Processo Penal

A regulamentação do uso das algemas na execução penal

Foi publicado no Diário Oficial da União do dia 27 de setembro, o Decreto nº. 8.858/16, regulamentando o disposto no art. 199 da Lei nº 7.210/84 – Lei de Execução Penal, que trata do uso das algemas no processo de execução da pena.

Segundo a norma legal, o emprego de algemas levará sempre em consideração o inciso III do caput do art. 1º e o inciso III do caput do art. 5º da Constituição Federal, que dispõem, respectivamente, sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante.

Também devem ser observados, doravante, a Resolução no. 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, as chamadas Regras de Bangkok, além do Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.

Assim, observadas tal normatividade, inclusive os referidos documentos internacionais, será “permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito“, sendo expressamente vedado o seu emprego “em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.”

Nada obstante louvável a publicação do Decreto, impressiona o tempo que se levou para regulamentar o art. 199 da Lei de Execuções Penais, o que permitiu, com muita frequência, a exposição de presos provisórios ou definitivos, homens e mulheres, conduzidos sob algemas, independentemente de idade, sexo, condições físicas, etc.

Agora, além deste Decreto, temos o art. 284 do Código de Processo Penal que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.” Este dispositivo vem complementado pelo art. 292, que tem a seguinte redação: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.”

Ainda em nosso ordenamento jurídico, podemos utilizar o disposto no art. 234, § 1º. do Código de Processo Penal Militar: “O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. § 1º. O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242. (grifo nosso).

 

Vê-se, assim, que a utilização de algemas deve se restringir a casos excepcionais, quando haja, efetivamente, perigo de fuga ou resistência por parte do preso; fora daí, o uso desnecessário deste instrumento fere a dignidade da pessoa humana, representando uma ilegítima (e desautorizada) restrição a direito fundamental. A propósito, Gilberto Thums anota que “a violência simbólica se maximiza quando o réu é apresentado ao juiz precedido de aparato de segurança do Estado, algemado, e com ordens de olhar para o chão.”[1]

Atente-se que a Lei de Execução Penal impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios (art. 40). Logo, o uso abusivo e sem critério de algemas é conduta ilegal e, como veremos adiante, criminosa. Na verdade, mesmo que nada dispusesse a legislação ordinária, o certo é que o texto constitucional vedaria a utilização deste meio de força, sem que houvesse necessidade e indispensabilidade da medida, senão vejamos.

A Constituição Federal é clara ao estabelecer como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e como princípio a prevalência dos direitos humanos (arts. 1º., III e 4º., II). Mais adiante, no art. 5º., ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, assegura “aos presos o respeito à integridade física e moral” e “que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (incisos III e XLIX).

 

Ora, “quando o direito interno inclui a dignidade entre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, estabelece a dignidade da pessoa como ´fonte ética` para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais.”[2]

 

Para José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”[3]

Segundo Étienne Vergès, “le principe de dignité de la personne humaine domine de três nombreux domaines du droit. Il a fait son apparition à l´issue de la seconde guerre mondiale dans les textes internationaux.”[4]

Célia Rosenthal Zisman anota ainda que “a consciência da dignidade do homem, a evolução da humanidade que se verifica com a aceitação da necessidade de respeito do homem como pessoa, leva ao entendimento de que a dignidade depende do respeito aos direitos fundamentais por parte de cada indivíduo da sociedade e também por parte do Estado.” (Grifo nosso).[5]

O indiscriminado e excessivo uso das algemas, viola, ademais, o princípio da presunção de inocência (art. 5º., LVII). Neste sentido, conferir Roberto Delmanto Junior.[6] Este autor cita, a propósito, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo: “o uso abusivo de algemas se constitui em prática atroz, bestial ou aviltante, podendo chegar à tortura.”[7]

Canotilho explica que são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.[8]

No plano internacional, podemos citar as “Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos”, documento adotado pelo 1º. Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Genebra em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas através das suas resoluções 663 C (XXIV), de 31 de Julho de 1957 e 2076 (LXII), de 13 de Maio de 1977. A Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e Social, no item 33, recomenda-se, dentre outras coisas, que “a sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção. Mais ainda, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação só podem ser utilizados nas seguintes circunstâncias: a) Como medida de precaução contra uma evasão durante uma transferência, desde que sejam retirados logo que o recluso compareça perante uma autoridade judicial ou administrativa; b) Por razões médicas sob indicação do médico; c) Por ordem do diretor, depois de se terem esgotado todos os outros meios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causar prejuízo a si próprio ou a outros ou de causar estragos materiais; nestes casos o diretor deve consultar o médico com urgência e apresentar relatório à autoridade administrativa superior.” (grifo nosso).

Devem ainda ser indicados dois pactos internacionais, ambos promulgados pelo Brasil, que também proclamam o respeito à integridade física e moral dos presos, o que impede a utilização indiscriminada de algemas: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto 592, de 06 de julho de 1992 – art. 10) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992 – art. 5º.). Sobre a validade, no plano interno, destes documentos internacionais, veja-se o art. 5º.,§ 2º. da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A propósito, Fábio Konder Comparato ensina que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (…) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico.[9]É o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.

Segundo Perez Luño, “este processo de afirmação internacional dos direitos humanos (…) abre – apesar de tudo – uma esperança em uma humanidade definitivamente livre do temor em ver constantemente violados seus direitos mais essenciais.”[10]

Aliás, no Brasil, esta preocupação é antiga, pois o Decreto nº. 4.824, de 22 de novembro de 1871, já determinava no seu art. 28 que “o preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor.”

Pergunta-se, então: caso haja abuso na utilização deste instrumento de força, sua utilização desnecessária e abusiva, qual a conseqüência para o sujeito que ordenou a medida odiosa? Sem dúvidas, incorre o funcionário público no crime previsto na Lei nº. 4.898/65 (arts. 3º.., “i” e 4º., “a”, “b” e “h”), delitos de ação penal pública incondicionada, com pena máxima de seis meses de detenção, além de multa, perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos (art. 6º., §§ 3º., 4º. e 5º.). O art. 4º., “h” da Lei nº. 4.898/65 estabelece ser crime de abuso de autoridade “o ato lesivo da honra, ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal.” Comete este delito a autoridade que age com o propósito de lesar a honra ou o patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica. Esta lei tem dois objetivos primordiais: que a função pública seja exercida na mais absoluta normalidade democrática, no sentido que os representantes da administração pública tenham um comportamento legal, portanto, sem abusos de qualquer ordem; d’outro modo, a lei também visa a proteger as garantias individuais inerentes à pessoa, aquelas mesmas postas na Constituição Federal.

Na lição de Canotilho, no Estado Democrático de Direito deve-se atentar para o Princípio da Proibição do Excesso, impondo-se a observância de três requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade. Segundo o jurista português, “a exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adopção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de protecção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos ´coactivo`, relativamente aos direitos restringidos.”  Para ele, “proibir o excesso não é só proibir o arbítrio; é impor, positivamente, a exigibilidade, adequação e proporcionaliade dos actos dos poderes públicos em relação aos fins que eles prosseguem.[11]

Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais.” Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(…) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[12]

De toda maneira, e para concluir, não esqueçamos que na sessão do dia 13 de agosto do ano de 2008, aprovou-se a Súmula Vinculante nº. 11, nos seguintes termos: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Autor: Rômulo de Andrade Moreira- Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.



[1] Sistemas Processuais Penais, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 182.

[2] Célia Rosenthal Zisman, Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 23.

[3] Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995, p. 106.

[4] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 55.

[5] Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 39.

[6] As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2ª. ed., 2001, p. 67.

[7] Idem, p. 114.

[8] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., p. 1.151.

[9] Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.

[10] Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editorial Tecnos, 1984, p. 42 (tradução livre).

[11] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, pp. 455 e 1.151. esso, segundo o qual “vado o Princonstitucional – O s direitos econt.sil, que tambem

[12] A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 01 e 05.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A regulamentação do uso das algemas na execução penal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/a-regulamentacao-do-uso-das-algemas-na-execucao-penal/ Acesso em: 29 mar. 2024