Processo Penal

O Direito ao Silêncio, a Prisão Preventiva e a Condução Coercitiva do Acusado ao Interrogatório

O Direito ao Silêncio, a Prisão Preventiva e a Condução Coercitiva do Acusado ao Interrogatório[1] 

                                              

Recentemente (na sessão do dia 21 de agosto deste ano de 2014) o Ministro Celso de Mello deferiu pedido de reconsideração formulado nos autos do Habeas Corpus nº. 123043 em favor de M.F.R.J. para suspender cautelarmente, até o final do julgamento da ação, a eficácia do decreto de prisão preventiva determinado contra o acusado. “Entendo que se justifica o acolhimento do pleito em questão”, ressaltou o Ministro Celso de Mello.

Para ele, a ausência do acusado a atos relacionados à instrução probatória, como o interrogatório judicial, não legitima, só por si, a decretação da prisão cautelar do réu. Nesse sentido, ele citou como precedente o julgamento do Supremo no HC 95999. O relator observou que nem mesmo a eventual decretação da revelia do acusado autorizaria a utilização da medida excepcional da privação cautelar da liberdade.

Em sua decisão, o Ministro Celso de Mello enfatizou que, tratando-se de interrogatório judicial, “o não comparecimento do réu não constitui fundamento suficiente para legitimar a decretação da prisão cautelar do acusado, pois este – como se sabe – sequer está obrigado a responder às perguntas formuladas pelo magistrado (artigo 186, caput, Código de Processo Penal), considerado o direito fundamental, que assiste a qualquer pessoa sob persecução penal, de permanecer em silêncio”.

O relator lembrou a jurisprudência da Corte quanto a matéria: HCs 79812, 94016, 94601, 99289, entre outros. Segundo ele, o acusado buscou justificar os motivos de sua ausência ao interrogatório judicial, “não obstante inafastável a sua prerrogativa fundamental de exercer, sem qualquer consequência negativa, o direito ao silêncio (artigo 186, parágrafo único, CPP)”.  Por fim, o Ministro registrou que a afirmação de reiteração criminosa “também não se revela bastante, só por si, para justificar a imposição, ao réu, da privação cautelar de sua liberdade individual, eis que, como não se desconhece, tal fundamento tem sido desautorizado pelo magistério jurisprudencial desta Corte Suprema (HC 93790)”.

Pois bem.

Como se sabe, o art. 260 do Código de Processo Penal permite que em caso de não comparecimento injustificado o acusado poderá ser conduzido coercitivamente. Aliás, a este respeito, modificamos entendimento anterior e hoje pensamos que esta disposição do Código de Processo Penal deve ser interpretada à luz da Constituição, não devendo ser mais admitida a condução coercitiva, pois a conveniência quanto ao comparecimento ao interrogatório deve ser aferida pelo acusado e seu defensor, evitando-se a obrigatoriedade de participar de uma “cerimônia degrante”.[2]

Neste mesmo sentido, o magistério de Delmanto Jr.: “Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já que de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de todo esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judicial, é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar, consistiria inadmissível coação, ainda que indireta. (Inatividade no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pp. 192/193).

Ora, o interrogatório é o meio pelo qual o acusado pode dar ao Juiz criminal a sua versão a respeito dos fatos que lhe foram imputados pelo acusador. Por outro lado, é a oportunidade que possui o Magistrado de conhecer pessoalmente aquele que será julgado pela Justiça criminal; representa, ainda, uma das facetas da ampla defesa (a autodefesa) que se completará com a defesa técnica a ser produzida pelo advogado do acusado (art. 261, parágrafo único do Código de Processo Penal).

Hoje, mais do que antes, aceita-se a ideia de que o interrogatório trata-se, em verdade, de um meio de defesa, sendo esta a posição adotada por doutrinadores do porte de Tourinho Filho, Bento de Faria e Jorge Alberto Romeiro, dentre outros. Frederico Marques, por sua vez, defendia o contrário. Tornaghi, identificando o problema como uma questão de “política processual” diz que o interrogatório “tanto pode ser aproveitado pela lei para servir como método de prova quanto como instrumento de defesa”, sendo, portanto, “meio de prova quando a lei o considera fato probante (factum probans) e é meio de defesa e fonte de prova quando ela entende que ele por si nada prova, mas apenas faz referência ao fato probando e, por isso mesmo, é preciso ir buscar a prova de tudo quanto nele foi dito pelo réu”.[3]

O Código de Processo Penal italiano, nos seus arts. 64 e 65, deixa claro a intenção do legislador italiano em considerar o interrogatório como meio de defesa, pois, salvo em caso de prisão cautelar, “la persona sottoposta alle indagini (…) interviene libera all’interrogatorio”. Ademais, antes de iniciar o interrogatório, o imputado será advertido de seu direito “di non rispondere”, excetuando-se os dados de mera identificação, devendo a autoridade judicial informar ao interrogado a respeito dos elementos de prova que pesam sobre ele, bem como as respectivas fontes, salvo “se non puó derivarne pregiudizio per le indagini”; em seguida o Juiz, “invita la persona ad esporre quanto ritiene utile per la sua difesa e le pone direttamente domande” (grifo nosso).

Para nós é induvidoso o caráter de meio defensivo que possui o interrogatório, nada obstante entendermos, com Tornaghi, que se trata também, a depender do depoimento prestado, de uma fonte de prova e de um meio de prova.  

Como já se disse, o princípio da ampla defesa insculpido no art. 5º., LV da Constituição Federal engloba não somente a defesa técnica, a cargo de um profissional do Direito devidamente habilitado (art. 261, parágrafo único, CPP), como também a denominada autodefesa ou defesa pessoal, esta exercida pelo próprio acusado quando, por exemplo, depõe pessoal e livremente no interrogatório.

Veja-se a respeito a lição de Germano Marques da Silva: “A lei, com efeito, reserva ao arguido, para por ele serem exercidos pessoalmente, certos actos de defesa. É o que acontece, nomeadamente, com o seu interrogatório, quando detido, quer se trate do primeiro interrogatório judicial, quer de interrogado por parte do MP, do direito de ser interrogado na fase da instrução, das declarações sobre os factos da acusação no decurso da audiência e depois de findas as alegações e antes de encerrada a audiência”.[4]

Tratando-se como efetivamente se trata de um modo de defesa pessoal é evidente que o interrogatório não pode ser considerado, tão somente, como meio de prova, nada obstante estar disciplinado no Capítulo III, do Título VII do Código de Processo Penal.

Não esqueçamos que o interrogado tem direito a se calar, na forma do art. 5º., LXIII da Constituição Federal, atentando-se que o seu silêncio não pode causar-lhe qualquer ônus processual ou mácula à sua presumida inocência. Neste sentido, veja-se o parágrafo único do art. 186, segundo o qual “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” Se o silêncio está entre os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente, inconcebível que o seu uso possa trazer qualquer tipo de prejuízo para quem o utilize.

O interrogado tem também o direito indiscutível de não se auto incriminar e o de não fazer prova contra si mesmo, em conformidade com o art. 8º., 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992.

em 1960, Serrano Alves escrevia uma monografia com o título “O Direito de Calar” (Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1960), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Na sua introdução, o autor afirma: “Este livro é uma calorosa mensagem de esperança dirigida aos mártires da truculência policial e do exagerado arbítrio judicial.” Nesta obra, advertia o autor que “há no homem um território indevassável que se chama consciência. Desta, só ele, apenas ele pode dispor. Sua invasão, portanto, ainda que pela autoridade constituída, seja a que pretexto for e por que processo for, é sempre atentado, é sempre ignomínia, é torpe sacrilégio.” (p. 151).”[5]

Ressalte-se, ainda, que a Lei nº. 9.099/95 que criou os Juizados Especiais Criminais, no art. 81, disciplinou que o interrogatório deverá ser realizado após a ouvida da vítima e das testemunhas, afastando-o do início do procedimento e levando-o para o seu final, ou seja, após a colheita de todas as provas, o que veio a reforçar, a nosso ver, o seu caráter de meio de defesa.[6] Por sua vez, os arts. 400, 531, 411 e 474, todos do Código de Processo Penal, põem o interrogatório como último ato da instrução criminal.

Este entendimento prevalece, inclusive, quando se trata de processo na Justiça Militar. Neste sentido, a Ministra Cármen Lúcia deferiu pedido de liminar no Habeas Corpus nº. 122673 para suspender o curso de ação penal que tramita na Justiça Militar contra um soldado acusado de furto. Em exame preliminar, a Ministra ponderou que os elementos dos autos são suficientes para demonstrar plausibilidade do direito alegado, porque a decisão do Superior Tribunal Militar de indeferir o requerimento de realização de interrogatório ao final da instrução, diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Destacou também a existência do perigo da demora, pois havia audiências designadas. “No ponto, a decisão do Superior Tribunal Militar, pela qual foi indeferido pedido de realização de interrogatório do paciente ao final da instrução, parece destoar do entendimento neste Supremo Tribunal“, afirmou a Ministra, ressaltando a aplicação do artigo 400 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 11.719/2008, aos delitos disciplinados pela legislação especial.

Adepto desta tese, Ferrajoli entende que o interrogatório é o melhor paradigma de distinção entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois naquele o interrogatório representava “el comienzo de la guerra forense”, “el primer ataque del fiscal contra el reo para obtener de él, por cualquier medio, la confesión”. Contrariamente, continua o filósofo italiano, no processo acusatório/garantista “informado por la presunción de inocencia, el interrogatorio es el principal medio de defensa y tiene la única función de dar materialmente vida al juicio contradictorio y permitir al imputado refutar la acusación o aducir argumentos para justificarse”.[7]

Destarte, o não comparecimento do réu para o interrogatório (ou mesmo a não apresentação da resposta preliminar), não pode, por si só, servir como justificativa para a decretação da prisão preventiva, tampouco está o Magistrado autorizado a determinar a sua condução coercitiva. Se assim o fizer, estará incidindo no crime de abuso de autoridade, previsto no art. 4º., alíneas “b” e “h”, da Lei nº. 4.898/65, cuja pena varia de detenção de dez dias a seis meses, sem prejuízo das sanções de natureza civil e administrativa (art. 6º. da referida lei).



[1]Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] A propósito, veja-se o texto de Alexandre Duarte Quintans, disponível no endereço: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9198

[3]Hélio Tornaghi, ob. cit. p. 810.

[4]Curso de ProcessoPenal, 3ª. ed., Lisboa: Verbo, vol. I, p. 288.

[5] Sobre o tema, leia-se: “O Dever de Calar e o Direito de Falar”, texto de Adauto Suannes, publicado na Revista Literária de Direito, abril/maio de 2001, além do trabalho de Miguel Reale Júnior e Heloísa Estellita, “Contribuinte não precisa prestar informações que possam lhe prejudicar”, publicado no site www.migalhas.com.br , informativo nº. 671 (07 de maio de 2003).

[6] Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, JuizadosEspeciais Criminais, 3ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 176.

[7] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607. Nada obstante, a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu pedido de liminar em Mandado de Segurança nº. 31475 impetrado por dois integrantes da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, que pretendiam impedir o presidente da comissão de dispensar o depoimento das testemunhas que, mediante habeas corpus, se recusarem a responder as perguntas formuladas pelos membros da comissão. Nesta decisão monocrática, a Ministra Rosa Weber assinalou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não tem acolhido a pretensão de investigados ou testemunhas de estender o direito ao silêncio para englobar um suposto direito ao não comparecimento ao depoimento

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. O Direito ao Silêncio, a Prisão Preventiva e a Condução Coercitiva do Acusado ao Interrogatório. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/o-direito-ao-silencio-a-prisao-preventiva-e-a-conducao-coercitiva-do-acusado-ao-interrogatorio/ Acesso em: 29 mar. 2024