Sociedade

Um breve estudo acerca da possível origem dos preconceitos na América: Análise sobre o discurso da superioridade cultural europeia na idade moderna

UM BREVE ESTUDO ACERCA DA POSSÍVEL ORIGEM DOS PRECONCEITOS NA AMÉRICA: ANÁLISE SOBRE O DISCURSO DA SUPERIORIDADE CULTURAL EUROPEIA NA IDADE MODERNA[1]

GRISCHKE, Lucas Lopes[2]

SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes[3]

RESUMO

O trabalho pretende expor, de forma concisa e simples, as origens das seguintes mazelas na América: preconceito, racismo e intolerância religiosa. Em comum, entre estas formas de violência, observa-se a aplicação de um discurso imposto. A referência, que existe nas escolas e, popularmente divulgada, de primeiro contato com os habitantes americanos, é a chegada dos homens europeus. Os “grandes colonizadores” trouxeram de suas terras as convicções, a religião cristã, as culturas e as visões de um mundo limitado, mas prestes a ser desbravado. Após a opressão aos índios, que é o foco estudado, a hegemonia europeia se estendeu à África, com a escravidão negra. Para alcançar o objetivo proposto, foram utilizados, como dados bibliográficos, das palavras de Colombo em seu Diário do Descobrimento até os pensamentos de célebres autores contemporâneos como Stuart Hall e Boaventura de Sousa Santos. Será observado que há necessidade da sociedade contemporânea, não somente a latino- americana, refletir sobre a carga cultural trazida pelos conquistadores e buscar a preservação e autonomia das culturas mundiais.

Palavras-chave: Preconceitos. Era do Descobrimento. Discurso Cultural. Racismo. Cristianismo. Contra-hegemonia.

ABSTRACT

The work is to present, in a concise and simple way, the origins of these ills in America: prejudice, racism and religious intolerance. In common between these forms of violence, there is the application of a speech tax. The reference that exists in schools and popularly promoted in a first contact with the American people is the arrival of European men. The “big settlers” brought from their lands belief, the Christian religion, the cultures and visions of a limited world, but about to be explored. After the oppression of Indians, which is the focus of study, European hegemony reached Africa, with black slavery. To achieve the proposed objective, were used as bibliographic data, the words of Columbus in his journal of the Discovery to the thoughts of famous contemporary authors such as Stuart Hall and Boaventura de Sousa Santos. There is need that contemporary society, not only in Latin America, reflect on cultural charge brought by the conquerors and who seek autonomy and the preservation of world cultures.

Keywords: Prejudice. Age of Discovery. Cultural Speech. Racism. Christianity. Counter-hegemony.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1.O discurso da superioridade cultural   

1.1 Eurocentrismo e o preconceito

1.2 O discurso da superioridade cultural e a Era dos Descobrimentos      

2.O cristianismo, a Idade Moderna e o poder do discurso      

3.O racismo no poder do discurso          

4.Resposta ao discurso da superioridade cultural: a contra-hegemonia      

CONCLUSÃO          

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS         

INTRODUÇÃO

A Idade Moderna (1453 – 1789) caracterizou-se por inovações tecnológicas, transição do feudalismo para o capitalismo, revoluções (destacam-se a inglesa, a francesa e a americana) e pela expansão marítima, que resultou no descobrimento de novas terras localizadas além do continente europeu. Considerada pelos colonizadores como um “paraíso”, em tais regiões havia a existência de habitantes que andavam nus e de hábitos, aos olhos europeus, no mínimo “estranhos” e “pecaminosos”. O encontro de culturas tão diferentes, os interesses opostos e a dificuldade de comunicação levaram ao inevitável conflito de povos.

O presente trabalho, longe de pretender definir o que significa a cultura e quais são os elementos que a compõem, visa apontar, de forma sintética, como são estabelecidos os parâmetros de superioridade e inferioridade cultural, tendo em vista, principalmente o discurso dos povos colonizadores no período da era das descobertas da América, ponto marcante da Idade Moderna.

Focar-se-à na relação dos homens europeus desbravadores e nos nativos americanos, independentemente de corrente doutrinária e para ser coerente com uma grande proporção do material bibliográfico utilizado, os últimos serão denominados de “índios”.

O objetivo principal é procurar as origens do preconceito na América (vista como um continente único, sem a distinção linguística ou geográfica), um malefício, infelizmente, tão presente na atualidade. A distinção de culturas, de “raças” ou etnias, até mesmo a não-aceitação do convívio social entre classes econômicas distintas, possivelmente originou-se com a chegada europeia nestas terras.

No intuito de alcançar este objetivo, serão utilizados os argumentos de Freud, na obra “O Totem e o Tabu”, o diário de Cristóvão Colombo escrito durante o período das descobertas, a importante visão de cultura de Stuart Hall, entre outros notáveis pensadores e pesquisadores.

Para uma melhor compreensão à respeito do tema, o trabalho recebeu a seguinte divisão: “1. O discurso da superioridade cultural; 1.1 “Eurocentrismo – a plataforma do discurso da superioridade cultural”, neste subitem, apresenta-se a visão europeia hegemônica; 1.2. “O discurso da superioridade cultural e a Era dos Descobrimentos”, é uma continuidade do subitem anterior, com maior foco na Idade Moderna; 2. “O cristianismo, a Idade Moderna e o poder do discurso”, este item comenta sobre a atuação do cristianismo na expansão do domínio europeu; 3. “O racismo no poder do discurso”, neste item se discute que atrelado à superioridade cultural, está a eugenia (pureza da raça); 4. “Resposta ao discurso da superioridade cultural: a contra- hegemonia“, finalmente, discorre-se a possibilidade de autonomia por parte dos colonizados.

1.O discurso da superioridade cultural

1.1 Eurocentrismo e o preconceito

O “eurocentrismo”, discutido em forma teórica nos ambientes acadêmicos da Idade Contemporânea, principalmente após a Revolução Francesa, foi praticado já no século XV (Idade Média) na Era dos Descobrimentos (ainda que tenha iniciado, efetivamente em anos anteriores, se pode determinar o marco na chegada de Colombo na América em 1492) pelos países colonizadores europeus que se lançaram ao mar em busca de riquezas e de novas terras. A influência europeia é analisada por Zanotelli:

No pensamento de Hegel, o maior filósofo alemão do século XIX (1770-1831), aprendemos a olhar a Europa e, especificamente o Império Inglês (com seu capitalismo industrial e com o mercado mundial), a cultura jurídico-política francesa da Revolução de 1789, e a filosofia alemã do século XIX, como centro e culminância da História (Zanotelli, 2014, p. 12)

Acima de tudo, conforme explicam Romaguera; Teixeira e Bragatio (2014, p. 6) o eurocentrismo não se encontra delimitado pelo aspecto geográfico e sim pela acepção política, ou seja, a denominação não especifica apenas os países localizados no continente europeu, mas os impérios colonizadores que atuaram na situação de agentes da supremacia colonial, racial; portadores da civilização e do desenvolvimento.

Ainda que não seja pretensão deste trabalho definir o que significa “cultura”, vale citar a classificação feita por Stuart Hall (1997) de cinco etapas de uma narrativa da cultura nacional: narrativa da nação (modo de ser contada na literatura, mídia e cultura popular); ênfase nas origens e tradições; invenção da tradição; mito fundacional e o povo primordial.

Além disso, o referido autor elenca os constituintes da cultura nacional: as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança. Sabiamente, Hall ressalta a importância da identidade individual nesta cultura nacional:

A condição de homem [sic] exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar. (HALL, 1997, p. 29)

Raquel Sparemberger (2011, p. 147) afirma, com propriedade “(…) que não há culturas puras e não se pode classificar culturas como legítimas ou ilegítimas, inferiores ou superiores”.

A autora comenta, ainda, que na época de exploração da mão de obra indígena, a legislação alternava entre o reconhecimento deste povo (para assim fazer valer a assimilação) e a sua inferioridade, tendo assim a justificativa para a escravidão.

Aceitar a completa autodeterminação de povos ou tribos diferente daquelas pertencentes ao desbravador tornou-se um desafio no qual até as mentes supostamente “privilegiadas” ou “intelectuais” sucumbem, assim observado por Zanotelli:

Francisco de Vitória (1492-1542), como filósofo e teólogo da Coroa Espanhola, embora fundamentasse o direito internacional dos tempos modernos na autodeterminação dos povos (e especificamente dos povos indígenas frente à conquista), embora falasse do direito de propriedade dos índios como direito natural, embora reconhecesse 7 títulos ilegítimos para a dominação dos índios e a usurpação de suas terras, na verdade justificou o direito da Coroa de invadir, fazer guerra até o extermínio contra os índios (ZANOTELLI, 2014, p. 164)

Pergunta-se, afinal, qual o impeditivo que impossibilita a aceitação de autodeterminação dos povos e a existência de diferentes culturas? Rose (1972) tem a resposta: “preconceitos”.   E estes conjuntos de atitudes que favorecem, provocam ou justificam medidas de discriminação têm por base a ignorância e apresenta os seguintes aspectos: “Ora são noções falsas referentes às características físicas, tradições culturais ou crenças de um povo, ora verdadeiros mitos que fazem intervir faculdades sobre- humanas ou fraquezas pueris” (ROSE, 1972, p. 167).

A ignorância, aliada aos interesses materiais, potencializou o desejo do europeu de subjugar aqueles “selvagens” que andavam sem vestimentas, com armas rudimentares e em moradias precárias. O fogo que sai da arma é mais danoso que a ponta de uma flecha; uma bota impede o sangramento do pé; tijolos protegem mais do que troncos de árvores. Além disso, esses “homens-animais” facilmente se encantavam com utensílios de cozinha e ofereciam, em troca, “montanhas” de ouro.

Logo, não seria errôneo interpretar que os índios também apresentaram preconceitos nestes encontros com o homem branco, conforme declara Todorov:

Em vez de perceberem o fato como um encontro puramente humano apesar de inédito – a chegada de homens ávidos de ouro e de poder -, os índios integram- no numa rede de relações naturais, sociais e sobrenaturais, onde o acontecimento perde sua singularidade; e de certo modo domesticado, absorvido numa ordem de crenças preexistente. (TODOROV, 1999, p. 67)

No entanto, o mesmo autor sugere que não há possibilidade de se saber, concretamente, o que pensavam os originários das terras:

Será que podemos adivinhar, através das anotações de Colombo, como os índios percebem os espanhóis? Dificilmente. Aqui também, toda a informação é viciada, porque Colombo decidiu tudo de antemão: e já que o tom, durante a primeira viagem, e de admiração, os índios também devem ser admirativos. (TODOROV, 1999, p. 39)

O homem europeu, obviamente, passou a se sentir uma criatura poderosa, no tocante à admiração que causavam aos índios. Seja pela passividade indígena, que oferecia objetos valorosos e a hospitalidade, seja pela agressividade indígena que era facilmente reprimida. Colombo (2010, p. 47) expressa de forma clara este sentimento de superioridade: “Uns nos traziam água; outros, coisas de comer, outros ainda, quando via que ninguém pretendia se aproximar da terra, lançavam-se ao mar e vinham nadando, e entendíamos que nos perguntavam se tínhamos vindo do céu”

A ignorância, anteriormente comentada, fez com que os desbravadores sentissem asco ao presenciar ritos de canibalismo de tribos. Quando não se há reconhecimento da identidade de outro e se tem unicamente a visão dos hábitos de sua nação, aquilo que é diferente torna-se excêntrico, execrável, impossível de aceitação.

Para os canibais, por exemplo, o ato de mutilar as partes do inimigo e comê-las não representava a busca por vingança ou satisfação do ódio. O ato tem força transcendental, segundo Sigmund Freud (2014, p. 134), o famoso “pai da psicanálise”: “O canibalismo dos primitivos deriva sua motivação mais sublime de maneira semelhante. Quando alguém assimila partes do corpo de uma pessoa pelo ato de comê- las, também se apropria das qualidades que pertenceram a essa pessoa”

Freud (2014, p. 163) propõe que as tribos não eram desordeiras ou desregradas, elas obedecem àquilo que ele nomeou de tabu: tudo que for portador de qualidade misteriosa (pessoas, objetos, locais) e em suas palavras “algo que é ao mesmo tempo sagrado, elevando-se acima do habitual, e também perigoso, impuro e sinistro” (FREUD,2014, p. 63). Portanto, em um ritual de sacrifício, são seguidas determinações, procedimentos que impedem o executor de macular a pureza possivelmente presente.

O psicanalista, em relação às restrições do tabu, informa que elas não têm caráter moral ou religioso:

Elas não são atribuídas ao mandamento de um deus, mas no fundo são evidentes por si mesmas; o que as distingue das proibições morais é o fato de não estarem incluídas num sistema que declare de um modo bem geral a necessidade de renúncias e que também fundamente essa necessidade. As proibições do tabu carecem de qualquer fundamentação; são de origem desconhecida; incompreensíveis para nós, parecem naturais para aqueles que se encontram sob seu domínio (FREUD, 2014, pp. 58-59)

Para o europeu moderno, são incompreensíveis certos rituais praticados pelas tribos. Pretendem, pois, exercer o controle e, pelas suas convicções e preceitos religiosos, intervir na cultura de outro e propagar a missão civilizatória da qual foram incumbidos.

1.2 O discurso da superioridade cultural e a Era dos Descobrimentos

É válido que seja retomada a discussão a respeito dos preconceitos. Anteriormente, este trabalho discorreu acerca do “eurocentrismo”, como forma de “visão do mundo hegemônico” do conquistador. É de conhecimento público que o primeiro contato entre os europeus e os habitantes primitivos da América deu-se na Era dos Descobrimentos, na Idade Moderna.

A colonização dos países das Américas, logo em sua origem, trouxe a visão daquela superioridade apresentada pelos exploradores do “Novo Mundo”. A cobiça fez com que o Império Europeu não somente retirasse as riquezas encontradas nas terras descobertas, mas também,com a finalidade de expansão de domínios, fincasse raízes nas colônias. Na “bagagem europeia”, o preconceito assumiu papel primordial:

O imperialismo – especialmente tal como é praticado pelos europeus em relação aos não-europeus – está muitas vezes mesclado com preconceitos. Mesmo quando os preconceitos são relativamente pouco desenvolvidos na metrópole, os administradores coloniais, os comerciantes, os colonos que vivem nos países insuficientemente desenvolvidos acabam por manifestar nas suas relações com as populações indígenas a insensibilidade e a atitude de superioridade racial que os ajudarão nas suas empresas (ROSE, 1972, p. 163)

O Estado Moderno, constituído pelo mercantilismo e o absolutismo, considerava as outras formações de agrupamentos sociais como algo rudimentar, primitivo, segundo afirma Santos:

De Juan de Sepulveda, no seu debate com Bartolomeu de las Casas, ao isabelino Humphrey Gilbert, o carrasco da Irlanda, o outro não é um verdadeiro indivíduo porque o seu comportamento se desvia abissalmente das normas da fé e do mercado. Tampouco é detentor de subjetividade estatal, pois que não conhece a ideia do Estado nem a de lei e vive segundo formas comunitárias, pejorativamente designadas por bandos, tribos, hordas, que não se coadunam, nem com a subjetividade estatal, nem com a subjetividade individual. (SANTOS, 1993, p. 35)

Todorov reforça este comentário no momento em que observa a perspectiva de Cristóvão Colombo em relação aos índios habitantes da América:

Fisicamente nus, os índios também são, na opinião de Colombo, desprovidos de qualquer propriedade cultural: caracterizam-se, de certo modo, pela ausência de costumes, ritos e religião (o que tem uma certa lógica, já que, para um homem como Colombo, os seres humanos passam a vestir-se apos a expulsão do paraíso, e esta situa-se na origem de sua identidade cultural. (TODOROV, 1999, p. 34)

Esta opinião, apresentada por Colombo, e sendo levada em consideração a já mencionada classificação de Stuart Hall (1997) sobre a cultura nacional, demonstra o quanto a ignorância é prejudicial e fomentadora do preconceito. Novamente, se mostram relevantes as palavras de Rose (1972, p. 179): “Quando um grupo alimenta preconceitos para com um outro grupo, geralmente tem repugnância em comportar-se com este, segundo as regras e os princípios geralmente admitidos”

Há, de fato, uma evolução trazida com a civilização? O homem das cidades modernas distanciou-se completamente do homem primitivo? Freud, ao trazer o tema do tabu à tona, se posiciona, em parte, negativamente:

(…) não se encontra assim tão longe de nós como queríamos acreditar de início, que as proibições do costume e da moral a que nós próprios obedecemos possam ter em sua essência um parentesco com esse tabu primitivo e que a explicação do tabu possa lançar uma luz sobre a origem obscura de nosso próprio ‘imperativo categórico (FREUD, 2014, p. 63-64)

Diante desta exposição, verifica-se que a comparação que resulta em um posicionamento de superioridade, torna-se ilusório, visto que ainda que se tenha um desenvolvimento tecnológico, jurídico ou educacional mais elaborado, existem certas interioridades humanas que, em sua essência não se modificam, só se revestem em formas diferenciadas. Citam-se, em exemplificação, a necessidade de se creer em algo transcendental e os controles sociais.

2. O cristianismo, a Idade Moderna e o poder do discurso

A declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1789, final da Idade Moderna, traz em seu preâmbulo a veneração aos “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”. A sustentação dos direitos humanos, calcada no cristianismo, reforça o olhar europeu ocidental, profundamente criticado por Corrêa:

É preciso lembrar, todavia, que, ao dar roupagem nova ao estoicismo grego atribuindo à pessoa um valor absoluto e destacando a vida como sagrada, essa emergência religiosa da subjetividade jurídica provocada pelo cristianismo não teve alcance político, contribuindo fortemente para que a posterior afirmação dos direitos humanos assumisse um caráter individualista e subjetivista, influenciando decisivamente a tradição ocidental-cristã. (CORREA, 2010, p. 41)

Tanto na Idade Moderna quanto na Contemporânea, o cristianismo exerceu forte influência nos costumes, pensamentos e movimentos sociais. A ideia de universalização religiosa aos seres humanos, embasada nas mensagens transmitidas por Jesus Cristo no Novo Testamento, possibilitou que os detentores do poder, tanto do temporal (bispos, papas) quanto do monárquico (conselhos, príncipes, reis, lordes), quando aliado àquele, interpretassem a seu bel-prazer, a finalidade da doutrina cristã.

O discurso cristão se assemelha, no ponto de vista de Todorov, ao pagão:

A religião, qualquer que seja seu conteúdo, é um discurso transmitido pela tradição, e que importa enquanto garantia de uma identidade cultural. A religião cristã não e em si mais racional do que o “paganismo” indígena. Mas seria ilusório ver nos sacerdotes astecas antropólogos do religioso. Saber que a religião não passa de um discurso tradicional não faz com que eles se distanciem dela nem um pouco; muito pelo contrario, e exatamente por essa razão que eles não podem colocá-la em questão. (TODOROV, 1999, p. 75)

O cristianismo, em sua teoria, reserva o reino dos céus a todos os filhos de Deus. Na prática, representou a bandeira de centenas de anos de exploração socioeconômica, assimilação, inquisição, etc. Serviu, consequentemente, de ferramenta para expansão e domínio de países avançados tecnologicamente sob povos tidos “inferiores”.

Em seu diário, Cristóvão Colombo expressa o pensamento do almirante de sua tripulação acerca da missão cristã na evangelização dos índios. Tal missão deveria ser levada ao extremo, no caso de resistência por parte dos evangelizados:

Tenho certeza, sereníssimas Majestades – diz o almirante – que, sabendo a língua e orientados com boa disposição por pessoas devotas e religiosas, logo todos se converteriam em cristãos; e assim confio em Nosso Senhor que Vossas Majestades se determinarão a isso com muita diligência para trazer para a Igreja tão grandes povos, e os converterão, assim como já destroçaram aqueles que se recusaram a professar a fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo (COLOMBO, 2010, p. 62)

À forma em que os exploradores se utilizam do cristianismo para alcançar os interesses econômicos do Estado Moderno, tanto como meio (acúmulo de riqueza) ou como fim (expansão religiosa), Zanotelli (2014, p. 197) denomina de “Estado da Cristandade”: “A imposição da cultura européia fez-se sob o signo de civilizar e evangelizar; evangelizar que, em tudo e sempre, era apenas civilizar, impondo o Estado de Cristandade como serviço civilizatório e evangelizador”. Todorov corrobora com este pensamento:

(…) o Deus dos espanhóis é um ajudante e não um Senhor, um ser mais usado do que usufruído (para falar como os teólogos) (…) o objetivo da conquista e expandir a religião cristã; na pratica, o discurso religioso é um dos meios que garantem o sucesso da conquista: fim e meios trocaram de lugar. (TODOROV, 1999, p. 96)

Hernán Cortéz, famoso conquistador espanhol, católico, responsável pela destruição do Império Asteca (localizava-se no atual México), horrorizado por um relato de espanhol que presenciou um ato canibal, ordenou que o índio responsável pela ação, recebesse a punição de ser queimado vivo perante o chefe da tribo. Todorov (1999, p. 154) simplesmente não entende a o sentido de aplicar uma pena cruel, principalmente vinda de um cristão: “Os cristãos ficaram revoltados com os casos de canibalismo (cf. fig. 12). A introdução do cristianismo leva a sua extinção. Mas, para conseguir isso, queimam homens vivos!”.

3. O racismo no poder do discurso

Os habitantes destas terras, considerados selvagens aos olhos dos descobridores se enquadrariam entre os animais e coisas, assim chamados de “meio animais”, nomenclatura utilizada por Zaffaroni (2012): têm a forma de homens, contudo, atitudes supostamente de animais.

A impossibilidade de aceitar as diferenças culturais ou mesmo negá-las incorre, segundo Klineberg (1972, p. 230), em dois erros capitais: atribuição à raça ou inferiorização da cultura alheia. Os grupos sociais, geralmente, em vez de diálogo, ainda que apresentem línguas diferentes, recorrem ao conflito, ao não reconhecimento da identidade cultural do outro. Todorov explica a imprescindibilidade de reconhecer a outra cultura:

Ora, e falando ao outro (não dado-lhe ordens, mas dialogando com ele), e somente então, que reconheço nele uma qualidade de sujeito, comparável ao que eu mesmo sou. Agora, portanto, e possível precisar as palavras que formam meu titulo: se a compreensão não for acompanhada de um reconhecimento pleno do outro como sujeito, então essa compreensão corre o risco de ser utilizada com vistas à exploração, ao ‘tomar’; o saber será subordinado ao poder”. (TODOROV, 1999, p. 115)

O ideal de que há uma cultura prevalente, típica dos colonizadores, foi também aplicada centenas de anos depois, na ideologia ariana de Adolf Hitler (1889-1945), em que elementos fora do enquadramento da perfeição alemã eram impuros. Pode-se traçar este paralelo alicerçado em uma das características predominantes no já denominado “Estado da Cristandade” mencionado por Zanotelli. Seguem as palavras do autor:

A eugenia (a purificação das raças e dos povos) que o próprio mercado pratica na História onde a fome, a guerra e as endemias eliminam os mais fracos, nada mais é que do que o curso natural das leis da natureza criadas por Deus. A sobrevivência do mais forte e do mais apto é uma lei natural e uma lei da história, dirá o darwinismo social (ZANOTELLI, 2014, p. 124).

Stuart Hall (1997) afirma que a raça não é uma categoria biológica (devidos aos estudos científicos se extinguiu esta possibilidade), mas discursiva. Desta forma, assim como   discurso   jurídico   e   o   religioso,   instrumentaliza   aqueles   que   buscam   a superioridade em relação ao outro. Jahoda explica em termos psicológicos:

O preconceito racial, no sentido mais estrito, é uma atitude a respeito dos ‘fora- do-grupo’ na qual o indivíduo se recusa a admitir os fatos, não simplesmente para evitar um esforço intelectual excessivo, mas porque esta atitude preenche nele uma função irracional precisa (JAHODA, 1972, p. 240)

Neste sentido, é de suma importância, para o pensamento atual, o combate ao racismo e ao etnocentrismo, pois ressalta Silva (2015) que a superioridade dos povos e das raças não existe, o que existe são diferentes condições e oportunidades de vida.

4. Resposta ao discurso da superioridade cultural: a contra-hegemonia

Ainda que o foco deste trabalho seja o contato europeu-índio seria, no mínimo, simplório se não tratasse de outro grupo social oprimido da Idade Moderna à atual: os “negros” ou afro-descendentes. Retirados de suas famílias, vendidos como mercadorias, embarcados em navegações precárias, chegaram a uma terra desconhecida para unicamente servirem à exploração da metrópole.

Em condições degradantes, coagidos a trabalharem sem um mínimo de condições, tratados como “homens-animais”, assumiram o papel dos índios, que não serviram mais ao propósito da colonização.

Aos países formados por descendentes dos habitantes nativos e, posteriormente, por escravos trazidos do continente africano, urge a necessidade de resposta pelos séculos de exploração e opressão.

Na época do descobrimento e da colonização, Zanotelli resume o efeito da negação da identidade cultural dos índios:

O homem das Américas, assim como o da África e Ásia, estará proibido de ser. Não se pode ser índio ou negro a não ser enquanto negação, enquanto coisa, objeto, escravo, encomendado, miteiro do senhor europeu, da metrópole européia (ZANOTELLI, 2015, p. 192)

Corrêa aponta a utilização do discurso como ferramenta de determinação da superioridade, neste caso, aplicado ao caráter universalista dos direitos humanos após a Revolução Francesa (1789):

A este propósito deve-se salientar que o discurso jurídico é um suporte crucial da linguagem abstrata que permite descontextualizar e consequentemente negar a subjetividade do outro no mesmo processo em que a designa e a avalia à luz de critérios pretensamente universais (CORREA, 2010, p. 35).

Apresenta-se, nesta citação, uma importante descrição da posição do colonizador ou dos Estados hegemônicos sobre os colonizados ou Estados periféricos. Nesses termos, o que não é conhecido como organização estatal define-se por inferior ou apto a ser explorado. O discurso, como afirmado acima pelo autor, é algo “abstrato”, construído pelo pensamento do emissor, na base de suas crenças ede seus interesses, enquanto que o receptor acaba envolvido naquele contexto, tanto no papel de vítima quanto, em algumas vezes, no desejo de assumir o papel do colonizador.

A hegemonia cultural do homem branco é uma agressão às minorias étnicas, pois visa impor seus costumes, ideias, línguas, tradições, sinais, símbolos.   Ao movimento contra-hegemônico se dará o nome de descolonialismo (ROMAGUERA; TEIXEIRA; BRAGATIO, 2014). Este movimento latino-americano consiste no seguinte:

(…) busca o pluralismo na produção do saber, o que implica na ruptura com a construção eurocêntrica do conhecimento, bem como identificar às contradições entre a modernidade e as práticas espúrias do colonialismo (ROMAGUERA; TEIXEIRA; BRAGATIO, 2014, p. 13)

O descolonialismo, além de colocar em xeque o eurocentrismo e seus padrões, evidencia a exclusão do colonizado da concepção dos Direitos Humanos, em que consiste a não inclusão do subalterno como o sujeito racional e livre proclamado pelo discurso humanista da modernidade.

A questão fundamental é que se discuta, se conteste o que foi imposto pelo imperialismo hegemônico e que se evite a submissão ao modelo do primeiro mundo.

Todavia, para que isso seja feito, há a necessidade de um conflito interno, de uma não aceitação de pensamentos e posturas ditadas.

Os valores adotados foram construídos em outra época, em outro estilo de sociedade e momento e não são, necessariamente, aplicáveis em um ambiente colonizado. O que se prega é a possibilidade de enxergar o mundo com seus próprios olhos, isto é, que se reivindique sua própria história, com autonomia.

CONCLUSÃO

Em virtude dos fatos mencionados neste trabalho, é importante destacar alguns aspectos estudados.Primeiramente, não se adentrou na pesquisa das diferenças culturais entre as tribos existentes na América da Idade Moderna. Possivelmente, poderiam ter entrado em contato, seja para selar alianças ou declarar guerras. Existindo a relação entre os homens de lugares diferentes, não é descartado que torna-se inevitável   uma   comparação   entre   ambos,   com   a   consequente   impressão   de superioridade ou inferioridade. No entanto, o que se pretendeu foi analisar o pensamento do homem branco europeu sobre o nativo, considerado aqui em sua etnia ou raça.

Outro aspecto que merece destaque é a não utilização de classificação da América. Sabe-se que do ponto de vista linguístico, há divisão entre anglo-saxônico e latino e, do ponto de vista geográfico, a América do Norte, Central e do Sul. Assim como no primeiro aspecto, a intenção foi tratar a América de maneira única, uma terra nova a ser desbravada, do ponto de vista do continente europeu.

Um terceiro aspecto importante a ser salientado é o tema dos escravos africanos. Reitera-se o foco da visão europeia em relação aos índios. Afinal, é o início, em terras americanas, de uma hegemonia que perdura até o século XXI. Há, no registro das anotações de Hernan Cortéz, de Cristóvão Colombo, Pero Vaz de Caminha, dentre outros, a possibilidade de se analisar o discurso da superioridade cultural. A chegada dos afro-descentes, infelizmente, foi uma continuidade tenebrosa de tal ação.

Isto posto, são verificadas semelhanças entre a cultura europeia e a indígena. Freud (2014) indica o paralelismo do tabu dos primitivos e as proibições do homem moderno, já que em ambos há um impedimento de se cometer certas atitudes, seja por ser impura, seja pelo repúdio social. Todorov (1999), por sua vez, remete que a violência é aplicada em ambos os lados (sacrifício e inquisição), com motivações diferentes, no entanto, o fim é o mesmo: assassinato de um ser humano.

O descolonialismo é um processo tardio, no entanto, crucial para que os países de fato abandonem a colonização. O processo de independência representou uma ruptura política, em certos momentos simbólica, em outros, de fato. O descolonialismo, por sua vez, é um rompimento ao modelo cultural imposto.

A resolução ao conflito cultural é o diálogo. Quando se fala da contra-hegemonia como resposta ao discurso europeu, não é veneração a uma resistência agressiva, não se trata de vingança pelos abusos sofridos no decorrer dos séculos. Na realidade, consiste em uma revisão histórica, intelectual e social que envolve aquilo que forma a base cultural da América. Tem por significado enxergar a si próprio não mais como inferiorizado e, finalmente, abandonar o papel de vitimizado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Artigo apresentado à disciplina Direito, Diversidade e Inclusão Social do Programa de Pós-graduação em Direito do Curso de Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – PPGD/FURG

[2] Discente do Programa de Pós-graduação em Direito do Curso de Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – PPGD/FURG

[3] Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e professora do Programa de Pós-graduação em Direito do Curso de Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – PPGD/FURG;

Como citar e referenciar este artigo:
GRISCHKE, Lucas Lopes; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes. Um breve estudo acerca da possível origem dos preconceitos na América: Análise sobre o discurso da superioridade cultural europeia na idade moderna. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/um-breve-estudo-acerca-da-possivel-origem-dos-preconceitos-na-america-analise-sobre-o-discurso-da-superioridade-cultural-europeia-na-idade-moderna/ Acesso em: 29 mar. 2024