Processo Penal

A banalização da prisão preventiva e a utilização da medida excepcional nos acordos de colaboração premiada

Este breve estudo busca por analisar os institutos processuais penais que estão sendo utilizados para fortificar o discurso punitivista no Brasil, em especial, tratamos da utilização de prisão preventiva como instrumento eficaz de combate ao crime organizado e, indiscutivelmente, é o fator preponderante que assegura a elaboração de acordos de colaboração premiada decorrentes da Operação Lava Jato.

Nesta baila, a prisão preventiva exerce papel fundamental, justo pela falta de critérios específicos para a decretação da medida acautelatória, respaldado pela subjetividade do artigo 312 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:

Art. 312. A prisão preventiva será decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.[1]

Nota-se, o referido dispositivo legal não estabeleceu o critério temporal máximo em que se pode encarcerar determinado acusado sob o respaldo da prisão preventiva legalizada pelo artigo 312 do Código de Processo Penal e, da simples leitura deste artigo, é evidente que existe uma margem de “subjetividade” do julgador ao decretar a prisão preventiva.

Portanto, existem dois momentos históricos no país que têm ligação umbilical com a banalização das prisões preventivas, qual seja: o momento pré mensalão e o momento pós mensalão.

A jurisprudência adotava um prazo razoável e limitador na utilização das prisões preventivas, no período não superior a oitenta e um (81) dias e, após o desdobramento da Ação Penal nº 470 “CASO MENSALÃO, o instrumento que acautelava o processo e detinha um período máximo acabou sendo banalizado e devidamente utilizado como meio de se garantir devidas colaborações premiadas.

É claro que, mesmo antes do desdobramento da Ação Penal nº 470 a jurisprudência dos Tribunais flexibilizava o prazo das prisões preventivas, porém, é evidente que após o desdobramento do “mensalão” a medida perdeu o caráter de excepcionalidade e o parâmetro em que se limitava o prazo, conforme decisões dos Tribunais.

Guilherme de Souza NUCCI trata sobre a duração da prisão preventiva e relata sobre a finalidade do instituto;

A prisão preventiva tem a finalidade de assegurar o bom andamento da instrução criminal, não podendo esta prolongar-se indefinidamente, por culpa do juiz ou por provocação do órgão acusatório. Se assim acontecer, configura constrangimento ilegal. Por outro lado, dentro da razoabilidade, havendo necessidade, não se deve estipular um prazo fixo para o término da instrução, como ocorria no passado, mencionando-se como parâmetro o cômputo de 81 dias, que era a simples somatória dos prazos previstos no Código de Processo Penal para que a colheita da prova se encerrasse.[2]

Mais adiante, o doutrinador também se posiciona a respeito do clamor público:

(…) torna-se questão controversa e de difícil análise o ponto denominado clamor público. Crimes que ganham destaque na mídia podem comover multidões e provocar, de certo modo, abalo à credibilidade da Justiça e do sistema penal. Não se pode, naturalmente, considerar que publicações feitas pela imprensa sirvam de base exclusiva para a decretação da prisão preventiva.[3]

A doutrina vem se posicionando a respeito da banalização das medidas cautelares há muito tempo, conforme ensinamentos de Aury Lopes JUNIOR em meados de 2013:

Segundo Lopes Jr, a prisão cautelar é um instituto que sofreu uma grave degeneração. Seu maior problema é cultural, é a banalização de uma medida que era para ser excepcional. O desprezo pela provisionalidade conduz a uma prisão cautelar ilegal, não apenas pela falta de fundamento que a legitime, mas também por indevida apropriação do tempo do imputado.[4]

Em se tratando de excesso de prazo em prisões acautelatórias do processo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou medidas para reduzir o período das prisões preventivas e assim se posiciona;

(…) a duração da prisão preventiva gera o risco de que o julgador tenha uma tendência a se inclinar pela condenação e pela imposição de uma pena ao menos equivalente ao tempo da prisão preventiva, no intento de legitimá-la.[5]

Posicionou-se o Professor Lenio STRECK e o Min. Gilmar MENDES a respeito dos excessos de prazo nas prisões preventivas e de como o instituto está sendo banalizado;

Na opinião do professor de Processo Penal da UniSinos e advogado Lenio Streck, os números “claramente dizem que o instituto da prisão preventiva foi desvirtuado. Nitidamente ultrapassou-se os parâmetros do artigo 312 do Código de Processo Penal”. O dispositivo diz que a preventiva pode ser aplicada com três justificativas: garantia da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei. (…) Lenio explicar que ultrapassamos até mesmo o padrão dogmático que tínhamos”. Antes, conta, havia um limite de 81 dias para as prisões provisórias. Depois esse prazo passou a ser de 169 dias. “Hoje não temos limites. “O limite é o dia em que preso confessar ou fazer delação premiada.[6]

Não se pode deixar de mencionar a respeito desta falta de critérios tão criticada pela maioria da doutrina majoritária de processo penal, em relação a fundamentação utilizada para se decretar a prisão preventiva, inclusive pelo ilustríssimo Paulo RANGEL:

Ordem pública não é um conceito vago. A vagueza, muitas vezes, está na decisão e não no conceito de ordem pública. Quando o juiz diz que “decreta a prisão para garantia da ordem pública”, a vagueza e a imprecisão não estão no conceito de ordem pública, mas na decisão do magistrado que não demonstra onde a ordem pública está ameaçada e agredida com a liberdade do acusado.[7]

O doutrinador continua os esclarecimentos a respeito do tão aclamado pedido da população pela prisão do acusado antecipadamente:

O clamor público, no sentido da comunidade local revoltar-se contra o acusado e querer linchá-lo, não pode autorizar sua prisão preventiva. (…) O Estado tem o dever de garantir a integridade física e mental do autor do fato-crime. Segregar, cautelarmente, o indivíduo, a fim de se assegurar sua integridade física, é transferir para o cerceamento de sua liberdade de locomoção a responsabilidade do Estado de manter a ordem e a paz no seio da sociedade, reconhecendo a incompetência dos poderes constituídos de atingir os fins sociais a que se destinam.[8]

Posiciona-se neste mesmo sentido, o doutrinador Edilson Mougenot BONFIM, em Código de Processo Penal publicado em 2007:

A decretação da prisão preventiva não se faz por prazo determinado. Entretanto, é certo que não pode o réu permanecer preso preventivamente por prazo indeterminado, sob pena de se caracterizar constrangimento ilegal. Nesse caso, a jurisprudência tem criado mecanismos para a aferição da existência do chamado “excesso de prazo”.[9]

Obviamente que, na utilização banalizada da prisão preventiva considerada pelo código de processo penal como “medida excepcional”, após o desdobramento da Ação Penal nº 470, da Operação Lava Jato, do espetáculo em que se tornou o processo penal, dos vazamentos dos termos dos acordos de colaboração premiada, e principalmente pela dificuldade em apurar crimes transnacionais, ou melhor, que façam parte da “corrupção sistêmica”, a utilização da medida cautelar será fortemente questionada. Deste modo, perde-se o caráter excepcional.

Já em relação ao tema acima abordado, no que diz respeito aos excessos cometidos, Celso Antônio Bandeira de MELLO assim indagou:

Logo, o plus, o excesso acaso existente, não milita em benefício de ninguém. Representa, portanto, apenas um agravo inútil aos direitos de cada qual. Percebe-se, então, que as medidas desproporcionais ao resultado legitimamente almejável são, desde logo, condutas ilógicas, incongruentes.[10]

De modo geral, na doutrina de direito administrativo se extrai o conteúdo de que os excessos cometidos pelos representantes do Estado não militam em benefício, neste caso, a utilização da medida cautelar como instrumento eficaz para a celebração de acordo de colaboração premiada deslegitima o instituto da prisão preventiva, da noção de medida excepcional que poderá ser decretada pelo juiz.

O uso reiterado das prisões preventivas para forçar a realização dos acordos de colaboração premiada não tem o condão de acautelar o processo, conforme constatado nos estudos.

De toda a somatória dos fatores acima elencados, como excesso de prazo, clamor da população por mais prisões, o discurso de que no Brasil as penas devem ser aumentadas, entre outros, Alexandre Morais da ROSA teceu argumentos a respeito do tema aqui abordado;

Buscar mecanismos eficientes para os agentes/jogadores jurídico-econômico (chamados de jogadores, incluindo, acusado, vítima, delegados de polícia, membros do Ministério Público e magistrados, além dos jogadores externos) pode ser melhorado com o estabelecimento de ambientes propícios à negociação, mediante combinações/matching, em que se depende da nossa escolha e também de terceiros. Roth explica que: “Matching é o jargão dos economistas para denominar de que maneira obtemos muitas coisas na vida, coisa que escolhemos mas que também precisam nos escolher[11]

Nesse sentido, a prisão preventiva esbarra especialmente no momento de realização do acordo de colaboração premida, é o famoso “matching” conforme citado pelo autor acima.

Sob o ponto de vista brasileiro, as decretações de prisões anteriormente ao trânsito em julgado do processo estão tornando cada vez mais evidente que existe um adiantamento da pena privativa de liberdade, sem o crivo do princípio do in dubio pro réu, donde os princípios estampados à Carta Magna não prevalecem.

Deste modo, surge o confronto de inúmeros princípios, como o da voluntariedade, em que o colaborador deverá procurar as autoridades competentes e se assim desejar, delatar toda a organização criminosa. Faz parte do próprio instituto da colaboração premiada.

Doutrinadores também aduzem sobre a diferença entre o conceito da voluntariedade e o conceito da espontaneidade. Na qual a iniciativa de praticar a colaboração premiada decorre do próprio agente, diferente na espontaneidade, em que o delator não precisa demonstrar qualquer arrependido.[12]

Neste mesmo sentido, conforme leciona Odone SAGUINÉ;

A prisão preventiva decretada para garantir a ordem pública é utilizada como forma de prevenção geral. Essa teoria da prevenção geral possui a finalidade de atender as demandas sociais, trazendo uma sensação de equilíbrio para os cidadãos.[13]

Casos emblemáticos justificam os argumentos aqui apresentados, como no caso de Marcelo Odebrecht em que outros executivos do Grupo Odebrecht celebraram acordo de colaboração premiada/delação premiada após a efetiva prisão preventiva, não demonstraram qualquer voluntariedade para celebrar o acordo, só após o cumprimento da medida cautelar.

E, por outro lado, o Supremo Tribunal Federal admite o cumprimento de pena privativa de liberdade de maneira automática após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau de jurisdição.

Logicamente, o papel da doutrina é exemplar e produz críticas de forma incansável à todas as irregularidades que ocorrem não apenas na utilização da prisão preventiva, senão vejamos;

(…) o Estado-acusador também lança mão de suas ferramentas legalmente instituídas, ainda que não com esse propósito assumido. É o caso da prisão preventiva, largamente utilizada para criar um ambiente propenso à delação e também pautar o próprio preço da informação. A lógica do “passarinho preso canta melhor” já foi inclusive assumida[14]

Toda a linguagem técnica, doutrinária e democrática está sendo destruída pela nova mentalidade punitiva do Brasil, da noção em que o problema da corrupção sistêmica será solucionado apenas pela via do Poder Judiciário.

Desta forma, se utiliza da hermenêutica jurídica com nítido viés de constrangimento à celebração de acordo de colaboração premiada.

Definitivamente, é tratar do instituto sem a devida seriedade. Os problemas democráticos se resolvem com o debate político, jurídico, administrativo, legislativo, econômico e não pelo ativismo judiciário.

Todavia, é notório que acordos de colaboração premiada foram realizados após a decretação da prisão preventiva, sendo que, para a celebração do acordo, deve haver a voluntariedade do delator, ele tem de “querer” delatar, a prisão preventiva é um estímulo para a delação premiada.

Como matéria disponibilizada, confirma-se;

(…) da lavra do juiz Sergio Moro, de Curitiba, publicado meses atrás, no qual ele revoga uma prisão preventiva de um determinado sujeito se baseando na notícia de que estavam em andamento as tratativas – “contrato preliminar/fase de negociações informais” – de um possível acordo de delação premiada.[15]

Visto isso, a prisão preventiva exerce um papel garantidor de realização de acordos de colaboração premiada, como já referenciado neste breve artigo científico. Não sendo, do ponto de vista teórico, medida cautelar para estimular a realização dos acordos, alterando a própria natureza do instituto.

Fernando Neves Silva

Advogado Criminalista

Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela ABDCONST – Curitiba/PR.



[1] CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em: 22 nov. 2018.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13ª Edição. 2014. Editora Forense. 7-1. Duração da prisão preventiva e princípio da razoabilidade. p. 697.

[3] NUCCI, op. cit., p. 701.

 [4] JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10ª ed. Saraiva: São Paulo, 2015. p. 794.

[5] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Excesso de prazo nas prisões cautelares. 2009. Disponível em:  http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/prisaopreventiva.pdf. Acesso em: 22 nov. 2018.

[6] CONJUR. Criticadas por Gilmar, preventivas da “lava jato” duram em média 9,3 meses. 2017. Disponível em:  http://www.conjur.com.br/2017-fev-07/criticadas-preventivas-lava-jato-duram-media-93-meses. Acesso dia 29 nov. 2018.

[7] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal: 9.3.2 Pressupostos para a decretação da prisão preventiva.21ª ed. Atlas: São Paulo, 2013.p. 796-797.

[8] Idem.

[9] BONFIM, Edilson Mougenot. Código de Processo Penal. Saraiva: São Paulo. p. 483.

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2014. p. 113.

[11] Qual o timing para fazer uma delação premiada?. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2017-jun-09/limite-penal-qual-timing-delacao-premiada. Acesso em: 06 jan. 2019.

[12] GOMES, Luiz Flávio. CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico e político-criminal. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1997. p. 168.

[13] SAGUINÉ, Odone. Efeitos perversos da prisão cautelar. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 86: Porto Alegre, 2010. p. 115.

[14] Qual é a proposta indecente que torna viável a colaboração premiada?. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2017-fev-03/limite-penal-qual-proposta-indecente-torna-viavel-delacao-premiada. Acesso em: 22 nov. 2018.

[15] Prisão para delatar transforma a preventiva em método de tortura. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2017-dez-20/opiniao-ilegalidade-prisao-preventiva-delatar. Acesso em: 01 fev. 2019.

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Fernando Neves. A banalização da prisão preventiva e a utilização da medida excepcional nos acordos de colaboração premiada. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/a-banalizacao-da-prisao-preventiva-e-a-utilizacao-da-medida-excepcional-nos-acordos-de-colaboracao-premiada/ Acesso em: 29 mar. 2024