Processo Civil

Execução Fiscal. Exame do anteprojeto

Execução Fiscal. Exame do anteprojeto

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional elaborou um anteprojeto de lei de execução fiscal para tentar reduzir o tempo de tramitação dos processos judiciais e ultimar a rápida arrecadação da receita tributária. Este anteprojeto surgiu do diagnóstico da realidade existente: a extrema morosidade do Poder Judiciário afogado em meio a milhares de processos executivos, o que faz com que menos de 1/3 das execuções ajuizadas resulte efetivamente em arrecadação do tributo.

 

As propostas legislativas partem sempre do mero exame da realidade existente. Nunca se atenta para as causas ensejadoras do resultado negativo ou do problema a ser solucionado por via legislativa. Essa cultura de combater os efeitos, sem se preocupar com as causas vem impondo, periodicamente, a Reforma da Previdência, a moratória dos precatórios etc. Se debruçarmos sobre as razões do emperramento dos anexos fiscais, nas três esferas políticas, verificaremos que a morosidade não reside no defeito da atual Lei de Execução Fiscal, que se pretende banir. Se atentarmos para o fato de que leva-se meses para simples juntada de petição aos autos, outros meses, às vezes, anos, para simples substituição de bem apenhado, verá que nenhum sistema jurídico, por si só, será capaz de conferir eficiência ao processo de execução fiscal. Só de pensar nisso fico apavorado com a indisponibilidade universal de bens do devedor (bancos, bolsa de valores, Detran, Registro de Imóveis etc.) seguida do ‘imediato’ levantamento da indisponibilidade de bens excedentes ao valor total da dívida sob execução, introduzida pela LC nº 118/05, que veio, estranhamente, adequar as disposição do CTN às normas da nova lei de falências, que criou a figura da recuperação judicial e extrajudicial de empresas em dificuldades.

 

Enquanto uma lei visa recuperar as empresas insolventes, a outra lei cuida de liquidar as empresas saudáveis, mas com pendências de natureza tributária, pela supressão de meios de sobrevivência empresarial. Se se levasse a sério o disposto no inciso XXII, do art. 37 da CF, que considera as administrações tributárias como atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas e com recursos prioritários para a realização de suas atividades, as execuções fiscais não estariam encalhadas nos escaninhos das repartições públicas. Ação de agentes políticos caminham exatamente em sentido oposto. Grandes Municípios não desistem, jamais, da firme determinação de terceirizar, a qualquer custo, o serviço de cobrança da dívida ativa, por isso permitem que órgãos incumbidos dessa missão constitucional operem com carência de recursos materiais e humanos.

 

Outrossim, é preciso um mínimo de critério para a distribuição das execuções fiscais. Não faz sentido o ajuizamento em massa, misturando créditos tributários prescritos ou atingidos pelos efeitos da decadência, devedores presumivelmente insolventes ou não localizados, com créditos tributários de monta e de responsabilidade de empresas saudáveis do ponto de vista financeiro. Há que se fazer uma triagem prévia, agilizando as execuções contra devedores solventes, e não concentrar os parcos recursos pessoais e materiais de que dispõe a administração tributária nas execuções contra devedores insolventes ou empresas inexistentes na realidade, fato que conspira contra o princípio da eficiência no serviço público.

 

Projetos legislativos sacados do bolso de colete, para se livrar de um problema crônico, sem investigação de suas causas conduz, invariavelmente, à elaboração de normas cada vez mais afastadas do Estado Democrático de Direito, dentro do princípio: ‘o fim justifica o meio’.

 

Ultimamente, tamanha é a proliferação de instrumentos normativos truculentos (arrolamento fiscal, ação de depósito, protesto de certidão da dívida ativa, inscrição no CADIN, exigência de certidão negativa de tributos para levantar valores depositados em juízo[1], bloqueio on-line de todas as contas bancárias [2], indisponibilidade universal de bens, notificações eletrônicas de débito, que alijam o princípio do contraditório e ampla defesa) que tem-se a impressão de que se pretende arrecadar na base do susto e da intimidação. Pergunta-se, qual o objetivo de denegrir a imagem de uma empresa em dificuldade momentânea, mediante protesto e inscrição no Cadin? O meio regular de coerção (execução fiscal) não mais serve? Por que? As respostas a essas indagações conduzem à ineficiência do serviço público mais pela falta de vontade política. Não será uma nova legislação que vai fazer brotar a vontade política, que reside no caráter da pessoa.

 

Na verdade, esse cipoal de instrumentos normativos violentos vêm suprindo a falta de eficiência dos servidores públicos. Dia chegará em que o contribuinte nenhum direito terá. É possível prever para o futuro não muito remoto um sistema jurídico fiscal em que a Fazenda, em convênio com o Banco Central, programe seus computadores, para promover a compensação dos tributos que ela entender devidos com os saldos em contas correntes, inclusive, promovendo resgates antecipados das aplicações financeiras do contribuinte devedor. Assim, o contribuinte estará sendo cobrado enquanto dorme. Ao acordar, o empresário perceberá que não terá como pagar o tributo retido na fonte, nem os fornecedores e nem os salários, pois seus recursos financeiros foram ‘compensados’ com os ‘débitos’ tributários.

 

O anteprojeto sob análise é mais um instrumento de manifestação da fúria fiscal. São poupados dessa fúria os contribuintes de tributos municipais, já que os Municípios são useiros e vezeiros das tentativas de terceirização do serviço de cobrança da dívida ativa, exatamente, na contramão da diretriz traçada pelo art. 37, XXII da CF. O anteprojeto em questão afigura-se como um amontoado de normas processuais de natureza administrativa e judicial e de normas substantivas. Intercalam-se as providências administrativas e judiciais ao longo do processo. A penhora, avaliação, o arresto e o leilão [3] são conduzidos pela administração, adentrando no campo reservado à jurisdição (arts. 10 e 19). Porém, se houver impugnação da avaliação cabe ao juiz decidir (§ 2º do art. 12). O arbitramento do percentual do faturamento para fins de penhora também é feito pelo juiz (art. 17). Há um verdadeiro ‘vai-vem’ do processo do Executivo para o Judiciário e vice-versa a provocar ‘sumiços’ involuntários de processos. Se colocar um desses processos na pilha daqueles destinados ao arquivo ele jamais será encontrado, a menos que o servidor que cometeu o engano involuntário se lembre do fato. A restauração dos autos consumirá mais tempo do que o destinado à solução do litígio. Não é preciso muito esforço mental para se ter a idéia do desastre.

 

Supor que a divisão das atividades próprias da execução fiscal entre os órgãos do Executivo e do Judiciário irá agilizar o desfecho das demandas é incorrer no equívoco elementar de quem não conhece a realidade. Como seria possível sustentar que a intervenção do Executivo poderia agilizar a execução fiscal, se os processos administrativos tributários levam, em média 36 meses para decisão final, dois quais, o contribuinte é responsável pela consumação de no máximo dois meses e meio, entre impugnação e recursos? Como um órgão administrativo, que timbra pela morosidade de seus atos, poderia agilizar a execução fiscal? Claro está que o acúmulo de executivos fiscais no Judiciário é mero pretexto para implementação de instrumentos normativos autoritários e arbitrários para arrecadar a todo custo o que fisco entende ser devido, anulando os princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa.

 

O anteprojeto contém, ainda, outros vícios. Cria, de forma indireta, a figura da responsabilidade tributária pessoal em relação à terceira pessoa que nada tem a ver com a situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária (art. 6º § 3º), e aparentemente faculta-se o leilão extrajudicial antes do julgamento dos embargos em primeira instância (art. 23).

 

Enfim, o anteprojeto cria normas confusas e desconexas permitindo que a administração invada área sob reserva de jurisdição, não guardando conformidade com os textos constitucionais, nem com as normas processuais genéricas ficando no meio termo entre a execução fiscal administrativa e a execução fiscal judicial.

 

Faz lembrar a figura mitológica do monstro de sete barbas da Mesopotânea. Não atende ao princípio da razoabilidade que configura um verdadeiro limite norteador da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de norma infraconstitucional, bem como da legitimidade dos atos administrativos e, até mesmo das decisões proferidas pelo Judiciário, na concreção da lei.

 

Seria preferível, mediante reforma constitucional, implantar o contencioso administrativo subtraindo da esfera do Judiciário a composição de lides de natureza tributária. A experiência tem demonstrado o bom desempenho dos tribunais administrativos ou dos Conselhos de Contribuintes. A imparcialidade e conseqüente confiabilidade das decisões proferidas por órgãos colegiados de segunda instância administrativa, compostos de profissionais especializados que lidam apenas com a matéria tributária, também, é pública e notória.

 

Outra alternativa, simples e racional, seria adotar a penhora administrativa nos moldes da proposta apresentada pelo Senador Lúcio Alcântara [4], porém, não em forma de lei específica, mas acrescendo alguns dispositivos na atual Lei de Execução Fiscal já decantada pela jurisprudência. Bastaria introduzir a exigência do auto de penhora administrativa como outro requisito da petição inicial. O prazo de embargos, passaria a fluir a contar da data da citação e não da intimação de penhora como está na lei atual, regidos pelo princípio da eventualidade, sem necessidade de ‘vai-vem’ do processo como está no anteprojeto. O ato de penhora, segundo doutrina e jurisprudência não configura um ato jurisdicional, dispensando que esse ato seja praticado sob a vista do juiz. O importante é que se assegure ao executado a observância dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa. Sabe-se que a maior responsável pela paralisação dos autos em cartório é a espera de providências da exeqüente para localização do executado ou para indicar os bens penhoráveis. Em última análise, a morosidade não é do Judiciário, mas da Fazenda exeqüente.

 

Notas:

 

[1] Já julgada inconstituicional pelo STF, Adin 3453-DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 16-3-2007.

[2] Começou com o convênio celebrado entre o Tribunal Superior do Trabalho e o Banco Central e hoje virou rotina.

[3] O leilão extrajudicial de imóvel financiado pelo SFH de que cuidam os arts. 31 e 32 do Decreto-Lei nº 70/66 vem sendo considerado inconstitucional pelos nossos tribunais, à luz da ordem constitucional vigente, apesar da jurisprudência em contrário do STF pela sua composição antiga.

[4] Projeto de lei nº 174/96.

 

 

* Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do IASP. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

E-mail: kiyoshi@haradaadvogados.com.

Site: www.haradaadvogados.com.br

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Execução Fiscal. Exame do anteprojeto. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/execucao-fiscal-exame-do-anteprojeto/ Acesso em: 19 abr. 2024