Sociedade

Afirmar a cidadania

Atahualpa FernandezÓ

                                                            

“Los irreflexivos nunca dudan. Su paciencia consigo mismos es ilimitada. De la cabeza se sirven sólo para sacudirla. Tan seriecitos advertirán de los peligros del agua a los pasajeros del barco que se hunde. Bajo el hacha del asesino, se preguntarán si no es también él un ser humano. Su acción consiste en vacilar. Su sentencia favorita: no está listo para sentencia.” B. Brecht

 

Como se afirma a cidadania? O que significa afirmar a condição de cidadão?   É um processo automático? Quais os valores e fatores que possibilitam dito processo? Implica este “afirmar” o fato de que não se pode falar de cidadania se esta não se materializa nas próprias humanas condições do processo experiencial de que surge, assegurando a cada indivíduo liberdade e igualdade de oportunidades reais em uma sociedade fraterna? Quais são os elementos que influem para que valores como a cidadania, dignidade ou compromisso solidário não se convertam em tópicos sem efeitos reais? Significa, em definitivo, uma relação de vida em que ter cédula de cidadania plena é ter liberdade real e condições materiais de existência para resistir à interferência arbitrária de outros? É o republicanismo o modelo que melhor reflete, entre todos, o ideal de cidadania plena e ativa?

 

Para os partidários do modelo republicano, o conceito de cidadania engloba os elementos da liberdade e da igualdade, passando pelo reforço da fraternidade.[1] Mas, o que é republicanismo? Com frequência se fala de republicanismo como se fora uma sorte de tradição de filosofia e pensamento político homogêneo. Nada obstante, é possível identificar-se três tipos de republicanismos: (i) republicanismo histórico democrático, (ii) republicanismo histórico oligárquico (ou antidemocrático) e (iii) neorepublicanismo acadêmico moderno[2]. (D. Raventós & J. Mark)

 

Tanto as formas democráticas como as antidemocráticas do republicanismo histórico viam a “propriedade” (os meios para a existência) como um bem necessário para a liberdade, com a diferença de que os antidemocratas excluíam aos não-proprietários do direito à cidadania; enquanto que os democratas defendiam que a república devia introduzir medidas que asseguraram a todos os cidadãos uma independência material. Já o “neorepublicanismo acadêmico moderno” (que passou a estar de moda em alguns meios universitários e, ainda que com menor intensidade, também em determinados contextos políticos), tende a fulminar a relação entre propriedade e liberdade republicana, assim como entre propriedade e democracia, ao centrar-se, em seu lugar, na ausência de dominação e na interferência arbitrária por parte de outros, já sejam indivíduos ou grupos, incluindo o Estado.

 

E é aqui, precisamente, donde jaz a diferença crucial com o republicanismo histórico, para o qual a origem principal da vulnerabilidade e da interferência arbitrária é a ausência ou a privação da independência material que a propriedade provoca. De fato, se não se tem este ponto muito presente (a essencial natureza do papel histórico da propriedade, e a capacidade de dominar dos proprietários), então a noção de “dominação” se dilui e, o mais importante, resulta despojada de sua natureza institucional – o que pode levar a incluir no republicanismo histórico aspectos das relações humanas que em nenhum caso haveria considerado adequado politicamente[3]. Para o republicanismo histórico, não se pode entender a liberdade republicana como fundamento da cidadania à margem da existência material em sociedade[4].

 

Dito isto, ao adotar uma concepção republicana da liberdade se entenderá rapidamente que às perguntas antes formuladas somente podem ter uma resposta possível: sem a garantia do direito aos meios materiais de existência (do direito mais essencial de existência material) não pode existir liberdade e a cidadania se converte em mera palavra para descrever um fenômeno sem qualquer significado absoluto. Se tenho que pedir permissão a X para poder viver cotidianamente, minha existência material depende de X; se dependo de outra pessoa para poder sobreviver, não sou plenamente livre. Por isso não tem sentido falar de cidadania e de liberdade se o indivíduo não dispõe das condições e as bases de sua existência material garantidas; quero dizer, se os indivíduos não podem articular seus planos de vida, se não podem levá-los à prática de uma maneira efetiva, a cidadania plena resulta impraticável e a liberdade uma quimera.

 

Para a concepção republicana de cidadania, esta supõe a garantia de uns mínimos materiais aos indivíduos; ou, dito em termos negativos, sem independência material não há cidadania. Não é livre o indivíduo que trabalha em situação análoga à escravidão ou de trabalho degradante, não é livre o trabalhador assalariado (“escravo a tempo parcial”, segundo a definição de Aristóteles, logo retomada por Adam Smith e por Marx), não é livre a mulher submetida ao pater familias, não é livre o homossexual ao que se lhe nega a plena igualdade de direitos…

 

A liberdade, portanto, é o principal fator por meio do qual se manifesta uma cidadania plena e ativa; uma sociedade fundada na não dominação e na igualdade material (ainda que aproximada) permite que seus membros formulem seus próprios objetivos, desenvolvam suas próprias habilidades e levem a cabo as ações que lhes converterão em indivíduos únicos, com uma individualidade separada e autônoma. E se estamos de acordo em que ter cédula de plena cidadania é ter voz e voto nas deliberações comuns, ter condições e capacidade para resistir à interferência arbitrária de outros, devemos reconhecer que a cidadania afeta a individualidade dos seres humanos, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer: “uno más uno más uno más uno más uno…”.(J. Wark)

 

O problema é que a diferenciação (individualidade) sem propriedade (meios materiais) e integração (inclusão), ao abrigo do véu de uma cidadania puramente formal, rompe a ordem sociopolítica em fragmentos e desata, de um lado, a cobiça e o dominação de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a dependência, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de muitos. Para ser operativas ou, melhor dito, autênticas, cidadania e liberdade devem estar baseadas na condição fundamental do direito à existência material. Ninguém pode negar a verdade evidente, ainda que silenciada com frequência, de que “sin vida, ningún outro valor es sostenible”. As pessoas forçadas a um estado “infrahumano” no mundo real são escravas de condições de miséria ou de submetimento que anulam toda possibilidade de liberdade cidadã.

 

E quando falo de falta de meios materiais de existência, de situação de escassez material, estou falando de ausência de autonomia, de dependência, de submissão ou de servidão, sem que ninguém se digne a prestar atenção à evidência de que todos os demais direitos, junto com o da dignidade humana, derivam do direito básico da existência material de seus membros. Um direito de todo ponto inalienável, como o direito a não ser objeto ou propriedade de outro. Esta classe de direitos que são inalienáveis precisamente porque não são direitos puramente instrumentais, senão direitos constitutivos do próprio homem como titular de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência do “in-divíduo” digno, separado, livre e autônomo, quero dizer, que afiançam e confirmam sua existência como cidadão.

 

Há algo que possa resultar mais desgarrador e nocivo, em termos comunitários, do que uma situação em que não está garantida a existência material de algumas pessoas e suas possibilidades de viver de acordo com seus próprios planos de vida? Há algo mais atentatório à liberdade e à cidadania que umas circunstâncias de existência que permite a uns poucos afortunados fazer que a vida seja miserável para muitos desafortunados?

 

A toda evidência que não. E é muito provável que a maior dificuldade que impede a construção de uma sociedade materialmente justa, igualitária e fraterna que fomente o sentimento de cidadania plena e ativa entre os indivíduos proceda da completa falta de valores comuns: toda proposta de afirmação da cidadania sem responsabilidade e compromisso ético compartidos pode resultar destrutiva, degradante e desmoralizante. Não é possível projetar uma situação anelada se não vai acompanhada de valores partilhados que deem suporte à ação e que estejam presentes em cada obrar. Compartir o que se quer alcançar é lograr o compromisso de todos. Sem um verdadeiro compromisso conjunto com os valores da tradição republicana, a cidadania jamais se converterá em um poderoso instrumento de firmação da liberdade política de governar e ser governado, da liberdade – “política” também – de governar a própria vida, condição necessária da individualidade, de um existir separado, autônomo e não dependente.

 

E nem cabe objetar, aqui, que a cidadania, conceitualmente falando, está limitada somente a canalizar determinadas atitudes mentais de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressados pelos direitos democráticos. Não parece ser este o caso e nem tão pouco padece a cidadania deste tipo de restrição. A justificativa para a cidadania está no fato de que se deve concebê-la como um mecanismo por meio do qual se consubstancia e se expressa a necessidade de liberdade e autonomia não em abstrato, senão em uma sociedade que necessita ser transformada e constituída pela inclusão de todos os indivíduos na qualidade de verdadeiros cidadãos, isto é, como seres humanos autônomos e independentes, como verdadeiros seres individuais, emancipados e libertos de toda e qualquer barreira social, econômica, política ou de classe.

Significa que tanto no âmbito da atuação política, institucional ou social, a cidadania destina-se a produzir a incorporação na sociedade civil – quebrada em decorrência de uma intensa polarização da vida social e econômica – dos indivíduos mais desfavorecidos, com a consequente desaparição, eliminação ou afrouxamento das barreiras que os impedem de ocupar e participar dos espaços públicos, dissolvendo ou acabando com os eventuais vínculos de dominação e de não liberdade – enfim, dos grilhões que os submetem aos caprichos arbitrários e/ou interesses injustificados de qualquer agente social e do próprio Estado. Dito de outro modo, que uma boa e justa sociedade terá de ser também e necessariamente “inclusiva”, dar espaço para que indivíduos livres e iguais, procedentes de todos os seus rincões, possam gastar suas vidas de forma digna[5].

 

Sobra dizer que a ideia de justiça em uma sociedade decente não implica ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes; mas significa e implica, isto sim, a ausência de exploração de uns sobre outros, a eliminação efetiva de interferência arbitrária nos planos de vida de uns sobre outros e a assunção valores consensuados e compartidos. Tratar com igualdade aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não exige em absoluto que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições. É a “consideração” e o respeito pelo ser humano que devem ser mantidos por igual (P. Singer). A autêntica cidadania, para ser plena e não cair na versão vulgar e perversa da caridade postula e requer a harmônica integração da diferenciação (individualidade), da propriedade (meios materiais) e da integração (inclusão social).

 

Assim as coisas, a afirmação (republicana) da cidadania mostra, com claridade, a iniludível chamada de um valor que, em última instância, nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos: a liberdade despida de toda pretensão de embalsamar a vida humana ou do desejo de relativizá-la como um fetiche baixo o controle e o domínio “do outro”. E a melhor via para a consecução desta chamada é a da tradição republicana, do republicanismo (histórico) democrático.

 

Com seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta vias e estratégias essencialmente úteis para tomar a cidadania como um poderoso instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais da dinâmica fluída e contingente em que seproduz, reproduz e desenvolve a liberdade humana ante as mais variadas circunstâncias e caprichos de um entorno em que depravação e a perigosa manipulação da ideia de cidadania são sempre uma possibilidade.



ÓMembro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España. 

[1] Desafortunadamente, na atualidade, a fraternidade parece olvidada (A. Domènech), a igualdade “se queda en una pura proclama formal de los países supuestamente civilizados y la libertad se entiende de una manera totalmente egoísta, sin reciprocidad y sin denunciar la falta de condiciones materiales para ejercerla.” (J. Wark)

[2]Representado,inter alia, por Quentin Skinner, J. G. A Pocock e, quiçá especialmente, por Philip Pettit.

[3] Autores republicanos tão díspares como Aristóteles e Robespierre, ou Cicero e Kant compartiam, ao menos, duas convicções: 1)as pessoas que não dispõem do “direito à existência” garantida devido à falta de propiedades não são cidadãos por direito próprio (sui iuris), senão que vivem a mercê dos demais. Estas pessoas não são capazes de cultivar ou inclusive de exercer suas virtudes cívicas, já que tal dependência a outro grupo as sujeita a um regime alheio (alieni iuris), fazendo delas, portanto e a todas luzes, “sujeitos alienados”.; 2)  a liberdade republicana pode estender-se a muitos (a democracia plebéia preconizada pelos republicanos democratas) ou a uns poucos (a forma plutocrática dos republicanos oligárquicos), mas sempre se baseia na propriedade e na independência material que dela se deriva. Tal liberdade não pode sustentar-se se a possessão da propriedade é tão desigual e tão  polarizada em sua distribuição que um punhado de indivíduos se encontra em posição de desafiar à república. Esta elite sempre superará com êxito, de não quebrar-se esta situação, qualquer oposição da cidadania, até o ponto de impor sua própria concepção do bem público.

[4]Aliás, foi o republicano Robespierre quem por primeira vez falou de “direito à existência”. Defendia de forma inigualável que a sociedade deve garantir a todos os seus membros, como primeiro direito, o de existir material e socialmente.

[5] Claro que esta “inclusão” só é possível se tomamos como premissa uma ideia de direito fundamentada, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos  nós mesmos quem outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar a própria vida social. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm que ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados nem por atos particulares, nem pela lei e tão pouco em função de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral de respeito recíproco e universal. Não há direito que não seja outorgado para resolver os problemas a ele relacionados. Isto implica, entre outras coisas, uma concepção de Estado segundo a qual este não pode “atuar” como “estado mínimo”, senão com o dever de desenvolver uma função positiva: a de prover as bases materiais mínimas de uma vida respeitável, assegurando e promovendo a identidade, a liberdade e a autonomia de todos os indivíduos-cidadãos.

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa. Afirmar a cidadania. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/afirmar-a-cidadania/ Acesso em: 28 mar. 2024