Processo Penal

O Conselho Nacional de Justiça, O Controle Externo do Poder Judiciário e a Independência de Julgar

O Conselho Nacional de Justiça, O Controle Externo do Poder Judiciário e a Independência de Julgar[1]

Ao julgarem o Habeas Corpus nº. 123221, os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, concederam a ordem para absolver um condenado pelo crime de tráfico de entorpecentes flagrado com 1,5 grama de maconha.

Até então tudo bem, pois, no mérito, acertadíssima a decisão.

Ocorre que, a propósito do julgamento, os Ministros decidiram oficiar ao Conselho Nacional de Justiça “para que realize uma avaliação de procedimentos para aplicação da Lei nº.11.434/2006 (Lei de Drogas).”

Segundo o relator, Ministro Gilmar Mendes, em razão da quantidade de casos semelhantes que chegam ao Supremo Tribunal Federal, deveria ser oficiado ao Conselho Nacional de Justiça “no intuito de que avalie a possibilidade de uniformizar os procedimentos de aplicação da Lei 11.343/2006.”

Para ele, a Lei de Drogas, que veio para abrandar a aplicação penal para o usuário e tratar com mais rigor o crime organizado, “está contribuindo densamente para o aumento da população carcerária”. No Brasil, de acordo com o relator, a população carcerária cresceu consideravelmente nos últimos anos. “Tudo indica, associado ao tráfico de drogas”, sustentou.

O relator foi seguido pelos Ministros Cármen Lúcia e Celso de Mello. Para este, “casos de inadequada qualificação jurídica culminam por subverter a finalidade que motivou a edição dessa nova Lei de Drogas“, concordando com o envio da recomendação ao Conselho Nacional de Justiça, tendo em vista as consequências que resultam dessas condenações penais, “como o aumento substancial da população carcerária”.

Assim, por unanimidade, os Ministros concederam a ordem para absolver o acusado e concordaram em encaminhar ao referido órgão do Poder Judiciário cópia do acórdão desse julgamento.

Como se sabe o art. 103-B da Constituição (acrescentado pela Emenda Constitucional nº. 45/2004) criou, em boa hora aliás (pois não há Instituição ou Poder que não possa e deva ser controlada também externamente, como a Polícia o é pelo Ministério Público – art. 129, VII e o Ministério Público pelo Conselho Nacional do Ministério Público – art. 130-A, ambos da Carta Magna), o Conselho Nacional de Justiça composto por quinze membros (nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, com exceção do seu Presidente), com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: o Presidente do Supremo Tribunal Federal, que o preside; um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um juiz federal de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

Conforme a Constituição, compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.

Ademais, ainda segundo a Constituição, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça exercerá a função de Ministro-Corregedor e ficará excluído da distribuição de processos no Tribunal, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura, as seguintes: receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral; requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.

Oficiarão junto ao órgão, o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Eis, portanto, a competência constitucional do Conselho Nacional de Justiça, órgão eminente e exclusivamente de controle externo da atividade judiciária. Controle externo, repita-se! Em sede de controle interno, o Poder Judiciário dispõe das respectivas Corregedorias Gerais.  

Pois bem.

Sem entrar no mérito da decisão (até porque já afirmamos que foi correta), nem discutir o caos que se encontra o sistema carcerário brasileiro (desumano e indigno), o certo é que o julgamento peca, especialmente, do ponto de vista da liberdade de julgar, nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal (lido conforme a Constituição Federal e, portanto, com redução do texto, extraindo-lhe o advérbio “exclusivamente”[2]): “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente (sic) nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” (grifamos).

Ora, estamos sob a égide de uma Constituição em que se preserva o Estado Democrático de Direito e a liberdade do Magistrado de julgar conforme as provas colhidas durante a instrução criminal (com aquelas três ressalvas previstas no art. 155 do Código de Processo Penal e, evidentemente, sem aquele odioso e inconstitucional advérbio de exclusão que fere de morte os princípios e regras do Sistema Acusatório).

É preciso atentar, outrossim, agora com o “auxílio luxuoso” de Eugenio Raul Zaffaroni que es imposible una teoría jurídica destinada a ser aplicada por los operadores judiciales en sus decisiones, sin tener en cuenta lo que pasa en las relaciones reales entre las personas. No se trata de una empresa posible aunque objetable, sino de un emprendimiento tan imposible como hacer medicina sin incorporar los datos fisiológicos (…) Del mismo modo, cuando se pretende construir el derecho penal sin tener en cuenta el comportamiento real de las personas, sus motivaciones, sus relaciones de poder, etc., como ello es imposible, el resultado no es un derecho penal privado de datos sociales, sino construido sobre datos sociales falsos.”[3]

Mutatis mutandis, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu o Mandado de Segurança nº. 32176, anulando decisão do Conselho Nacional do Ministério Público. Na oportunidade, o Ministro Dias Toffoli lembrou outro precedente do Plenário (Mandado de Segurança nº. 28141) no qual o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que não compete a órgão de controle de natureza administrativa declarar a inconstitucionalidade de lei. “O CNMP não tem competência para, com fundamento extraído na Constituição Federal, negar eficácia aos dispositivos da Lei Complementar estadual 72/08”, ressaltou. “Entendo, contudo, que o CNMP pode, no controle de atuação administrativa do MP-CE, analisar o respeito aos princípios da administração pública, entre eles a legalidade, considerados os critérios extraídos da intepretação conferida à Lei 72/2008 pelo parquet estadual, o que não ocorreu nos presentes autos”, concluiu. Aliás, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal denegou o Mandado de Segurança nº. 28408, oportunidade em que a relatora. Ministra Cármen Lúcia, deixou assentado ser “papel do Conselho Nacional do Ministério Público zelar pela autonomia funcional do Ministério Público.

Aliás, muitíssimo a propósito, vejamos, para concluir, o que dispõe o art. 52, I da Lei de Drogas; “(…) a autoridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito ao juízo: relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente; (…).” Tal determinação, evidentemente, serve para o Ministério Público (ao oferecer a denúncia) e ao Juiz (ao proferir a sentença).



[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pelaUniversidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). EspecialistaemProcessopelaUniversidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da AssociaçãoBrasileira de Professores de CiênciasPenais, do InstitutoBrasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concursopúblicoparaingresso na carreira do MinistérioPúblico do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Não esqueçamos, na lição de Eros Roberto Grau, que “o intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a interpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação [Gadamer]”, in Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32.

[3] Derecho Penal: Parte General, p. 23.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Conselho Nacional de Justiça, O Controle Externo do Poder Judiciário e a Independência de Julgar. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/o-conselho-nacional-de-justica-o-controle-externo-do-poder-judiciario-e-a-independencia-de-julgar/ Acesso em: 20 abr. 2024