Processo Civil

Impossibilidade da Execução Provisória das Astreintes

Impossibilidade da Execução Provisória das Astreintes

 

 

Carolina Ribeiro Botelho*

 

 

As chamadas astreintes – multas pelo descumprimento de ordem judicial oriundas de ações que tenham por objeto a repressão imediata do ilícito – desde a sua inserção recente no direito brasileiro, vêm ganhando lugar de destaque no processo civil, dada a sua indiscutível eficácia como meio de coagir o demandado ao cumprimento de decisões judiciais.

 

Como não poderia deixar de ser, entretanto, a prática na aplicação do instituto trouxe à tona alguns problemas que não foram de imediato percebidos pelo legislador e desafiam os intérpretes a buscarem as soluções que melhor se adeqüem ao sistema jurídico-positivo vigente, um deles diz respeito à impossibilidade de se executar provisoriamente a multa aplicada.

 

As dúvidas causadas pelo vazio legislativo, especialmente no Código de Processo Civil, motiva diversas interpretações e é ainda favorecida pela escassez de decisões judiciais sobre os temas.

 

Não obstante a situação apontada acima, no presente trabalho serão apontados fundamentos suficientemente sólidos a demonstrar a impossibilidade de se executar provisoriamente a multa, ainda que constatado o descumprimento da decisão judicial, conforme se demonstrará a seguir.

 

 

1) RAZÕES PARA A IMPOSSIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA MULTA

 

1.1) NOS TERMOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

 

O principal aspecto a ser observado é que quando se aplica multa no curso do processo, não existe decisão judicial passível de ser executada, isto porque o Código de Processo Civil está a determinar, em claras palavras, o que de fato é título executivo apto a ensejar a execução, descriminando no art. 475-N todas as hipóteses:

 

Art. 475-N. São títulos executivos judiciais:

I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia;

II – a sentença penal condenatória transitada em julgado;

III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo;

IV – a sentença arbitral;

V – o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente;

VI – a sentença estrangeira, homologada pelo Superior Tribunal de Justiça;

VII – o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal.

 

Ao analisar todas as hipóteses elencadas acima, depreende-se claramente que decisão interlocutória não é título executivo, portanto não é passível de execução provisória.

 

A execução provisória das astreintes também não se confunde com a execução da obrigação de fazer – esta autorizada pelo art. 273 do CPC.

 

Portanto, é possível afirmar que no Código de Processo Civil inexiste dispositivo legal a autorizar a execução provisória da multa!

 

 

1.2) NA RELAÇÃO DE CONSUMO – APLICABILIDADE DA LEI DA ACP

 

Também merece destaque a hipótese da multa ser aplicada com base na relação de consumo existente entre as partes, nos termos em que autoriza o art. 84 do CDC:

 

Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

 

Neste caso específico, a impossibilidade de sua execução provisória fica ainda mais clara, por um único motivo, a Lei da Ação Civil Pública, aplicada subsidiariamente ao Código de Defesa do Consumidor (Art. 90 do CDC[1]), prevê expressamente em seu art. 12, §2º que somente pode ser executada a multa, após o trânsito em julgado da decisão favorável ao Autor.

 

A quem defenda ser incabível a aplicação da Lei Civil Pública de forma subsidiária ao Código de Defesa do Consumidor, pela simples diferença entre a natureza jurídica entre as leis (coletiva/individual), argumento que não possui fundamento visto que não se trata de pretensão aleatória, mas de determinação contida no próprio Código de Defesa ao Consumidor.

 

 

1.3)  CONFRONTO COM LEIS ESPECIAIS – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO IDOSO

 

Outro aspecto também suficiente para que não se admita a execução da multa antes do trânsito em julgado é o fato de que o objeto da ação certamente é patrimonial, ou seja, não está em risco a sobrevivência de alguém, não havendo, portanto, qualquer justificativa suficiente a autorizar a execução provisória da multa.

 

Em situações muito mais graves, onde na lide estão envolvidos direitos do idoso ou do menor, a execução nesta fase processual é expressamente proibida:

 

LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990.

Vide texto compilado Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

[…]

§ 3º A multa só será exigível do réu após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento.

 

LEI Nº 10.741, DE 1º DE OUTUBRO DE 2003.

Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.

Art. 83. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não-fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.

[…]

§ 3o A multa só será exigível do réu após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado.

 

Portanto, não parece justo que o devedor seja constrangido a diminuição patrimonial se, ao final, ele obtém uma tutela em seu favor, reconhecendo que a obrigação era indevida. Situação que se agrava quando confrontada com as legislações específicas – acima elencadas, em que há previsão expressa de que a multa só será exigível após o trânsito em julgado, caso a decisão seja favorável ao Autor.

 

Acredita-se que o legislador certamente não quis beneficiar o Autor em lide que se discuta direito patrimonial e, em contra-partida, tenha sido mais rígido em sistemas obviamente mais protecionistas, como o de defesa dos direitos difusos, do consumidor, do idoso e do menor. Parece, portanto, coerente que a regra a ser observada para aplicação da multa do art. 461, assim como aquelas previstas nos diplomas especiais citados, seja a de sua exigibilidade tão somente após o trânsito em julgado da sentença favorável ao Autor.

 

 

1.4) NÃO SUBSISTÊNCIA DA MULTA EM CASO DE IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO

 

Outro aspecto que também não pode deixar de ser observado em prol do posicionamento acerca da impossibilidade de se executar provisoriamente as astreintes é que o fato de que, em caso de improcedência da ação, a multa não subsistirá.

 

A possibilidade de aplicação de multa para coagir o devedor ao cumprimento de obrigação judicial, conquanto revele verdadeiro aprimoramento da legislação processual nacional, deve ser utilizada com moderação, sob a pena da sociedade ser obrigada enfrentar não só a chamada indústria das indenizações por dano moral, como também a da multa diária.

 

Há de se perceber que a subsistência da multa, mesmo quando a ação fosse julgada improcedente, estaria em flagrante descompasso com os propósitos da ação principal, a ponto de tornar-se mais atraente que a própria pretensão motivadora do litígio e ainda, evidentemente injusta ao demandado que, com razão, deixou de dar cumprimento à determinação judicial.

 

A tônica da aplicação das astreintes é coagir o devedor ao cumprimento da decisão pela ameaça e pelo risco que o descumprimento gera, na hipótese de vir a ser mantida e vir a ser condenado ao final, demonstrado-se que a antecipação realmente tinha razão de ser.   

 

E para que dúvida não reste a esse respeito, merece transcrição o posicionamento da Ministra Eliana Calmon[2]:

 

“No meu entender, se após a cognição plena e exauriente o juiz conclui não ter o autor razão, ou ter sido o processo inútil, porque defeituoso ou carente, naturalmente não pode prevalecer a eficácia da tutela antecipatória”

 

Juristas como Paula Sarno, Fredie Didier Jr. e Rafael Oliveira[3] também acompanham a posição da Ministra Eliana Calmon, ao defenderem que o beneficiário da multa somente quando vencedor da demanda fará jus à cobrança do montante.

 

Luiz Guilherme Marinoni também se encontra entre os defensores da supressão da multa no caso de improcedência da demanda, entendendo que somente o beneficiário vencedor terá direito a embolsá-la. Em obra distinta, Marinoni[4] acrescenta:

 

Se nosso sistema confere ao autor o produto da multa, é completamente irracional admitir-se que o autor possa ser beneficiado quando a própria jurisdição chega à conclusão de que ele não possui o direito que afirmou estar presente ao executado (provisoriamente) a sentença ou a tutela antecipatória.

 

É pertinente, também, a análise da posição de Guilherme Rizzo Amaral[5], autor de livro tratando apenas sobre as astreintes, que também se filia à corrente majoritária, fazendo, inclusive uma crítica ao entendimento de Joaquim Felipe Spadoni, atente-se:

 

Parece-nos equivocada a opinião de Joaquim Felipe Spadoni, citada linhas atrás, no sentido de que a multa estaria desvinculada da obrigação material imposta, configurando uma resposta à violação de uma obrigação processual (ordem judicial). Parece que o autor faz aqui uma confusão entre as astreintes e a multa por contempt of court, que, como já se viu acima, são coisas diferentes.

 

 

 

1.5) DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA

 

Conforme já explicitado na introdução deste artigo, não são muitas doutrina e  jurisprudência que tratam sobre a impossibilidade de execução provisória da multa, no entanto, algumas já existentes merecem destaque.

 

Luiz Guilherme Marinoni, jurista já mencionado em tópico acima, ao citar Arruda Alvim em sua obra Código do Consumidor Comentado, acrescenta a sua tese o seguinte excerto:

 

“Arruda Alvim, ao comentar o art. 84 do CDC, reafirma a idéia contida no art. 12 da Lei da Ação Civil Pública: se assim é, segue-se que esta multa terá incidência já a partir desta decisão liminar, ou, da liminar concedida após justificação prévia, mas somente poderá ser cobrada ou executada a final (é, de resto, o sistema do art. 12, §2º, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, aplicável no caso, pela analogia das situações, à luz do art. 90 deste Código, ao sistema do Código de Proteção e Defesa do Consumidor). […]”

 

Ou seja, além de defender a impossibilidade de manutenção da multa em caso de improcedência da ação, também se posiciona no sentido de que a multa não poderá ser executada provisoriamente.

 

Neste mesmo sentido também ensinam Nelson Nery e Rosa Maria Andrade Nery[6]:

 

Execução.  execução da obrigação de fazer ou não fazer somente pode ser iniciada depois da sentença de conhecimento, transitada em julgado, proferida em ação de preceito cominatório (CPC 287). A ação do CPC 461 não é de execução, mas de conhecimento. As denominadas astreintes somente são devidas após o trânsito em julgado da sentença onde foram fixadas e após o não-cumprimento do julgado no prazo assinado pelo juiz, se outro não estiver já determinado.

 

Verificam-se também, poucos julgados favoráveis à matéria fática em discussão:

 

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INDEFERIMENTO DA INICIAL. EXECUÇÃO DE ASTREINTE FIXADA EM ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DO TRÂNSITO EM JULGADO DO DECISUM. Não é possível a execução provisória de multa, que tem função de astreintes, fixada em sede de antecipação de tutela. A execução da multa somente é possível após o trânsito em julgado da sentença, embora se possa exigir sua incidência a partir da data de descumprimento da ordem. As duas coisas não se confundem. Uma é a execução e a outra é o dies a quo de exigibilidade. Precedentes deste Tribunal. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70012173563, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang, Julgado em 12/04/2006)

[…]

A sentença monocrática deve ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos, pois não se pode, efetivamente, executar a multa, fixada em sede de antecipação de tutela, antes do trânsito em julgado da sentença, embora se possa exigir sua incidência a partir da data do descumprimento da ordem, mesmo que liminar. As duas coisas não se confundem. Uma é a execução e a outra é o dies a quo de exigibilidade.

 

No mesmo sentido a jurisprudência desta Corte, consoante se vê da Apelação Cível nº. 70011248820, em que foi Relator o eminente Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa:

 

PROCESSUAL CIVIL. INDEFERIMENTO DA INICIAL. PRETENSÃO A COBRAR, EM AÇÃO AUTÔNOMA, ASTREINTES FIXADAS EM CARÁTER PROVISÓRIO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.

Não tem qualquer cabimento a pretensão de cobrar, em ação autônoma, astreintes fixadas em caráter provisório em outro processo, sendo que, confirmada a antecipação de tutela, caberá mover execução nos autos do feito em que houve a cominação.

 

Portanto, a aparente omissão deve ceder lugar à lógica, em decorrência da interpretação sistêmica a que todo o operador do direito está obrigado e que deve ser realizada não apenas com a observância dos artigos 461 e seguintes do Código de Processo Civil, mas também com atenção a outros dispositivos do próprio Código de Processo Civil, os quais o próprio legislador pode ter considerado para entender dispensável prever, literalmente, que a multa arbitrada em ações de obrigação de fazer ou dar coisa diversa de dinheiro só é exigível após  trânsito em julgado de decisão final favorável ao autor.

 

 

1.6) RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO AUTOR (CREDOR DAS ASTREINTES)

 

Por fim, cabe ressaltar, não como motivo a impedir a execução provisória da multa, mas como fator a demonstrar o risco desta opção.

 

Caso se pretenda a execução provisória da multa, a responsabilidade do Autor (credor) pelos danos causados ao Réu (devedor) em caso de alteração do julgado é objetiva, nos termos em que dispõe o artigo 475-O inciso I do CPC, ou seja, independe de culpa. Desde que demonstrado o nexo causal entre a atividade executiva e os danos causados ao Réu, o Autor deverá indenizar o Réu.

 

Neste sentido se manifestam os i. doutrinadores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart[7]:

 

“A responsabilidade do exeqüente deriva da circunstância de a execução ter alterado o patrimônio do executado com base em decisão que, posteriormente, foi reformada diante da interposição de recurso. A responsabilidade é independente de culpa ou ânimo subjetivo do exeqüente, mas decorre apenas da reforma da decisão em que a execução se fundou. Trata-se de hipótese de responsabilidade objetiva pela prática e ato lícito, uma vez que a execução da decisão provisória não é apenas expressamente autorizada por lei, como também encontra respaldo no direito fundamental à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF)”.

 

Outro não poderia ser o entendimento, na medida em que o Autor (credor), engajado em seu desejo imediatista, pouco se preocupa com eventual prejuízo que se venha a causar ao devedor, mesmo na pendência de julgamento em definitivo do processo, motivando-se simplesmente na decisão judicial existente em seu favor.

 

Nestes termos, não interessa as razões pela qual entendeu o Autor por utilizar-se da execução provisória, tendo o processo sido julgado definitivamente contra si, terá de indenizar o Réu, já que sua responsabilidade é objetiva.

 

 

2) CONCLUSÃO

 

Conclui-se por tudo isso, que a multa não pode ser exigida antes da decisão definitiva que reconheça a procedência do pedido do Autor, posto que, estaria-se diante da própria ausência de título executivo, e também da possibilidade de se punir quem tinha razão no processo e que apenas resistiu ao cumprimento de algo que lhe foi indevidamente imposto.

 

Por tanto, a interpretação defendida não apenas se amolda ao sistema nacional vigente, mas também parece equilibrar bem a balança da justiça, na busca de garantir a efetividade do processo e do direito, sem que isso importe em desmedido prejuízo aos postulados certamente maiores e mais caros, que são o da ampla defesa e do contraditório.

 

 

* Advogada área cível empresarial, pós graduanda em direito civil e processual no Ciesa

 

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[1]           Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

[2]          CALMON, Eliana. Tutelas de urgência. Juris síntese IOB: Legislação, jurisprudência, doutrina e prática processual. Porto Alegre: Síntese, set/out 2004. p. 8.

[3]          BRAGA, op. cit. p. 360

[4]          Tutela inibitória. São Paulo: RT, 1998. p. 181-182.

[5]           AMARAL, op. cit., p. 68.

[6]          Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, p. 1138

[7]          Curso de Direito Processual Civil: Execução. Volume 3. São Paulo: RT, 2007, p. 365

Como citar e referenciar este artigo:
BOTELHO, Carolina Ribeiro. Impossibilidade da Execução Provisória das Astreintes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/impossibilidade-da-execucao-provisoria-das-astreintes/ Acesso em: 28 mar. 2024