Sociedade

As reformas religiosas: os críticos e as críticas – A teologia dos não teólogos

Bárbara Cristina Rodrigues Neres[1]

 bah-rodrigues-@hotmail.com

Resumo: Desde que a sede pelo poder e pelo domínio ideológico se apoderou de grande parte dos componentes da Igreja Católica, pode-se dizer que o homem comum perdeu seu direito de opinião sobre as coisas que o cercavam. A teologia era uma ciência que cabia aos teólogos e não aos analfabetos da comunidade europeia. Contudo, esse homem moderno começou a expor suas linhas de pensamento o que gerou uma sublevação sobre os ideais que alicerçavam a Igreja. Logo assim, estava posto o período das reformas A metodologia utilizada no seguinte trabalho engloba livros e casos envolvendo a Santa Inquisição.

Palavras-Chave: Homem moderno, Igreja, Inquisição.

INTRODUÇÃO

Durante muito tempo a Igreja ditou uma linha de pensamento que deveria ser seguida por seus fiéis. A moral cristã era aquilo que mais importava em uma sociedade marcada pela opressão sobre o pensar. Todavia, é necessário enfatizar que isso não se refere aos ensinamentos de Cristo, ou de seus discípulos ou de tudo que envolve as ações divinas. Isso se refere a algo mundano, a mentalidade dos homens e seu desejo pelo poder, conseguido obviamente pela manipulação daquilo que era certo ou errado de acordo com os ditames da fé. Dessa forma vale lembrar que a Igreja é formada por homens e o poder pelo poder gera consequências drásticas aqueles que se encontram no meio do caminho.

Em determinado momento, o homem moderno começou a se questionar sobre os valores que seguia. Começou, portanto, a analisar os dogmas do clero que regiam a sua fé e a entender que determinadas matérias distorciam os verdadeiros ensinamentos do evangelho. Com isso, iniciava-se o período de agitação na Igreja, refletido na conhecida Reforma Protestante. A reforma consistia basicamente em uma reorganização dos preceitos que alicerçavam a fé, de modo que o capital, por exemplo, não destoasse do que realmente deveria significar. Práticas como a indulgência, os conflitos sobre o direito divino dos reis e o poderoso capital da Igreja eram fatores que viriam a ser questionados. Todo esse conflito armado contra o clero levou a única solução plausível pela Igreja: a Contrarreforma.

Em tese foi o modo que o clero arranjou para dar a chamada “volta por cima”, mas acima de tudo a melhor forma de dominar novamente aquilo que a população pensava. Logo assim, o período foi marcado pela volta do Tribunal do Santo Ofício, do estabelecimento do “Index Librorum Prohibitorum”, ou melhor, Índice dos Livros Proibidos e de diversas remodelações nas ordens eclesiásticas. Aquele que se voltasse contra os ideais cristãos e que realizassem práticas além das permitidas seria alvo da Santa Inquisição. Destarte, teologia para aqueles que realmente podiam entendê-la e apenas “Vulgata” – referência a Bíblia liberada – para o resto da população.

O HOMEM MODERNO PENSANTE

O século XX trouxe para a historiografia uma abertura de pensamento inimaginável. A História não segue mais a lógica ou o aspecto positivista documental, mas sim o elemento cultural da sociedade. A mentalidade nos abre a porta para o desenvolvimento de estudos mais específicos que abordam uma longa duração. De toda forma, o desenvolvimento desta modalidade de estudo ajudou na análise documental que auxiliará no entendimento deste homem moderno pensante.

Grandes historiadores como Lucien Febvre – primeira geração de Annales- e Carlos Ginzburg analisam casos em que os personagens principais abordam sua fé e a desenvolvem de acordo com seus pensamentos, suas influências e aquilo que lhes é imposto. No livro “Os queijos e os vermes” de Ginzburg tem-se a história do moleiro Menocchio, que independente de sua classe social e sua falta de escolaridade, conseguiu ter contato com livros proibidos pra época desenvolvendo uma opinião ácida sobre os evangelhos e em geral sobre a figura de Cristo e de Maria. O interessante na história de Menocchio são suas análises divinas. O caos cabia a Deus e Deus cabia ao caos. Os elementos existiam no caos o que de alguma forma gerava o queijo de onde saiam os anjos comparados a vermes (GINZBURG, 1987). O moleiro das colinas de Friuli dizia ainda que Deus estava em nós, que as sagradas escrituras foram adaptadas pelos homens e que recusava os mandamentos da Igreja. Todos esses argumentos faziam dele um dissidente, um herético, alguém que cabia perfeitamente nos padrões da Inquisição. Faz-se interessante o fato de que um simples moleiro sem grandes estudos tenha entendido o contexto de ideias tão singulares e as tenha utilizado como parâmetro para firmar suas opiniões absorvidas de debates com pessoas de mesmo cunho ideológico. É eloquente dizer que Menocchio possui uma capacidade de desenrolar as ideias bem desenvolvidas nos livros com base em uma cultura oral consistente proveniente de um período de reformas religiosas e culturais.

Estas disparidades de pensamento somadas à teimosia do moleiro levaram-no a condenação. O engraçado na história de Menocchio é que ele foi condenado duas vezes. Uma vez solto continuou com suas ideias questionadoras e sempre argumentava que gostaria de se expressar perante um membro do clero. Contudo, é importante salientar que durante seus testemunhos ao Tribunal, o moleiro se contrapõe várias vezes, demonstrando certo temor em relação a uma possível condenação.

TRATADOS DE DEMONOLOGIA COMO OBJETO DE APRISIONAMENTO

Durante o século XVI, surgiram tratados que possibilitavam o aprisionamento dos heréticos (adoradores do maligno). Comumente se define essa época como a chamada “Caça as Bruxas”. Na verdade não passava de um período em que se você cultuasse algo diferente do que a Igreja pregava, ou se você soubesse algo que não deveria saber, ou melhor, ainda, se você ousasse questionar algo que já estava impregnado na mentalidade europeia você estava automaticamente intitulado como adorador do mal, feiticeiro, bruxa, herege e consequentemente estaria em uma fogueira ou sob aparelhos de tortura do Tribunal da Inquisição.

Nesse período da história era bem comum mulheres saberem remédios com ervas para curar ferimentos ou infecções, era comum também que fizessem passeios noturnos onde louvavam a deusa mãe – natureza – em prol de uma boa colheita. Contudo, isso com certeza seria mal visto pela sociedade que as rodeava. Fechava-se assim a imagem da bruxa ou do feiticeiro, que segundo muitos testemunhos eram aqueles que voavam em suas vassouras durante a madrugada e praticavam orgias sexuais e consecutivamente comiam a carne de criancinhas.

Estudos relatam que nas regiões onde esses casos eram dissidente – França, Romênia, Escócia- por muitos anos existiu o culto de deuses pagãos provenientes da cultura celta, cuja deusa conhecida como Oriente daria abundância na colheita se houvesse a realização correta de tais rituais. Isso posteriormente levaria a acusação de problemas previstos nos manuais utilizados pelo clero para o reconhecimento dos adoradores do diabo. O mais conhecido era o Malleus Maleficaru de Henry Kramer e James Sprenger.

A EXALTAÇÃO DO CRISTÃO SOBRE O PAGÃO

Independente dos períodos taxados pela cronologia da historiografia padrão, compreende-se que toda vez que uma cultura tenta se fazer valer sobre o domínio de outra, ela é tida como pagã. Isso ocorria na Grécia, em Roma, no Egito. Então por que não em outro espaço de tempo na Europa? As culturas nunca morreram e muito menos a percepção do homem sobre aquilo que as envolvia. Independente de se estar em determinada época e local, se você tinha fé em algo diferente você seria condenado. A Igreja não perdoava os infiéis.

Ao longo da dita Idade Média e em sua transição para a Idade Moderna, faz-se evidente que a ponderação de pensamentos estava controlada. Aquele que não concordasse com um mísero “ai” na homilia poderia ser taxado como possuído pelo mal, já que não concordava com o que Deus ensinava. Assim se fez a sobreposição do certo sobre o errado, do cristão sobre o pagão. O caso do moleiro ou das mulheres adoradoras de divindades naturais é exatamente o que se encaixa nesse quadro. Se você não é teólogo ou membro eclesiástico não pode opinar sobre o que não lhe cabe, pode apenas aceitar já que existem pessoas as quais tais assuntos competem que podem responder por você. É exatamente esse tipo de percepção que instaura o pensamento do clero.

É evidente que o número de fiéis revoltados com anos de domínio ideológico e comportamental cresceria ao longo do tempo. Mas é mais claro ainda que fossem abatidos pela leva inquisitorial que não permitiria dissidentes. A contrarreforma enrijeceu o grupo dos inovadores, se resguardando desde o primeiro aviso sobre os hereges.

CONCLUSÃO

O domínio mental sobre o homem cristão moderno ocorre pela estruturação política da Igreja Católica no período que corresponde a Idade Média e que se estende por toda a Modernidade. O monopólio do pensamento e consecutivamente dos dogmas faz do clero o órgão supremo do Estado europeu. Cabia entender sobre religião àqueles que estudavam religião, ou seja, que eram membros eclesiásticos. A população em sequência não tinha direito de opinar sobre o que acreditava e ainda por cima não tinha estudo ou acesso aos livros para que assim fizesse.

Os casos de investigação e condenação cabíveis a Santa Inquisição são dos mais variados. O caso de Menocchio intriga e nos leva a questionamentos inimagináveis. Contudo, não são todos os casos que se fazem verdadeiros, tendo em vista que muitos relatos de condenações são manipulados para que o réu seja sentenciado à morte. É evidente então que a religiosidade foi manipulável em prol dos mais poderosos.

REFERÊNCIAS

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GINZBURG, Carlo: O Queijo e os Vermes: o cotidiano de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.

MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 2007.



[1] Bacharela em direito, historiadora, pós graduanda em direito marítimo e direito público

Como citar e referenciar este artigo:
NERES, Bárbara Cristina Rodrigues. As reformas religiosas: os críticos e as críticas – A teologia dos não teólogos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/as-reformas-religiosas-os-criticos-e-as-criticas-a-teologia-dos-nao-teologos/ Acesso em: 29 mar. 2024