Sociedade

Laicidade, Liberdade e Identidade Religiosa: A Tentação da Cruz (Parte I)

Atahualpa FernandezÓ

“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus forte, zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.  E uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Bíblia Sagrada: Deuteronômio 5, 6-21; Êxodo 20, 2-17; Levítico 26, 1).

«Lo que puede un sastre»

 

Em 1799, comenta Victor Orozco, Francisco de Goya publicou um gravado ao qual intitulou «Lo que puede un sastre». O pintor espanhol desenhou uma árbore seca, cujo tronco e curtos ramos foram cobertos por uma túnica com capuz, representando assim a um santo, à maneira como imaginavam os crentes da época a esses homens e mulheres tocados pela divindade. Ao pé da figura central, uma jovem mulher lhe reza com devoção. Ao fundo se adverte uma procissão fervorosa, de quem vem a render-lhe preiteio, uns chorosos, outros suplicantes, esperançados, com os olhos para o céu ou cerrados, em um êxtase místico. Arriba, estão os traços de “Las Tres Furias”, as deusas mitológicas encarregadas de manter a ordem social e religiosa. Também, um homem, aparentemente um escravo, montado sobre uma coruja, símbolo da sabedoria. As interpretações sobre esta complexa trama ideada por Goya choveram durante duas centúrias.

 

Uma destaca que o pintor crava o afilado dardo da sátira no corpo das crenças religiosas. Se burla da fé, depositada em uma madeira disfraçada. O título não deixa lugar a dúvidas: em mãos de um «sastre», cualquer coisa mundana se transmuta em mágica, divina, milagrosa, onisapiente, onipotente. O desenho resume o fenômeno da alienação, mercê ao qual o indivíduo renuncia a seu próprio «eu» para entregá-lo ao fetiche religioso. E que não é senão uma confecção humana, ideal ou material: é o crucifixo, a relíquia da madre Teresa, a imagem ricamente adornada de um santo (a), Mahoma, Cristo, o totem da tribo, a estátua de madeira ou gesso da Virgem que opera milagres, o escapulário bendito, o céu, o inferno… e ao final, Deus.

 

O gravado de Goya motivou ao longo do séc. XIX uma indignada resposta dos defensores da fé. Os devotos sinceros e ingênuos sentiram que o mordaz desenho ofendia profundamente seus sentimentos religiosos e se burlava de suas crenças íntimas herdadas de pais e avós. Por sua parte, se os clérigos da igreja católica não enviaram ao audaz e traidor artista – que antes havia pintado quadros religiosos –  às chamas da fogueira santa, foi porque os tempos das queimas e os autos de fé já haviam passado de moda. O quadro sobreviveu e ficou para a história como uma das mais geniais denúncias contra a manipulação da credulidade das massas.

 

Não é necessário ser nenhum lince ou estar dotado de um desmedido sentido comum para dar-se conta de que a gráfica representação de Goya ainda diz muito do que significa hoje a identidade católica (sendo justo, de qualquer identidade religiosa), sobretudo no que se refere à barreira mental da idolatria, da frenética devoção e do (ab) uso em espaços públicos do símbolo cristão por excelência, a cruz. Que vantagem para a fé ou para a saúde da alma aporta aos cristãos a imposição do crucifixo, convertido pouco menos que em um elemento de decoração e adorno? Quantos dos que querem que esteja presente nas salas de aula ou prédios públicos obrigam a que seus filhos saiam de casa com um crucifixo ao pescoço ostensivamente exposto? Acrescenta algo o fato de obrigar ao não crente a ter que mirar constantemente em ambientes públicos a representação da cruz e o Crucificado? Não deveriam os fiéis meditar muito seriamente sobre a utilidade que historicamente representou para sua fé a pura imposição, antes mediante a força bruta e agora mediante certos símbolos? Se difunde adequadamente e com sentido um credo religioso dessa maneira? Donde está o plus de mérito ou de virtude ao pretender obrigar aos demais a contemplar gestos e signos que, em uso de idêntica liberdade, talvez não queiram ver ou tenham por incompatíveis com suas crenças, também respeitáveis? Por acaso não percebem que essa «fixação funcional» da cruz como representação da redenção da humanidade através da execução de um carpinteiro palestino é fruto de uma das capacidades mais extraordinárias de nosso cérebro: a de imaginar coisas que realmente não existem? Que classe de religião é essa?

 

 

A «loucura» da fé, o Crucificado e a algofilia cristã

 

Custa trabalho saber quanto há de distorcida ignorância e quanto de espesso maquiavelismo detrás da pretensão fortemente moralizante da religião, e inclusive da visão de que o cristianismo pode determinar (ou determina) os «valores morais»[1].Mas, estimando com a devida probidade a advertência de Susan B. Anthony de desconfiar “daqueles que sabem tão bem o que Deus quer que façam, porque sempre coincide com seus próprios desejos”[2], estou convencido que qualquer cristão virtuoso e comprometido com a causa deveria reflexionar sobre essas questões com enorme e contundente distância crítica, ser mais humilde com e não fiar-se demasiado de suas próprias crenças[3], buscar o conhecimento antes que a superstição ou a ignorância deliberada, evitar o autoengano e as associações espúrias que difulminam a linha entre realidade e imaginação, entregar-se às evidências, intentar perceber que existe uma realidade alternativa, uma possibilidade de que esteja (radicalmente) equivocado, e rechaçar doutrinas, dogmas ou valores morais que só contam com um respaldo empírico direto anedótico.

 

 

Por um lado, porque não resulta nada claro o prazer, a satisfação e/ou o benefício que os devotos cristãos podem obter ao ver os sítios públicos e comuns presididos pelo crucifixo que simboliza e dá sentido a sua fé (que com orgulho Paulo considerava «loucura» e os cristãos dos primeiros séculos proclamavam também com orgulho no «credo quia absurdum»). Pensam acaso que alguém vai seguir ou voltar ao redil religioso por mirar constantemente a representação da crucificação? Não se dão conta de que em tempos de exibicionismo obsessivo de crenças religiosas, todas sobre a mesma base de reafirmar-se em ser mais autênticas que as demais, a exageração do simbolismo com uma força inusitada, digna de outros séculos, prediz que a gente está insegura, que se queixa não somente do que  perdeu (que estaria em seu direito) senão também do que lhe ameaça (quando a gente tem medo, dispara)? Não sabem que suas crenças, por definição, não são e nem podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado? Não lhes preocupa sequer o fato de que a religião consiste na lucrativa atividade de ensinar às pessoas a estar satisfeitas com «não entender» (R. Dawkins)[4] e que a tendência cada vez maior a etiquetar-se e mostrar de forma ostentosa e chamativa determinado símbolo religioso frustra a possibilidade de que os indivíduos, enquanto indivíduos cidadãos, se reconheçam entre si como iguais? E já que estamos: Por que existe um exército de masoquistas que adotam de forma definitiva e incondicional as doutrinas, categorias e dogmas católicos e pastam nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor? Por acaso são doutrinas, categorias e postulados  da «única», «verdadeira» e «legítima» religião?

 

Não sou religioso e não pratico nenhuma crença teísta, deísta ou animista sustentada por pensamientos mágicos acerca de um deus (deuses) ou sobre a mesma existência mística do ser humano[5]. Acredito na «criatura»[6] («desenhada»[7] por mecanismos evolutivos) e em minhas interações com pessoas religiosas e não religiosas por igual, traço uma linha divisória e restritiva, baseada não em suas crenças concretas, senão em seu grau de dogmatismo. Respeito a fé dos demais, e com mais motivo se a vivem e experimentam com certa congruência, cordura e sentatez (dos que sabem distinguir a falsa piedade da genuína religiosidade ou espiritualidade).

 

 

No entanto, considerando que a curiosidade é livre, o respeito pelas crenças alheias tem um limite e a reflexão sobre a religião uma atividade muito conveniente para qualquer que tenha uma mínima inquietude sobre os fenômenos que movem o mundo, admito que em temas como este me resulta francamente difícil entender aos que exigem que os símbolos religiosos se imponham contra vento e maré aos que não os queiram e aos indiferentes: é como crer que movendo o rabo de um cachorro vamos conseguir que seja feliz (J. Haidt). Em termos de apostolado me parece hipocrisia, misticismo e soberbia semelhante estratégia. Meter-se com os demais para defender as representações mundanas de Deus é como declarar o amor a marteladas, coisa de estúpidos, fanáticos e autoritários sem remissão.

 

Ao fim e ao cabo, sem o mágico encanto da «loucura» da fé (cuja virtude é precisamente sua irracionalidade, como dizia S. Kierkegaard), a cruz, como objeto de tortura especialmente doloroso e cruel, é um evangelho de desesperação; quero dizer, a crucificação é o que é (e a verdade, por brutal, incômoda e antipática que pareça, não deixa de ser verdade[8]): para o crente símbolo supremo de sua religião, para o que não crê ou não sabe do assunto, uma cena de extrema, despiedada e descomunal violência… um ébrio culto à morte.

 

 

Por certo que representa a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico: que o emblema de uma religião seja um crucificado em sua cruz significa que aquela inscreveu a morte de Deus no coração de seu ritual. Ao agonizar, Jesus se converte em “proprietário do sofrimento e da morte” (P. Valéry) e transmuta estes em alegria: dor e ressurreição[9]. O filho de Deus na cruz afirma o trágico da condição humana e a supera para acercar-se à ordem sobrehumana da esperança e do amor: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus Cristo um guia e um amigo que lhe ajude[10]; e com esta condição, seu sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação,de “renovação da energia espiritual” (João Paulo II).

 

 

Um modo de pensar e sentir em que não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo para salvar a existência, convertê-lo em incentivo para uma verdadeira transformação. É o fracasso que leva à vitória e, como dizia Lutero, ao condenar ao pecador Deus assegura sua salvação: “Todo hombre se convierte en camino de la Iglesia, especialmente cuando aparece el sufrimiento en su vida” (João Paulo II).  É a  a desdita cingida com o véu da «eloquência da cruz» que promete a ressurreição para apartar aos piedosos do dever de melhorar a condiçao terrenal. “Nunca es lo bastante fuerte, lo bastante grande”; e posto que abre as portas do conhecimento e da sabedoria, “es mejor cuanto más injusto”, dizia Simone Weil[11].

“Un cristiano es un hombre del otro mundo”. (Bossuet)

«Cérebro espiritual» e laicidade

 

Mas não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo. A percepção da cruz como uma espécie de mensagem, mistério[12] ou ícone divino por essas almas que sofrem, perfeita para a narrativa e a fábula pela emotividade e poder de sensibilização que tem, é algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas, como la belleza o la moral” (F. Mora).

 

 

Tomando sem ônus as palavras de J. Bering, “un estado mental, una ilusión psicológica, una especie de evolucionada imperfección grabada en el sustrato cognitivo esencial del cerebro” que, de vez em quando, comete erros e nos engana. Algo parecido ao que sucede com as ilusões ópticas (ou «erros do cérebro», como chama N. D. Tyson): ainda que entendamos que nos “impide tener momentos sostenidos de claridad”, não desaparecem. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que nos inventamos.Somos o que somos, somos nosso cérebro.

 

 

Por outro lado, no curso do tempo, o direito à liberdade de consciência[13] se constituiu em peça central das sociedades modernas, inscrito em quase todas as constituições do mundo. Também se converteu no flagelo à alienação religiosa, à superioridade espiritual ou moral dos que abraçam o cristianismo[14] e a comumente intolerante e paranóica reação dos cruzados da fé. Com efeito, sobra dizer que as constituições atuais, de uma maneira geral, determinam que nenhuma confissão religiosa terá caráter estatal, que os Estados são laicos e que permanecem à margem dos credos, considerados todos esses por iguais aos efeitos do trato que hão de receber.

 

 

Não há um documento semelhante à «lei das leis» no que se refere às religiões, mas, ao menos as chamadas «do livro», dispõem de uns textos sagrados aos que seus respectivos devotos atribuem uma autoria divina. A igreja católica, por exemplo, dispõe da Bíblia e, formando parte dela, de um Novo Testamento no qual figura, se não recordo mal, a metafórica recomendação feita por Jesus de “dar a César o que é de César e a Deus o que pertence a Deus”. Esta separação entre o mundo laico e o religioso foi um dos fundamentos da aparição dos Estados modernos, porquanto o poder religioso – nomeadamente depois da reforma protestante – “deixou” de atender aos assuntos políticos e de usurpar os poderes legítimos das autoridades civis, centrando-se no que forma parte da mensagem bíblica e dos importantíssimos, complexos e insondáveis assuntos próprios dos sacros dogmas (ainda quando, há que reconhecer, a maioria dos vicários do Senhor continuem a incorrer na denominada contradição «performativa»: “chove, mas não creio que chova“; “meu Reino não é deste mundo, mas atuo tal como se fosse”).

 

Como a gente culta compreende – e deixando de lado qualquer reflexão que possa ver-se obscurecida por uma complexidade filosófica desnecessária-, as religiões pertencem ao âmbito privado (e a estas alturas já deveria estar claro o motivo), são válidas para quem queira crer em seus tautológicos postulados, mas não são válidas para qualquer sujeito. Isso implica que não deve haver qualquer tipo de interferência do (ou desde o) privado sobre o público. O âmbito público deve estar protegido do privado: no âmbito público não valem as «razões» privadas, precisamente porque no âmbito público se busca o que é suscetível de universalidade e aceitação por qualquer sujeito, comum a todas as pessoas e válido para todos, enquanto que o privado, por definição, é o que vale para uns, mas não para todos.

 

 

Em um Estado laico, todos cidadãos e instituições são laicos no âmbito público, quer dizer, quando se trata do que a todos concerne, e logo cada cidadão tem suas próprias crenças e preferências em seu âmbito privado. O laicismo é precisamente a ordem político-jurídica que garante o anterior; e ao que se opõe é justamente a essa identificação do público com uma opção religiosa, protege a liberdade de pensamento no âmbito privado donde é inviolável, assim como sua livre expressão sem mais limite que a ordem pública: a liberdade dos demais. (A. Carmona) E mais: em um Estado moderno, a decisão sobre o bem ou o mal e outras questões morais estão restritas, protegidas e garantidas, ao espaço privado da consciência individual. Desta forma se assegura a liberdade individual para pensar e viver de acordo à própria ética e se proíbe que o poder público possa impor uma religião ou moral particular ao conjunto da sociedade, respeitando assim a liberdade de pensamento, eleição, decisão, ação e crença de cada cidadão.

 

 

Por isso se estabelece um «muro de separação»entre os dois âmbitos: o privado e o público. Ninguém pode vulnerar a liberdade de consciência nem de expressão[15], nem um particular, nem a maioria, nem o Estado com suas leis. Nenhum particular, grupo fático ou religioso pode impor suas próprias convicções, doutrinas, ritos e/ou símbolos aos demais. Não por outra razão é que o limite de nossa liberdade é a liberdade dos outros, não suas crenças. A liberdade religiosa[16] não há de significar dar validez ao fato religioso, nem tão pouco implica ou ordena fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto.[17]



ÓMembro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher. 

[1] Uma caricatura desta “falácia cristã“ é a história contada por Edmond Rostand, em sua comédia Chantecler, de um galo “que creía que gracias a su canto el sol salía todos los días”. Para mim, as religiões, e particularmente as três religiões monoteístas, são a negação total e absoluta do humanismo, isto é, da ideia de que qualquer concepção ética deriva de uma boa compreensão da natureza humana e da condição humana no mundo real. Isso implica que “en los planteamientos humanistas sobre la bondad y sobre nuestras responsabilidades, bajo ningún concepto prevalecerán supuestos astrológicos o fabulosos, ni creencias sobrenaturales, ni animismo, politeísmo, o cualquier otra herencia del ignorante pasado remoto de la humanidad” (A. C. Grayling).Desde o ponto de vista teórico e empírico, portanto, é perfeitamente possível uma atitude humanista para encontrar em nossa natureza os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da justiça e da ética, sempre e quando os valores e imperativos morais se considerem uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.     

[2] “Desconfío de aquellas personas que saben muy bien lo que Dios quiere que ellos hagan, porque me doy cuenta que siempre coincide con sus propios deseos”. Susan B. Anthony

[3] Como sugere Daniel Kahneman: “Não há que confiar em ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”.

[4] O que leva alguns devotos a perderem de vista o valor moral de não elidir a advertência de que uma “das enfermidades mais perigosas que pode contrair o espírito humano é ignorar sua própria ignorância”.

[5] Sublinho que ao não aceitar nenhuma das ideologias e categorias sem fundamento das diferentes religiões e seitas (monoteístas ou politeístas) organizadas e/ou praticadas pela humanidade, a questão de «crer» ou «não crer» em algo, em suas respectivas posturas e/ou postulados extremos, perde todo seu interesse e acaba por perder também seu sentido. Contudo, como diria Homer Simpson: “Que no me importe no significa que no lo entienda”.

[6] Assim as últimas e comovedoras meditações do Frei Girolamo Savonarola, o dirigente do partido dos pobres, perseguido, encarcerado, torturado e executado pela Santa Inquisição (em 23 de maio de 1498, na Piazza della Signoria de Firenze), precisamente um ano depois de que o Papa Borgia, Alejandro VI, desde Roma, “la Babilonia de todos los vicios”, lhe houvera excomungado: “Contra Ti sólo he pecado, delante de Ti he hecho  el mal (…) Contra Ti sólo, precisamente porque me has mandado que te ame a Ti por Ti mismo y que refiera a Ti el amor de las criaturas, y yo he amado más a la criatura que a Ti, al amarla por sí misma. ¿Qué es pecar sino amar a la criatura por sí misma?” Para dizê-lo com as palavras de Spinoza: “El hombre es un Dios para el hombre”.

[7] Para que nos entendamos: ao usar o termo «desenho» não me refiro a nenhum tipo de postura «criacionista» ou de «desenho inteligente», senão a algo «desenhado» pela seleção natural». Na prática, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (R. Dawkins, D. Dennett).

[8] A filosofia analítica e o positivismo lógico diferenciam tradicionalmente entre duas acepções da palavra ‘verdade’: a ‘verdade’ comocorrespondência(quer dizer, a coincidência entre o que se afirma e a realidade das coisas) e a ‘verdade’ comocoerência(cabe dizer, a ausência de assertos contraditórios em um sistema lógico-dedutivo que parte de umas determinadas premissas). Embora pululem na atualidade outras concepções da ‘verdade’, para evitar digressões filosóficas de amplo perímetro me permitirei a reserva de considerar, com H. Frankfurt, que há uma dimensão da verdade que nem sequer a mais enérgica – ou mais laxa – compreensão da (inevitável) subjetividade pode atrever-se a vulnerar, uns limites relativos à margem de variação e fantasia que faz com que a indiferença à verdade seja uma característica indesejável e inclusive criticável. O núcleo da verdade e da racionalidade (epistêmica) consiste na coerência, e ser coerente, em ação e pensamento, supõe como mínimo atuar de maneira tal que não nos enganemos a nós mesmos e que, “por tanto, la charlatanería es algo que debemos evitar y condenar”. O que leva (e levou) alguns filósofos a sinalar, com notável insistência, que a mentira e o engano debilitam a coesão da sociedade humana de maneira irreparável (Kant e Montaigne, por exemplo): “Sólo si reconocemos un mundo de una realidad, hechos y verdades obstinadamente independientes, podemos reconocernos a nosotros mismos como seres distintos de los demás y articular la naturaleza específica de nuestras propias identidades. Si esto es así, ¿Cómo podemos no tomarnos en serio la importancia de la facticidad y la realidad? ¿Cómo podemos no preocuparnos por la verdad?”. (H. Frankfurt). Apesar disso, como animais «domesticados» por uma constelação de crenças transmitidas, prejuízos inconscientes e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência, de quando em quando nos falta perspectiva para entender e aceitar que a realidade – “un concepto de lo que nos limita, de lo que no podemos cambiar o controlar mediante un mecanismo de nuestra voluntad” (H. Frankfurt) – sempre será realidade, inexoravelmente independente e obstinadamente “distinta de nosotros”, sem importar o que pensemos, creiamos ou anelemos. E uma vez chegado a esse ponto, o apego à razão pode ser prova de sacrilégio e “el grado de creencia en algo se transforma en la medida de su valor de verdad” (R. Trivers).

[9] A propósito, visto que não se definem precisamente por sua moral, nenhuma das religiões cristãs pode prescindir da figura de Jesus Cristo. “Si se pudiera demostrar que tal ser humano nunca existió, o que era un ser humano como todos, sin nada divino y sin milagros absurdos, desaparecería el cristianismo tal como lo conocemos. No se sostendría solo con sus preceptos morales. De la misma manera, las religiones islámicas no se sostienen sin Mahoma y los hechos legendarios a él atribuidos. Ni el judaísmo sin toda su mitología y su historia inventada como pueblo elegido por un dios, ni los mormones sin su Joseph Smith y sus hechos tan o más absurdos que los de Jesucristo, ni los cienciólogos sin Hubbard y sus disparates, ni el hinduismo sin sus cientos de miles de dioses al estilo de la mitología griega, ni los diversos animismos sin creencias en ánimas a la manera que sea. La razón es que son esos seres o esos hechos legendarios o mitológicos los que establecen la conexión entre una o muchas deidades y el ser humano. Para las religiones esa conexión es lo importante, sin la cual muchos creyentes se sienten perdidos. Y ese es justamente el nefasto legado de las religiones. Por dos razones. Primero, porque a esos creyentes se les impide tener la claridad de miras suficiente como para desarrollar preceptos morales sin necesidad de la parte crédula del asunto. Esto hace que los preceptos morales sean sagrados y no se cuestionen libremente en sociedad. A su vez, esto implica una dificultad para convivir con tales creyentes. Creerán que sus opiniones morales tienen más base que las de los no creyentes, que están por encima de la ley y, como consecuencia estarán poco dispuestos al diálogo, a la revisión de sus creencias y al compromiso necesario para la vida en una sociedad diversa. Segundo, los creyentes, necesitando esa conexión para su moral, tenderán a atribuir a los no creyentes una inmoralidad, pues creen que también los no creyentes la necesitan para ser morales. También estarán ciegos ante la evidencia en contra de esa afirmación”(J. Luis Ferreira).  

[10] Na atenta observação de Robert Trivers (ao tratar da religião e o autoengano), a deificação do profeta Jesus (o mito evangélico de Cristo) não tem paragão na concepção dos profetas no islamismo e o judaísmo. Não há nessas outras duas religiões nada similar ao seu insólito nascimento, nada parecido aos milagres que lhe atribuem, nada que se assemelhe ao sofrimento de uma morte cruel que expia o pecado da humanidade e posterior ressurreição três dias mais tarde, e definitivamente nada que implique uma sorte de transformação de Jesus, enquanto Deus encarnado, em um terço (1/3) do espetáculo constituído pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo. E quanto mais os cristãos deificam o mito de Cristo e maior é o delírio da imaginação ou fé insana em uma divindade arquitetada pelo judeu helenizado Paulo de Tarso (e elaborada pelos evangelistas teologicamente ex post e, a sua vez, com a tergiversação ominosa do Jesus histórico), menor é a atenção que prestam à doutrina que, segundo os Evangelhos, predicou o profeta em sua breve travessia pela terra. A “cristomania” e o “jesuismo”, essa esquizofrênica amálgama de crenças sui generis centrada na secular convicção e eufórica exaltação da deidade de Jesus, estão de moda, um fenômeno cada vez mais extremo e difuso, consumível por todos e a todas as idades, à gosto do consumidor, em todo momento, em casa, fora de casa, à distância e on-line. Quer dizer, como se fosse um suplemento oficial de contrapeso da alma materialista, servindo versões lights e multifuncionais de um Cristo mais adequado para nosso delicado e sobreexcitado ego; um tipo de amigo invisível, um guru espiritual, fictício, onipresente e camaleônico ao alcance de todos e que serve, à custa de um sem-número de interpretações bíblicas, para qualquer pessoa que anele aceitá-lo como seu Senhor e salvador pessoal. Como disse Dante, “hemos perdido el camino recto”. (A. Fernandez)

[11] Com isso coloca o sofrimento, não a alegria, no centro da experiência humana: “Bienaventurados los afligidos, porque ellos serán consolados” (Las Bienaventuranzas). Para o cristianismo a «vida é um vale de lágrimas», viemos ao mundo para sofrer e passar misérias;  esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original. Daí esta inquietude real dos desgraçados que vai acompanhada pela glutonaria da desdita: “Fazer o bem com o sofrimento e fazer o bem a quem sofre” (Papa Francisco, recordando as palavras de João Paulo II). Por isso há uma necessidade compulsiva de apoderar-se da desgraça dos demais, como se a própria não bastasse (P. Bruckner). Claro que o Vaticano pode impregnar os cérebros teologicamente condicionados de seus cordeiros com preconceitos e valores infundados e anacrônicos; o que não pode (e não deve) é intentar impor essa moral fundada no sadismo ou na glorificação demencial do sofrimento (e sua respectiva simbologia) como norma obrigatória a todo mundo. Nem sequer aqueles que creem na existência de um Deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós, seriam capazes de afiançar que os poderes mais altos da Igreja perambulam pelo mundo com ideias que desafiam a inteligência de uma criança de dez anos ou menos. Desconfiemos daqueles que idolatram a desgraça, que se irritam com nossa liberdade e que avocam o direito ou a autoridade moral de dignificar nossos infortúnios. Desconfiemos de todos aqueles que professam adorar ou preocupar-se pelo sofrimento alheio. Em sua solicitude se oculta uma espécie de desprezo disfarçado, um sussurro para reduzir aos miseráveis a sua angústia. Somente se lhes perdoa a vida se sofrem, ainda que ideia de que a dor e o sofrimento santificam jamais se demonstrou cientificamente. Recordemos as palavras de Cicero: “Sentir piedad implica sentir envidia, porque si uno sufre por las desgracias de los demás, también es capaz de sufrir por su felicidad”. “Delectatio in felicitate alterius”, dizia Leibniz: “Disfruta con el placer de los que te rodean. Hay más nobleza de alma en gozar de la alegría de los demás que en afligirse por sus desgracias”.

[12] «Mistério»: este “curioso mecanismo que permite, graças à ausência de resposta, que tenhamos resposta para tudo; uma noção empregada de forma desmesurada que se converte em um mero sofisma para justificar o injustificável” (Marcel Conche). Aliás, seja dito de passagem, uma das maiores vantagens constitutivas das religiões sobre as ideologias laicas é a denominada «inutilidade da prova». As ideias, contos, símbolos e fabulações que nos apresentam não têm escala humana ou temporal, ao contrário de nossos ideais terrestres, obrigados a resignar-se às leis da verificação e da persuasão racional. Como a sentença de Descartes que Spinoza adotou como máxima para orientar-se: “Nada debe ser considerado como verdadero excepto aquello que haya sido probado con buenas y sólidas razones”.

[13] Dizer liberdade de consciência é dizer liberdade de expressão e de ação.

[14] Paulo de Tarso, o “décimo terceiro apóstolo histérico e masoquista” (para usar as palavras de Michel Onfray), foi o verdadeiro fundador do cristianismo e quem expôs as ideias com as que este triunfou: o elogio do gozo da submissão, a obediência, a passividade, a escravidão baixo os poderosos com o pretexto falaz de que o poder vem de Deus e que a situação social do pobre, o modesto e o humilde emerge da vontade celestial ou da decisão divina (M. Onfray). Com sua apologia da dominação e renúncia ao mundo, Paulo fixou claramente desde o começo a doutrina da natureza humana pecadora, caída e maleável, e, a partir dela, sua dura (e misógina) postura acerca dos poderes terrenal e celestial.

[15] Nas sensatas (e extensas) palavras de Steven Pinker: “La libertad de expresión es la única manera de adquirir conocimientos sobre el mundo. Tal vez el mayor descubrimiento en la historia humana —uno que es lógicamente anterior a cualquier otro descubrimiento— es que todas nuestras fuentes tradicionales de creencia son, de hecho, generadores de error y deben ser descartados como fuentes de conocimiento. Estos incluyen la fe, la revelación, el dogma, la autoridad, el carisma, el augurio, la profecía, la intuición, la clarividencia, la sabiduría convencional, y el cálido resplandor de la certeza subjetiva. Sólo adquirimos conocimiento atacando las ideas y viendo cuáles resisten los intentos de refutarlas. […] Ahora sabemos que los sistemas de creencias de las religiones y las culturas tradicionales de todo el mundo —sus teorías sobre los orígenes de la vida, los seres humanos y las sociedades— son objetivamente falsos. Sabemos, pero nuestros antepasados no sabían, que los seres humanos pertenecen a una sola especie de primate africano que desarrolló la agricultura, el gobierno y la escritura tarde en su historia. Sabemos que nuestra especie es una pequeña ramita de un árbol genealógico que abarca a todos los seres vivos y que surgió de productos químicos prebióticos hace casi cuatro mil millones de años. Sabemos que vivimos en un planeta que gira en torno a una de las cien mil millones de estrellas en nuestra galaxia, que es una de las cien mil millones de galaxias en un universo de 13.8 mil millones de años de edad, posiblemente, uno de un gran número de universos. Sabemos que nuestras intuiciones sobre el espacio, el tiempo, la materia y la causalidad son inconmensurables con la naturaleza de la realidad en escalas que son muy grandes y muy pequeñas. Sabemos que las leyes que rigen el mundo físico (incluidos los accidentes, las enfermedades y otras desgracias) no tienen metas referentes al bienestar humano. No hay tal cosa como el destino, la providencia, el karma, los hechizos, las maldiciones, los presagios, la retribución divina, u oraciones respondidas — aunque la discrepancia entre las leyes de la probabilidad y el funcionamiento de la cognición pueda explicar por qué las personas creen que los hay. Y sabemos que no siempre supimos estas cosas, que las queridas convicciones de todos los tiempos y culturas pueden ser decisivamente falseadas, sin duda, entre ellas algunas de las que tenemos hoy en día.”

[16] A liberdade religiosa é uma consequência ou aplicação da liberdade individual. Não se justifica (a liberdade religiosa), em modo algum, como homenagem ou consideração às religiões ou aos grupos religiosos enquanto titulares de direitos ou interesses mais altos que os dos indivíduos. A liberdade religiosa se protege para que qualquer sujeito possa decidir se professa alguma religião ou não professa nenhuma, e para que possa viver em consequência e, em seu caso, concorrer aos ritos ou práticas correspondentes, no que não resultem incompatíveis com a liberdade de todos e cada um e com a ordem pública mais básica. Entre outras coisas, porque a liberdade, a autonomia e/ou a vontade individual nesta vida é assunto mais sério que a complacência dos deuses, o capricho dos sacerdotes de qualquer credo ou o legítimo desejo que alguém tenha por fazer-se um espaço na vida eterna ao lado do Grande Chefe, com anjos ou querubins.

[17] Ignacio de Loyola dizia que o sarifício que mais agradava a Deus de todos os sacrifícios possíveis era o sacrifício do intelecto, quer dizer, a disciplinada e cega subordinação da razão à fé; o “creo a pesar de que es absurdo” ou precisamente “porque es absurdo”, como dizia Tertuliano. É o «sacrificium intellectus»,«el sacrifizio dell’inteletto como le gustaba decir al vasco universal». Mas isto não é uma característica ou prerrogativa da religião católica. Não existe nenhuma religião viva que não exija de algum modo o sacrifício do primogênito do homem, a «Razão».

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa. Laicidade, Liberdade e Identidade Religiosa: A Tentação da Cruz (Parte I). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/laicidade-liberdade-e-identidade-religiosa-a-tentacao-da-cruz-parte-i/ Acesso em: 28 mar. 2024