Processo Penal

O juiz das garantias no projeto de reforma do Código de Processo Penal, violação ao sistema acusatório e supressão de competência da Autoridade Policial

LEANDRO CAMARGOS HERCULANO[1]

FÁBIO PRESOTI PASSOS[2]

RESUMO

Este artigo tem como finalidade analisar a inserção da figura do juiz das garantias na fase inquisitorial. Os possíveis reflexos negativos no atual sistema acusatório, assim como a supressão de competência da Autoridade Policial no transcorrer da fase investigatória. Por fim, analisar a inviabilidade da implementação de tal figura por estar em descompasso com a Constituição Federal e a falta de recursos públicos para sua implementação. Assim, apontar os possíveis reflexos da implementação do juiz das garantias na persecução penal.

Palavras chave: Juiz das garantias. Sistema acusatório. Violação de competência. Inconstitucionalidade.

ABSTRACT

This article has as substantial first analyze the insertion of the figure of the judge of the inquisitorial stage guarantees. The possible negative reflections on the current adversarial system, as well as the abolition of the police authority during the investigatory phase. Finally, analyze the viability of implementing such a figure to be in lockstep with the Federal Constitution and the lack of public resources for its implementation. So, point the possible reflections of the judge’s implementation of guarantees in criminal prosecution.

Keywords: Judge of the guarantees. Police Investigation. Suppression of competence. The absence of constitutional forecast.

Sabe-se que nossa atual legislação processual penal ainda permanece atrelada a longínqua década de quarenta, sendo sua essência nazifascista. Assim, em verdadeiro descompasso com nossa atual constituição. O principal objetivo da nossa legislação processual outro não pode ser senão garantir ao cidadão acusado pelo Estado de alguma violação ao ordenamento jurídico ter mínimas garantias de um processo sob o modelo por este adotado.

Quando prevalecia o Império, o sistema acusatório foi se mostrando insuficiente para as novas necessidades de repressão aos delitos. A insatisfação com o sistema acusatório vigente foi causa pela qual os juízes invadissem cada vez mais as atribuições dos acusadores (atualmente dos investigadores) privados, originando a reunião, em mesmo órgão do Estado, das funções de acusar e julgar. Assim, a problemática de interferência do órgão julgador na acusação e produção de provas vem desde a época do Império, contudo, ainda não superada.

A atual constituição federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, amplitude de meios de defesa em contraditório, a fim de que possa se defender das imputações que lhes são feitas, assim como ter seus direitos e garantias fundamentais assegurados, como sua integridade física e moral, a não privação de sua liberdade e o direito de ser processado por uma autoridade que seja competente. (CF/88, art. 5°, LIII, LIV, LV).

Embora nossa legislação processual penal ainda permaneça atrelada na década de quarenta, é reconhecido que vem sofrendo várias atualizações no decorrer dos anos, a fim de caminhar em harmonia com nossa atual constituição. A Lei 9043 de 09 de maio de 1995 inseriu a redação do caput do art. 4° do Código de Processo Penal, atribuindo a autoridade policial o exercício da polícia judiciária, que, por sua vez, terá a finalidade de apuração das infrações penais e de sua autoria.

2 O JUIZ DAS GARANTIAS NO PLS 156/09 – PL 8045/10

O pensador Hans Kelsen em sua obra intitulada “Teoria Pura do Direito” ensina que:

Para o Estado ser livre de ideologias e liberto de toda metafísica e mística, não pode apoderar-se de sua essência de outro modo senão concebendo essa formação social como um ordenamento coercitivo da conduta humana. Não obstante, o gênese de criação das normas positivadas pelo Estado, outro não pode ser senão para que ele próprio submeta-se a elas, com deveres e direitos (KELSEN, 2003, p. 133).

Não seria possível iniciar uma ampla e justa discussão sobre um tema tão complexo antes de explicitar, mesmo que de forma geral, sobre o atual modelo processual adotado pelo legislador. É sabido que o modelo vigente que rege nossa legislação processual penal é o acusatório, que substituiu o anterior, isto é, o inquisitório.

Segundo o professor Eugênio Pacelli (2013, p. 8-9), a nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado.

No obsoleto Código de Processo Penal, após as inúmeras alterações que sofreu ao longo das décadas de sua existência, vigora, como já mencionado, o sistema acusatório. Nesse sistema, as partes que formam a relação processual têm funções específicas, que são determinadas previamente por lei. Assim, cabe ao Ministério Público a titularidade da ação penal. Ao juiz, a imparcialidade, para que possa julgar a causa levada à sua apreciação e, ao defensor, velar pelos direitos e garantias de seu assistido.

O professor Aury Lopes Júnior assevera que:

Ante o exposto, sabe-se que uma das formas de início da ação penal é através do Inquérito Policial, que é o ato ou efeito de inquirir, isto é, procurar informações sobre algo, colher informações acerca de um fato. A investigação preliminar é realizada pela polícia judiciária, que será exercida pelas autoridades policiais, consoante o art. 4° do Código de Processo Penal (JÚNIOR, 2012, p. 290).

A ordem constitucional, ao instituir a organização do poder judiciário, em seu Capítulo III do Título IV, estabelece de forma pormenorizada as funções, atribuições e prerrogativas de cada parte na relação processual, além dos órgãos previamente instituídos, onde se processa as relações processuais.

O pensador Hans Kelsen (2003, p. 135) previa que assim que o ordenamento jurídico superou o estágio de completa descentralização, assim que se formaram, para a produção e execução das normas jurídicas, e, em especial, para a consumação de atos coercitivos, órgãos que desenvolvem funções de acordo com a divisão do trabalho.

O PLS 156/09 – PL 8045/10 cria a figura do juiz das garantias e juntamente com a sua criação, celeumas e acentuadas discussões. Ora, se antes mesmo de seu real nascimento já se estabeleceu tantas polêmicas e debates, seja pela sua finalidade, a dificuldade da sua implementação, a supressão de competências, dentre outros questionamentos levantados, quando estiver a cabo o PLS 156/09 – PL 8045/10, não será diferente. Assim, nesse momento, ainda embrionário, cabe ao legislador, ficar atento às discussões levantadas para, se julgar necessário, fazer as alterações antes da aprovação do PLS, evitando assim, transtornos ainda maiores.

Conforme leciona o professor Aury Lopes Júnior:

O alheamento é uma importante garantia de imparcialidade e, apesar de existirem alguns dispositivos que permitam a atuação de ofício, os juízes devem condicionar sua atuação à prévia invocação do Ministério Público, isso, consoante o professor Aury Lopes Júnior. Continuando a explanação, aduz que o juiz não orienta a investigação policial e tampouco presencia seus atos, mantendo uma postura totalmente supra partes e alheia à atividade policial (JÚNIOR, 2012, p. 294).

O professor Maurício Zanoide de Moraes (2010, p. 21-23) aduz que a figura do juiz das garantias não será nada mais que um magistrado, cujo âmbito de atuação é assegurar os direitos e as garantias fundamentais ao cidadão na fase de investigação criminal.

Contudo, data venia, tais direitos já são assegurados atualmente ou, pelos menos, existem mecanismos que visem assegurá-los. Por exemplo, a súmula vinculante n° 14 do STF “assegura ao defensor, no âmbito de interesse do representado, ter amplo acesso aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Sendo essa, uma forma de assegurar, na fase inquisitorial, os direitos e garantias do cidadão inserido no texto constitucional.

3 FINALIDADES DA CRIAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS

Segundo o professor Maurício Zanoide de Moraes:

A finalidade da criação do juiz das garantias não é apenas atender o cidadão na proteção de seus direitos na investigação e dos órgãos de persecução em ter um juiz mais afeito à realidade de uma investigação criminal, mas, a mais importante finalidade de sua criação está em garantir que o juiz da causa não atue contaminado por sua atuação anterior (em fase investigativa). Evitando assim, comprometimento do resultado devido à vinculação psicológica do magistrado, que atuou na fase investigativa. Essa vinculação psicológica se dá, por exemplo, quando o magistrado aprecia um pedido de medida cautelar, homologa o auto de prisão em flagrante e, a mais bizarra das atuações, é a produção de prova de ofício (DE MORAES, 2010, p. 21-22).

Contudo, essa posição não é a dominante, o professor Aury Lopes assevera que:

O perfil ideal do juiz não é como investigador ou instrutor, mas como controlador da legalidade e garantidor do respeito aos direitos fundamentais do sujeito passivo. Não obstante, ensina ainda que a efetividade da proteção está em grande parte pendente de atividade jurisdicional, principal responsável por conceder ou negar a tutela dos direitos fundamentais. Como corolário, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição (JÚNIOR, 2012, p. 292).

Assim, é possível visualizar com maior nitidez as funções estritamente delimitadas de cada parte que atua na relação processual, desde o seu nascimento até a sua formação e finalização.

Ao analisar a exposição de motivos do Anteprojeto (PLS 156/09 – PL 8045/10), verifica-se aquilo que era latente, tornar-se patente, ou seja, que o nosso atual Código de Processo Penal, ainda infectado pelo nazifacismo, anda em completo descompasso com a Constituição Federal. O corolário lógico, o cidadão, que em tese, violou algum tipo incriminador previsto na legislação penal, sofre as terríveis influências desse sistema obsoleto, que caminha na contramão da nossa Constituição.

Destarte, torna-se inviável falar em princípio da dignidade da pessoa humana, devido processo legal, Estado democrático e tão pouco de direito. Os resquícios ditatoriais que assombram todo ordenamento jurídico, antes camuflado apenas pelas críticas daqueles que expelem no suor, gotas de sangue, pela defesa dos Direitos Humanos, com a exposição de motivos do PLS 156/09 – PL 8045/10, não resta dúvidas, até mesmo aqueles, defensores de discursos autoritários e ditatórios, camuflados por uma legalidade que inexiste em nosso país.

A Exposição de Motivos do PLS 156/09 – PL 8045/10 fala em proporcionar segurança aos jurisdicionados, para que possam exercer seus direitos e assegurar a eles, sendo vítimas ou imputados e aos participantes da cena processual em geral, a satisfação de suas expectativas, sendo observado o limite de legalidade da ação estatal.

Falava-se que a confissão era a rainha das provas, assim cristalino está que o Estado ainda permanece atrelado a uma mentalidade polialesca, oriunda do regime nazifascista. Destarte, aqueles que são jogados nas masmorras, tendo negado sua própria identidade de ser pessoa humana, sofrem as consequências e, ainda, como músicas suaves e doces aos ouvidos, são impelidos a ouvir os discursos daqueles que se dizem legalistas e a acreditar que vivemos em um Estado Democrático e de Direito.

Ainda, conforme a exposição de motivos do PLS 156/09 – PL 8045/10, o direito processual penal precisa ser refundado, e para tanto, exige-se uma luta pela inserção do sistema acusatório, sendo uma das formas, a alvissareira idealização do juiz das garantias. Data venia, com todos os méritos aos juristas que tanto trabalharam e ainda trabalham para reforma do nosso atual Código de Processo Penal, a nosso sentir, a idealização de tal figura como o principal mecanismo para assegurar a efetividade do sistema acusatório e garantir aos cidadãos os direitos previstos no texto constitucional, não possui bases sólidas. Assim, quando surgirem as problemáticas, seja na fase de implementação, seja na de adaptação ou, até mesmo, na concretização do exercício dessa nova figura, a probabilidade de sepultamento desta, será iminente. Portanto, cabe ao legislador, pormenorizada análise de viabilidade, observando, claro, o disposto na constituição, para inserção dessa figura e, aos expectadores, não acreditar todas suas expectativas nela.

3 COMPETÊNCIAS DO JUIZ DAS GARANTIAS

Antes de iniciar a dialética acerca da competência do juiz das garantias, é necessário assentar as funções do Poder Judiciário.

 O professor Alexandre de Moraes ensina que:

O Estado exerce a função de julgar, ou seja, a função jurisdicional, consistente na imposição da validade do ordenamento jurídico, de forma coativa, sempre que houver necessidade. Conclui-se que, dessa forma, a função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses (DE MORAES, 2003, p. 416-417).

A competência do juiz das garantias está inserida no artigo 14, caput do PLS 156/09 – PL 8045/10, que diz o seguinte: o magistrado será responsável pelo controle de legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos individuais, cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do poder Judiciário.

Pelo exposto, entende-se que competirá ao juiz das garantias o controle da fase inquisitorial, ou seja, se a investigação criminal ocorreu conforme os preceitos constitucionais e legais, sem violações e abusos, além de velar pelos direitos individuais do suspeito/indiciado, no que diz respeito à sua integridade física, moral, à identidade das pessoas que efetuaram sua prisão e por qual motivo, dentre outros.

Até então, sem nenhuma novidade, em razão de todas essas formalidades já estarem previstas no texto constitucional e serem fiscalizadas pelo Ministério Público, quando atua como custus legis e a sua aplicação competir ao Delegado de Polícia.

Superada essa primeira fase, agora, necessário destacar dois pontos substanciais para compreensão dessa nova figura. O primeiro é que a atividade desse magistrado é garantir os direitos aos cidadãos na fase investigativa. O segundo visa assegurar melhor imparcialidade do juiz da fase judicial, isso em razão de que o magistrado que atuou na fase inquisitorial estará vedado de atuar na judicial.

De acordo com o PLS 156/09 – PL 8045/10, o exercício do juiz garantidor inicia-se no momento da investigação criminal e termina com o oferecimento da denúncia pelo órgão do Ministério Público.

Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Direito Penal (IBDP), encaminhou propostas de melhoria dessas competências ao Congresso Nacional. A primeira proposta é que o juiz garantidor deve ser informado não somente da instauração de inquéritos policiais, como previsto no PLS 156/09 – PL 8045/10, mas de todas as investigações criminais. Em segundo lugar, que a competência do magistrado garantidor deve ser encerrada não com oferecimento da denúncia, mas com o seu recebimento. Assim, o juiz da causa recebe os autos com a ação penal instaurada.

É importante ressaltar que se o objetivo da figura do juiz garantidor na fase investigativa é assegurar melhor imparcialidade do magistrado da causa (data venia), em nosso sentir, esse não parecer ser o melhor método, tendo em vista que ao apreciar os autos, o juiz que vai julgar o caso poderá ter a mesma “parcialidade” atual. Para visualizar melhor esta colocação, basta pensar na decisão de pronúncia proferida pelo juiz sumariante.

O titular da ação penal, quando está na posse de uma sentença que pronuncia o acusado a ser julgado pelo tribunal do júri, exerce significativa influência nos jurados, tendo em vista que, em tese, o acusado já foi “condenado” anteriormente (procedimento alterado pela Lei. 11689/2008, art. 478, I do CPP).

Por essa razão, não estaria, pelo menos sob tais argumentos, resguardada melhor a imparcialidade do juiz da causa, pois ao receber os autos e verificar que o acusado foi indiciado pela autoridade policial, teve a prisão em flagrante convertida em preventiva, e por fim, a denúncia que lhe foi imputada foi recebida, estará convencido, o juiz da causa, que, até aquele momento, aquele cidadão é o principal autor de ter praticado o crime que lhe é imputado.

Além disso, atualmente, o poder judiciário, a todo custo, vela pela judicialização das provas produzidas na fase inquisitorial. Com esse novo modelo, as provas produzidas na fase preliminar, provavelmente, terá maior credibilidade, em razão de terem sido produzidas sob o escudo do juiz das garantias.

Existem duas críticas correntes com relação à criação do juiz das garantias. A primeira estrutura sua tese em que já existe um juiz que garante os direitos aos cidadãos, por esse motivo é desnecessário sua criação.

Embora sucinta a crítica, merece aplausos. Na verdade, como abordado no parágrafo anterior, estaria apenas retirando competência de outras figuras, como do Delegado de Polícia e do próprio juiz da causa, atribuindo essa competência a essa nova figura, para depois os autos voltarem com a relação processual já instaurada para o juiz da causa. Como se este juiz não fosse ter amplo contato com todas as provas e atos processuais produzidos na fase inquisitorial. Portanto, a partir desse ponto de vista e de outros, faz-se desnecessário a criação dessa nova figura.

A segunda crítica corrente é que o poder judiciário, tanto na esfera estadual como na federal, não teria condições orçamentárias para arcar com as despesas. Ponto crucial a ser abordado. Sabe-se que o país, em todos os aspectos, tem passado por dificuldades orçamentárias, o que não é diferente no âmbito judicial.

Os Tribunais de Justiça tem cortado os gastos das mais variadas formas possíveis, sendo uma delas, na contratação de serventuários. Sabe-se que o poder Judiciário está sobrecarregado de tantos processos e não possui pessoal o suficiente para prestar um serviço célere ao jurisdicionado, inclusive com a observância dos princípios constitucionais da celeridade e eficiência. Isso sem mencionar as inúmeras reivindicações dos serventuários da justiça por melhores condições de trabalho.

Ora, se a estrutura atual apresenta sérias fragilidades, como criar uma nova estrutura sem antes estruturar a existente?

O PLS 156/09 – PL 8045/10 prevê no art. 701, Livro das Disposições Transitórias e Finais, que a implementação do juiz das garantias será após três anos de vacatio legis e seis anos nas comarcas onde houver apenas um juiz. Contudo, mesmo com esse significativo prazo para estruturação e adaptação não se justifica, uma vez que o sistema atual está precário e totalmente desestruturado.

Assim, os jurisdicionados têm sofrido os efeitos dessas desestruturas constantemente. Para isso, basta pensar no tempo previsto para se chegar a uma decisão pelo poder Judiciário. Percebe-se que são anos de espera, tanto é que o Brasil já foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional – TPI por não prestar jurisdição ao cidadão. Será que ainda assim, mesmo com toda essa desestrutura, é possível pensar em inserir mais uma figura judicial, a qual irá acarretar uma carga orçamentária absurda para o poder Judiciário e consequentemente para o jurisdicionado? Pensa-se que não.

4 – O JUIZ DAS GARANTIAS E O SISTEMA ACUSATÓRIO

O doutrinador Eugênio Pacelli assevera que:

Enquanto a legislação codificada pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da periculosidade do agente, o texto constitucional instituiu um sistema de amplas garantias individuais, a começar pela afirmação da situação jurídica de que ainda não tiver conhecida a sua responsabilidade penal por sentença condenatória passada em julgado (OLIVEIRA, 2013, p. 8).

Hans Kelsen, em sua obra Teoria Pura do Direito assevera que:

A norma jurídica fundamental, sob a posição de que ela vale, então vale também o ordenamento jurídico sob o qual se repousa. Para ele, na norma fundamental acha-se em última análise, o significado normativo de todas as situações de fato constituídas pelo ordenamento jurídico. Assim, somente sob a suposição da norma fundamental pode o material empírico ser interpretado como direito, isto é, um sistema de normas jurídicas (KELSEN, 2003, p. 98).

Para Kelsen (2003), toda norma do ordenamento jurídico de um Estado deve estar sujeita a constituição, que é a norma maior.

O sistema acusatório, atualmente adotado por nossa jovem constituição, deve servir de base para persecução e aplicação da norma material, tendo em vista os dizeres do doutrinador Eugênio Pacelli, que o texto constitucional instituiu um sistema de amplas garantias constitucionais. E, na visão de Kelsen, esse sistema terá validade apenas se estiver sob a égide da Constituição Federal.

Paulo Rangel assevera sobre o sistema acusatório que:

O sistema acusatório, antítese do inquisitivo, tem nítida separação do funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo, segundo nossa posição, todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à sua personalidade, devendo defender-se utilizando todos os meios e recursos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu (RANGEL, 2012, p. 49).

Sabe-se que o Inquérito Policial é destinado ao órgão de acusação, para que este forme sua opinio delicti, e assim, possa oferecer ou não a denúncia. Portanto, sob essa premissa é possível dizer que não cabe à presença de um magistrado em tal fase. Até porque, o atual Código de Processo Penal, em seu art. 155, caput, aduz que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, salvo as exceções.

Nesse mesmo sentido, reforça Eugênio Pacelli, quando aduz que:

Não cabe ao juiz tutelar à qualidade da investigação, sobretudo porque sobre ela, ressalvadas determinadas provas urgentes, não se exercerá jurisdição. Continua dizendo que o conhecimento judicial acerca do material probatório deve ser função tipicamente jurisdicional. Antes, a coleta de material probatório ou de convencimento, deve interessar àquele responsável pelo ajuizamento ou não da ação penal, jamais àquele que a julgará, sob patente violação do sistema acusatório (OLIVEIRA, 2013, p. 12).

Posto isso, pode-se analisar se a criação da figura do juiz das garantias não viola o sistema acusatório atual. Como bem disse Kelsen (2003), toda norma do ordenamento jurídico deve estar sujeita à constituição, que é a norma maior. Ora, se não há previsão constitucional para a criação de tal figura, é inequívoco dizer que sua criação violaria a constituição, consequentemente o sistema acusatório.

Kelsen (2003, p. 136), ao falar sobre o Estado como aparelho de órgãos funcionais, diz que com o desenvolvimento de um sistema de órgãos, que realizam funções variadas, o conceito de órgão estatal coloca-se em sentido mais estrito, como um órgão juridicamente qualificado, específico, funcional.

Isso quer dizer, que para o Estado fazer sua gestão, é necessário que se crie órgãos específicos, com atribuições peculiares a sua função jurisdicional. Conclui-se então que, não sendo previsto no texto constitucional a figura do juiz das garantias, e este exercendo papel contrário aos preceitos constitucionais (contraditório, ampla defesa, publicidade), torna ilegal sua criação, não somente, mas nessa situação, inviável e desnecessário.

Portanto, à luz da Constituição Federal e do sistema acusatório, não seria legal a criação do juiz das garantias, sendo também, desnecessário, tendo em vista que já existem figuras específicas estabelecidas no texto constitucional para exercerem as funções que seriam atribuídas a essa nova figura.

5 DA ATUAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL

 A Lei 12.830 de 20 de junho de 2013 dispõe sobre o Inquérito Policial que, conforme seu disposto, a investigação criminal será conduzida pelo Delegado de Polícia. O art. 1° prevê que a investigação criminal é exercida pela autoridade policial. Consoante o art. 2°,§ 1°, ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe à condução da investigação criminal, por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Pelo exposto é possível verificar que a fase investigativa é dirigida pelo Delegado de Polícia, o qual tem atribuições específicas e delimitadas, ou seja, seu papel está previamente estabelecido pela regra especial. É necessário ressaltar que essa Lei regulamenta a atividade da autoridade policial, atribuindo-lhe funções específica, sendo para tanto, necessário ser bacharel em direito e aprovado em concurso público.

Para Kelsen (2003, p. 97), a norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo não é, em compensação, nada mais que uma regra fundamental, conforme a qual é produzida as normas do ordenamento jurídico, ou seja, ela é o ponto de partida de um procedimento, para criação do ordenamento jurídico.

Neste diapasão, a nossa atual constituição prevê em seu art. 144, § 4° que as policias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incubem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares.

De modo não diferente, está previsto no Código de Processo Penal, a partir do art. 4° e seg. como será conduzido o inquérito policial e a autoridade que compete presidi-lo.

O doutrinador Eugênio Pacelli ensina que:

A fase de investigação, portanto, em regra promovida pela polícia judiciária, tem natureza administrativa, sendo realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal.  Por isso fala-se em fase pré-processual, tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois, à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação. Conclui-se que o juiz, nessa fase deve permanecer absolutamente alheio à qualidade da prova em uso, somente intervindo para tutelar violação ou ameaça de lesões a direitos e garantias individuais das partes (OLIVEIRA, 2013, p. 53-54).

Por todo exposto, entende-se que os envolvidos na fase investigativa possuem papeis previamente definidos com funções específicas, com atuação restrita, para que não pratique atos que não sejam de sua competência.

Desta forma, não se pode admitir a criação de uma nova figura com o objetivo de atuar em determinada área que já é preenchida por uma figura constitucionalmente estabelecida. Se assim for, impossível seria negar a violação à norma fundamental, além de várias outras consequências negativas, como por exemplo, a carga orçamentária.

Portanto, além de carecer de fundamentação lógico-jurídica a criação do juiz das garantias, não existe um papel a que ele possa exercer se vier a ser criado, pois tal papel já é plenamente ocupado por autoridade competente.

Não obstante, a fase investigativa não pode ser confundida com a judicial, sendo o objetivo específico daquela, a apuração de infrações penais e sua autoria, conforme prevê o texto constitucional e desta, a fiscalização quanto ao que foi apurado, no que diz respeito à legalidade dos atos praticados e a decisão sobre a infração apurada.

6 CONCLUSÃO

A garantia plena da imparcialidade do juiz que vai julgar a causa, assegurar direitos e garantias previstas no texto constitucional e tornar a investigação mais eficiente deveriam ser objetivos já alcançados, pois a sua previsão acompanha o nascimento da nossa atual constituição.

A imparcialidade tornou-se um imperativo para que se possa falar em sistema acusatório. A doutrina mais moderna ensina que um dos pilares do princípio do juiz natural, no que diz respeito à vedação de juiz ou tribunal de exceção, reside exatamente na imparcialidade da jurisdição.

Os defensores da criação do juiz das garantias asseveram que com a separação na atuação judicial (do juiz da causa), conforme projetado, garante-se de forma mais efetiva o devido processo legal, o contraditório, o direito à prova e a presunção de inocência. Isso, porque se criou um sistema que assegura maior imparcialidade judicial e, com isso, uma maior isenção psicológica do magistrado no momento de julgar a causa.

Todavia, data venia, tais direitos e garantias já são asseguradas pelo texto constitucional, assim como existem mecanismos e personagens específicos para fazer-valer esses direitos e garantias. O juiz das garantias não pode ser visto como um super-herói que irá resolver os problemas da persecução penal. As expectativas que tem sido creditada a ele deveriam estar voltadas para a aplicação prática dos institutos já existentes.

Se o devido processo legal não é respeitado, se o juiz não julga com imparcialidade e se os direitos e garantias assegurados pelo texto constitucional não são efetivados, tampouco será sob a criação de uma nova figura. Para tanto, deve-se cumprir, ou melhor, fazer-cumprir as normas existentes, com minudenciada observação do devido processo legal, a imparcialidade da jurisdição e, sobretudo, o devido respeito ao sistema acusatório.

REFERÊNCIAS

Moraes, Maurício Zanoide de. Quem tem medo do juiz das garantias. IBCCRIM, Instituto brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, ano 18, ed. especial, p. 21-23, agosto. 2010.

Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 6° ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2003.

Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. 3° ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

Júnior, Aury Lopes. Direito processual penal. 9° ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

De Oliveira, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 17° ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2013.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 20ª ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2012.



[1] Graduado em Direito pela faculdade de Minas Gerais – Famig. Pós graduando pela Prontifica Universidade Católica – PUC/MG em Ciências Penais.

[2] Doutorando em Direito Processual pela Prontifica Universidade Católica – PUC/MG. Professor de Processo Penal na faculdade de Minas Gerais – Famig.

Como citar e referenciar este artigo:
HERCULANO, Leandro Camargos; PASSOS, Fábio Presoti. O juiz das garantias no projeto de reforma do Código de Processo Penal, violação ao sistema acusatório e supressão de competência da Autoridade Policial. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/o-juiz-das-garantias-no-projeto-de-reforma-do-codigo-de-processo-penal-violacao-ao-sistema-acusatorio-e-supressao-de-competencia-da-autoridade-policial/ Acesso em: 28 mar. 2024