Sociedade

Nuvens sobre a democracia

Nuvens sobre a democracia

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

O presidencialismo na América, exceção feita à forma gerada nos Estados Unidos, no país que a concebeu, tem demonstrado ser uma permanente escola de ditadores ou títeres disfarçados em democratas, ao longo de mais 200 anos de história.

 

Mesmo no Brasil, temos verificado que, desde a sua adoção, após o golpe militar de 15 de novembro de 1889, em que o Marechal Deodoro acreditara ter derrubado o último gabinete do Império e não a própria monarquia, os períodos de ampla democracia e os de arbitrariedade, exceção ou ditadura foram gangorrais.

 

Deodoro foi imposto, não eleito. Peixoto governou inclusive com aplicação da pena de morte aos que desejavam que o regime fosse aberto. Até 1930, a democracia independia dos eleitores, pois mediante um complicadíssimo sistema de cálculos e recálculos, São Paulo e Minas Gerais impunham seus candidatos e impediam qualquer oposição séria. Contra este sistema revoltou-se Getúlio, que impôs ditadura sem quaisquer laivos democráticos até 1945. De 1945 a 1964 tivemos um presidente que se suicidou, duas revoltas militares que depuseram Café Filho e Carlos Luz, presidentes que sucederam Getúlio, dois golpes militares fracassados contra Juscelino (Jacareacanga e Aragarças), um presidente renunciante e outro deposto, tendo sido o período, apesar de tudo mais aberto do presidencialismo democrático brasileiro.

 

De 1964 a 1985 vivemos em regime de exceção, que se abriu naturalmente para a volta à democracia no último governo imposto (Figueiredo) e de lá pra cá tivemos um presidente deposto pelo congresso e uma sucessão de escândalos políticos que não terminam, sempre envolvendo aliados dos governos, principalmente deste último.

 

Na Argentina, no Uruguai, os golpes são mais sangrentos que no Brasil, o mesmo ocorrendo com a Bolívia, Chile (melhorou consideravelmente nos últimos tempos), Venezuela, Equador, Colômbia e com quase todos os países da América Central. No México, um “partido único” –como se pudesse haver democracia com um partido só- dominou, sem contestação, dezenas de anos.

 

Em outras palavras, a democracia dificilmente se compatibiliza com o presidencialismo, governo da “irresponsabilidade a prazo certo”. Eleito um irresponsável há sempre razoáveis possibilidades de se tornar um ditador, ou ser afastado traumaticamente por “impeachment”.

 

Em contrapartida, os países parlamentaristas, quase todos os europeus, a Índia, a Tailândia e muitos outros –por ser o governo da “responsabilidade a prazo incerto”- permitem maior estabilidade democrática e maior controle pelo povo, como demonstram a permanente instabilidade do presidencialismo na América Latina e a estabilidade na Índia e na União Européia, mesmo agregando países emergentes.

 

No momento, a América Latina começa a temer novamente pela democracia. Chavez, cada vez mais, ao governar sem o congresso, ao fechar o principal canal de televisão e ao impedir passeata de estudantes, transforma-se num ditador exportador de arbítrios e histrionices para outros países (Bolívia e Equador) e deseja transformar o Brasil em seu acólito. Morales é um seu pobre seguidor, o mesmo se dizendo de Corrêa. O próprio Lula, ora demonstra independência, ora se torna um defensor deste inimigo do Senado Federal brasileiro, em surpreendente atitude.

 

Aqui mesmo, tem-se a impressão que, à luz do pretendido combate à corrupção, direitos fundamentais à imagem e a presunção de inocência são pisoteados, tendo ouvido, outro dia, de um eminente magistrado e professor renomado de direito que já não aconselha mais seus alunos a estudar esta ou aquela forma de recursos por telefone para não ser interpretado, se grampeado, como estando a “facilitar” o acesso ao Judiciário. A própria Corte Suprema, ao não permitir que um acusado tivesse acesso a todas as peças de uma longa grampeagem para sua defesa, parece ofertar menos garantias do que se desejaria num período de denuncismo e efeitos cinematográficos nas prisões temporárias ou preventivas de presumíveis culpados de colarinho branco.

 

Como membro da Academia Paulista de História e tendo já escrito uma história da gente bandeirante, vejo com preocupação a renovação dos mesmos sinais de tempos passados em que a democracia foi posta em xeque.

 

 

 

 

* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Nuvens sobre a democracia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2007. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/nuvens-sobre-a-democracia/ Acesso em: 20 abr. 2024