIROWSKI, 2009, p. 417- 455.

[7] Para o desenvolvimento teórico do neoliberalismo e dos autores neoliberais, cf. FOUCAULT. O Nascimento da Biopolítica e DARDOT; LAVAL. A Nova Razão do Mundo.

[8] HARVEY, 2012, p. 122.

[9] Ibidem, p. 122.

[10] Ibidem, p. 123.

[11] David Harvey explica que um dos processos utilizados pelo capital para implementar o fordismo foi a apropriação das dirigências dos sindicatos, as quais forneciam ajuda na “domesticação” e adequação dos trabalhadores em troca do poder de barganha e pequenas melhoras na qualidade de vida.

[12] Ibidem, p. 124.

[13] Ibidem, p. 125.

[14] Ibidem, p. 125.

[15] MARX, 2013, p. 647.

[16] HARVEY, 2012, p. 131.

[17] Ibidem, p. 131.

[18] Ibidem, p. 133.

[19] Ibidem, p. 136-137.

[20] Ibidem, p. 135.

[21] Ibidem, p. 135.

[22] Ibidem, p. 136.

[23] Ibidem, p. 137.

[24] Ibidem, p. 140.

[25] “Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional […] Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.” MARX, Karl. 2013, p. 707-708.

[26] HARVEY, 2012, p. 149.

[27] HARVEY, 2005, p. 15.

[28] VON MISES, 2009, p. 26.

[29] FRIEDMANN, 2014, p. 16.

Como citar e referenciar este artigo:
XAVIER, Marlon de Oliveira. O neoliberalismo em Harvey: da acumulação flexível à ideologia da classe dominante. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociologia-artigos/o-neoliberalismo-em-harvey-da-acumulacao-flexivel-a-ideologia-da-classe-dominante/ Acesso em: 19 abr. 2024