Sociedade

Direitos culturais no Brasil e a proposta da Política Nacional de Cultura Viva sob a égide constitucional

Camilla Garcêz Ribeiro[1]

Resumo: A história do homem confunde-se com a história da sua sociedade, dos seus costumes, credos, saberes e pensamentos, numa relação visceral com o que culturalmente o influenciou. A cultura de uma sociedade forma o seu Direito, ao mesmo tempo este é o instrumento hábil a concretizá-la como um direito fundamental e a tutelá-la como exercício da cidadania. A Política Nacional de Cultura Viva – surgida inicialmente como um programa e depois pensada como uma política pública permanente e referência no Brasil – preocupou-se em dar visibilidade aos agentes culturais populares, bem como em fortalecê-los por meio da formação de uma rede integrada, reconhecida e certificada pelo Ministério da Cultura e aberta para receber e empoderar, cada vez mais, a atividade de mobilizadores culturais, fortalecendo a cidadania cultural. Assim os Direitos Culturais ganharam maior destaque, através do Cultura Viva, quando o Ministério da Cultura preocupou-se em criar um sistema de Pontos de Cultura, que apoia, valoriza e dinamiza as culturas tradicionais e comunitárias, promovendo a participação democrática na cultura e fornecendo os meios necessários à manutenção da cidadania cultural.

Palavras-chave: Cultura. Direitos Culturais. Cidadania Cultural. Política de Cultura Viva. Pontos de Cultura.

Introdução:

Podem ser definidos como direitos culturais todos aqueles que possuem conteúdo de valorização e proteção do patrimônio cultural, de produção, promoção, acesso, difusão e democratização dos bens culturais, tratando, também, do reconhecimento do valor da diversidade cultural. Em razão da ligação direta desses direitos com o exercício da cidadania e com a democracia, necessariamente há de se falar em uma política estatal para desenvolver os meios necessários visando à cultura.

A origem do direito à cultura remete ao surgimento do Estado Social, que trouxe o “chamamento dos poderes públicos a realização de novas funções no domínio da vida econômica, social e cultural” (SILVA, 2007, p. 143). Assim, estabeleceu-se a cultura como objeto de realizações pelo Estado através de políticas públicas, demonstrando a típica função prestacional do mesmo.

Assim, é essencial a compreensão constitucional acerca dos direitos culturais, uma vez que a interpretação através dos princípios da Carta Maior é a forma coerente do processo de acepção cognitiva dos mesmos, propiciando a promoção da sua garantia. No texto da CF/1988, a Cultura é matéria de gestão mútua, entre sociedade civil e Estado, sendo item relevante no exercício da cidadania, que é um fundamento da República Federativa do Brasil e, por isto, inerente a toda e qualquer atividade estatal – cultura, meio ambiente, educação etc. (CUNHA FILHO, 2010).

Nesse contexto, através da Portaria 156 do MinC (Ministério da Cultura), o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, inicialmente chamado assim, nasce em 2004 como ferramenta para articular grupos da sociedade, proporcionando o acesso destes a recursos públicos, bem como fortalecendo o reconhecimento e desenvolvimento de circuitos culturais com bases comunitárias e associativas [SILVA e ARAÚJO (Org.), IPEA, 2010].

Tornando-se Política Nacional de Cultura Viva através da lei 13.018/2014, atua diretamente no sentido de possibilitar o combate a barreiras ao exercício dos direitos culturais, como por exemplo a carência de instrumentos, de capital para impulsionar atividades de produção da cultura e de ferramentas de circulação da expressão da cultura local.

1. Cultura e os Direitos Culturais

A análise dos Direitos Culturais é de fundamental relevância pois são os mesmos um caminho para o reconhecimento do outro enquanto ser de valor social, com identidade e qualidades dignas de respeito, representando uma faceta da dignidade humana.

A matéria cultural tem tamanha relevância que, além de encontrar sede dentro do espaço dos Direitos Fundamentais em órbita constitucional, deve ser aplicada com atenção ao seu peculiar aspecto de matéria transversal, sendo, inclusive de complexa análise e amplo conceito[2], como fora defendido por Vasco Pereira da Silva em “A Cultura a que tenho Direito – Direitos Fundamentais e Cultura”. Dessa forma, é essencial que tal aplicação se dê através de uma complementaridade que deve ser estabelecida entre uma abordagem cultural e a análise jurídica em si (SILVA, 2007, p. 8).

O exercício dos Direitos Culturais atua como motor fundamental para a coesão social, direitos esses que em situação de instabilidade econômica, política e/ou social em uma nação, agem como elo de conexão coletiva. Ainda pouco destacados quando se debate sobre Direitos Humanos em geral, os direitos decorrentes da cultura foram valorizados pela Constituição Federal de 1988 como um fator tão relevante para o desenvolvimento nacional e cidadão, que receberam seção individualizada na carta magna, na qual há destaque para a participação da comunidade conjuntamente com o Estado para efetivação dos mesmos.

2. Direitos Culturais no Brasil

No Brasil, apesar de não ser atualmente uma pauta enfática em debates legislativos ou doutrinários como outras matérias são, os Direitos Culturais receberam seção específica (Seção II) no capítulo III do Título “Da Ordem social” da CF/1988, demonstrando a importância conferida aos mesmos pelo Poder Constituinte.

Dentro da abordagem constitucional brasileira, os Direitos Culturais são resultado de uma gestão conjunta, que deverá ser exercida pelo Estado, como figura reguladora da sociedade e responsável por garantir aos indivíduos o pleno respeito e exercício aos direitos que lhe são fundamentais, e pela sociedade, composta por todos aqueles que se encontram sob a tutela desse Estado, mas que devem participar ativamente do processo criativo e administrativo da cultura por possuírem relação visceral com a mesma, não sendo possível dissociar o ser das influências culturais que sofre – e que produz – desde o seu nascimento.

Nessa perspectiva, foi criado o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, em 2004, com o objetivo de promover o acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural, assim como de potencializar energias sociais e culturais, visando a construção de novos valores de cooperação e solidariedade (vide artigo 1º da Portaria nº 156, de 06 de julho de 2004 do Ministério da Cultura). Posteriormente adquirindo nova nomenclatura, sendo agora chamado de Programa Arte, Educação e Cidadania – Cultura Viva, este foi transformado em Política Nacional de Cultura com a Lei 13.018/2014

3. Política Nacional de Cultura Viva

A Política Nacional de Cultura Viva foi criada em conformidade com o caput do art. 215 da Constituição Federal, tendo como base a parceria da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com a sociedade civil no campo da cultura, com o objetivo de ampliar o acesso da população brasileira às condições de exercício dos direitos culturais (texto extraído do artigo 1º da Lei 13.018/2014).

Em observância à lei que transforma o Cultura Viva em uma política cultural nacional, podemos encontrar na redação do artigo 3º o seguinte texto:

Art. 3o  A Política Nacional de Cultura Viva tem como beneficiária a sociedade e prioritariamente os povos, grupos, comunidades e populações em situação de vulnerabilidade social e com reduzido acesso aos meios de produção, registro, fruição e difusão cultural, que requeiram maior reconhecimento de seus direitos humanos, sociais e culturais ou no caso em que estiver caracterizada ameaça a sua identidade cultural. 

Ainda sobre o Cultura Viva, agora com base na avaliação publicada pelo IPEA, coordenada por Frederico A. Barbosa da Silva e Herton Ellery Araújo, em 2010:

O programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva nasceu com a vocação de se voltar aos jovens, proporcionando-lhes a possibilidade de exercitar os direitos culturais e ter, nos espaços públicos, a experiência do convívio e da socialização política, cultural e criativa.

Em análise às duas últimas citações, nota-se a atribuição de prioridades na política do Cultura Viva, que não exclui qualquer membro ou grupo da sociedade, mas que realiza determinados filtros para escolher seus principais alvos. Assim, aqueles que se encontram em certo estado de vulnerabilidade cultural/social terão atendimento prioritário pelo Cultura Viva, e maior ainda será o foco, os esforços e recursos dispendidos tratando-se do público juvenil que estiver dentro dessa parcela populacional mais vulnerável.

O Programa Cultura Viva atua diretamente no sentido de possibilitar o combate a barreiras ao exercício dos direitos culturais, como por exemplo a carência de instrumentos, de capital para impulsionar atividades de produção da cultura e de ferramentas de circulação da expressão da cultura local. Na realização desta finalidade, o Cultura Viva contribui para questões relativas ao isolamento de comunidades quanto aos novos meios tecnológicos, permitindo, também, trocas de produção e educação cultural [SILVA e ARAÚJO (Org.), IPEA, 2010].

Através da conceituação ampla da cultura defendida atualmente pelo MinC, atribuindo essencial relevância ao aspecto antropológico da mesma, percebe-se que os direitos culturais são resultado da dimensão simbólica da existência social brasileira. A cultura diz respeito ao processo criativo da sociedade, formando um conjunto dinâmico com simbologia significativa para aqueles que fazem parte do nosso povo (BOTELHO, 2007).

Diante disto, a maior estratégia utilizada pelo Cultura Viva é a disposição da cultura nacional em uma rede integrada, formada por Pontos e Pontões de Cultura, que tem suas atividades direcionadas à produção e articulação de atividades culturais. Essa distribuição interligada de pontos dinâmicos que se comunicam e que trocam interações diversas faz do Cultura Viva uma política democrática que leva a população ao status de gestora cultural, uma vez que é a responsável pela criação da atividade cultural estabelecida em cada ponto e por sua manutenção, cabendo ao Estado o provimento de recursos e auxílios aptos a viabilizar esse exercício.

Gerando interação e ativa participação da sociedade, os Pontos e Pontões de Cultura, principais instrumentos da política aqui tratada, geram fruição, acesso, registros e insumos para a produção cultural. Contudo, como funcionam?

Os Pontos de Cultura são:

grupos, coletivos e entidades de natureza ou finalidade cultural que desenvolvem e articulam atividades culturais em suas comunidades e em redes, reconhecidos e certificados pelo Ministério da Cultura por meio dos instrumentos da Política Nacional de Cultura Viva.[3]

Os Pontos de Cultura são gestores culturais populares que já promovem cultura em seu cotidiano e que, através de certificação pelo Ministério da Cultura, recebendo o título de Ponto, interliga-se à rede Cultura Viva. Esse elo com outros Pontos propiciado pela criação da Rede possibilita comunicação, trocas e interações diversas entre os grupos, coletivos e entidades, numa espécie de intercâmbio contínuo nacional cultural.

O Pontão de Cultura é:

uma entidade cultural, ou instituição pública de ensino, que articula um conjunto de outros pontos ou iniciativas culturais, desenvolvendo ações de mobilização, formação, mediação e articulação de uma determinada rede de pontos de cultura e demais iniciativas culturais, seja em âmbito territorial ou em um recorte temático/identitário.[4]

Desta feita, além da administração descentralizada da cultura nacional, pode haver a aproximação desses grupos por eixo temático ou territorial, vinculados por um Pontão que tem o papel de mobilizador do seu eixo para promover ações conjuntas ou mesmo capacitar pessoal com a finalidade de manutenção da gestão cultural.

A formação de uma rede com promotores populares da cultura viabiliza o fomento ao exercício da cidadania cultural, uma vez que os próprios indivíduos da sociedade constroem e gerem a cultura local e, através do Cultura Viva, recebem apoio e incentivos estatais para tanto. A comunidade torna-se a principal protagonista da sua cultura, esta que, sendo uma construção histórica e simbólica, é fruto dos anseios sociais.

Não se pode desconsiderar as dificuldades que o Cultura Viva encontra na sua implementação, sendo a principal delas a burocracia. Esta não deixa de se mostrar como uma necessidade, na atual configuração do sistema estatal, para que sejam dispendidos recursos federais, estaduais ou municipais em determinada atividade de cultura. Todavia, em casos concretos, podem ensejar lesão ao direito cultural dos que deveriam ser beneficiados.

A burocracia pode ser vista como obstáculo, segundo o idealizador do Cultura Viva, e ex-secretário da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura, porque não há como bitolar o Ponto de Cultura, ou colocá-lo numa fôrma. Os Pontos não se reduzem à dimensão de cultura e inclusão social, é mais do que isso: é um conceito que não só reflete a cidadania, mas que também diz respeito à autonomia e ao protagonismo sociocultural (TURINO, 2010).

Conclusão:

O exercício da cidadania cultural se dá, principalmente, através da participação popular quanto a administração e as decisões políticas sobre a cultura. Apesar de ser um tema timidamente debatido no mundo jurídico, os Direitos Culturais têm caráter de direitos humanos e, assim, foram investidos de fundamentalidade na Constituição Brasileira, esta que propõe em seu texto uma gestão compartilhada da cultura.

Em consonância a essa proposta, o Cultura Viva nasceu para ser um instrumento,sendo a primeira política nacional (ganhando esse caráter com o advento da Lei 13.018/2014) criada após a institucionalização do Sistema Nacional de Cultura e do Plano Nacional de Cultura. Sua distribuição numa rede integrada de Pontos e Pontões de Cultura proporciona uma ampla troca de informações e interações diversas entre os diferentes grupos, coletivos e entidades culturais integrantes da rede.

Assim, em perfeita consonância à proposta constitucional de uma coordenação conjunta da cultura, através de um Sistema Nacional de Cultura organizado em regime de colaboração por todos os entes da federação e a sociedade civil, a Política Nacional de Cultura Viva ganha cada vez mais visibilidade e força no Brasil, fomentando a auxiliando a comunidade na produção cultural do país.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2012.

BOTELHO, Isaura. A Política Cultural e o Plano das Ideias. In: RUBIM. Antonio Albino Canelas (Org.). Políticas Culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. São Paulo: Itaú Cultural. n.11. jan./abr. 2011.

SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007.

SILVA, Frederico A. Barbosa da; ARAÚJO, Herton Ellery (Org.). Cultura Viva: avaliação do programa Arte, Educação e Cidadania. Brasília: IPEA. 2010.

SILVA, Frederico A. Barbosa da; CALABRE. Lia (Org.). Pontos de Cultura: olhares sobre o Programa Cultura Viva. Brasília: IPEA, 2011.

SILVA, Frederico A. Barbosa da. Política Cultural no Brasil, 2002-2006: acompanhamento e análise. Brasilia: Ministerio da Cultura; IPEA. 2007

TURINO, Célio. PONTO DE CULTURA: O Brasil de baixo para cima. 2ª ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.

VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.



[1] Aluna do décimo período do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão

[2] VARELLA, Guilherme.  Plano Nacional de Cultura – direitos e políticas culturais no Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2014. P. 13.

[3] MINISTÉRIO DA CULTURA (MinC). O que é um ponto de cultura?. Disponível em <http://culturaviva.gov.br/perguntas-frequentes/>. Acesso em: 23 abril 2018.

[4] MINISTÉRIO DA CULTURA (MinC). Qual a diferença entre Ponto e Pontão de Cultura?. Disponível em <http://culturaviva.gov.br/perguntas-frequentes/>. Acesso em: 23 abril 2018.

Como citar e referenciar este artigo:
RIBEIRO, Camilla Garcêz. Direitos culturais no Brasil e a proposta da Política Nacional de Cultura Viva sob a égide constitucional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/direitos-culturais-no-brasil-e-a-proposta-da-politica-nacional-de-cultura-viva-sob-a-egide-constitucional/ Acesso em: 28 mar. 2024