Processo Penal

Os julgamentos da Apelação e do Recurso Especial – O postulado do Devido Processo Legal, os princípios do Juiz Natural e o da Proporcionalidade e o direito de ser julgado sem dilações indevidas

Os julgamentos da Apelação e do Recurso Especial – O postulado do Devido Processo Legal, os princípios do Juiz Natural e o da Proporcionalidade e o direito de ser julgado sem dilações indevidas[1]

INTRODUÇÃO

Decisão do Ministro Joaquim Barbosa suspendeu decisão do Superior Tribunal de Justiça que impedia julgamento de recurso de apelação interposto no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, contra condenação em ação de improbidade administrativa. A determinação foi dada na Suspensão de Liminar nº. 796, ajuizada no Supremo pelo Ministério Público Federal, que pediu a suspensão da decisão do Tribunal Superior que paralisava o processo na instância anterior, até o julgamento de recurso especial que discute a suspeição do Juiz de Direito da 2ª. Vara de Fazenda Pública do Distrito Federal para atuar em processo.

No pedido, o Ministério Público (cumprindo, e muito bem, o seu papel constitucional o que, diga-se de passagem, não é fato comum*) entende que o condenado “não está buscando a revisão de uma decisão desfavorável contra si; pretende, apenas, paralisar o processo para que este não atrapalhe sua pauta política”. E justifica o pedido de Suspensão de Liminar apontando a existência de risco à ordem social e institucional, ao se impedir a análise de apelação por parte do Tribunal local.

Ao analisar o pedido, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou que a matéria em discussão “tem fortes notas constitucionais, dado que se discute a violação dos princípios do juiz natural e do devido processo legal na fixação da competência jurisdicional para conhecer de cautelas excepcionais”. Disse, ainda, que a decisão do Superior Tribunal de Justiça “contraria a expectativa legítima das partes e da população ao desfecho em tempo oportuno da lide, independentemente do resultado, tendo sido uma medida desproporcional, pois na ponderação entre o dever de fornecer a prestação jurisdicional de modo eficaz e em tempo adequado, e a expectativa do exercício de faculdades políticas do indivíduo, deve-se chegar a um resultado que não impeça a marcha processual rumo à prestação jurisdicional”. (idem – será que já os efeitos do pedido de aposentadoria?*). Assim, o Ministro suspendeu decisão do Superior Tribunal de Justiça “para permitir que o Tribunal local examine o recurso de apelação interposto”.

A decisão monocrática acima transcrita foi muito apropriada ao texto constitucional, sem dúvidas. Nela, o Ministro Joaquim Barbosa apontou, acertadamente, violação ao postulado do devido processo legal, aos princípios do Juiz Natural e ao da Proporcionalidade e ao direito do acusado de ser julgado sem dilações indevidas. Aliás, todos, relevantemente, lembrados.   

Pois bem.

O DEVIDO PROCESSO LEGAL

O direito ao devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal no art. 5º., LIV e LV, ao estabelecer que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Além destes dois incisos outros há que também compõem o leque de direitos e garantias judiciais estabelecidas na Carta Magna, a saber: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da casa, da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas e da imagem das pessoas”, “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, “nenhuma pena passará da pessoa do acusado”, “individualização da pena”, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, “inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícitos”, “não culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória[2], “publicidade dos atos processuais”, “direito ao silêncio”, etc.

Todos estes direitos e garantias[3] estão estabelecidos taxativamente no texto constitucional, algumas com ressalvas, evidentemente.

Assim, do ponto de vista da Constituição Federal, o devido processo legal pressupõe o contraditório (paridade de armas, a defesa se pronunciar sempre depois da acusação, etc), a garantia da ampla defesa (defesa técnica e autodefesa), o duplo grau de jurisdição, a proibição das provas ilícitas, etc., etc., etc.

A doutrina é unânime em atribuir a origem da cláusula do devido processo legal ao art. 39 da Magna Carta, outorgada, em 1215, por João Sem-Terra a seus barões, na Inglaterra, identificando-a como a “law of the land”. A expressão “due processes of law” foi usada pela primeira vez por Eduardo III, em 1354, também na Inglaterra. Embora tivesse, originariamente, somente um sentido de luta de um grupo social, os barões, contra o poder do monarca, o alcance do devido processo foi sendo ampliado com o passar do tempo. Trazida para as colônias da América do Norte, embora não referida na Constituição dos Estados Unidos, foi consagrada nas Emendas V e XIV. Nesse país, o devido processo evoluiu de um caráter meramente formal para um substancial, ensejando o controle de constitucionalidade de leis, sempre que estas não respeitassem o substantive due process. Além disso, de uma concepção jusnaturalista, que entendia a garantia como um princípio universal, passou-se a uma compreensão do devido processo como um princípio histórico, consoante os valores sociais vigentes num determinado tempo e lugar.”[4]

Como ensina Alberto Binder, “ninguém pode ficar indiferente em face da efetiva vigência destes direitos e garantias. Eles são o primeiro – e principal – escudo protetor da pessoa humana e o respeito a estas salvaguardas é o que diferencia o Direito – como direito protetor dos homens livres – das ordens próprias dos governos despóticos, por mais que estas sejam redigidas na linguagem das leis.”[5]

Aliás, tudo advém, no fundo no fundo, da reiterada e irritante inobservância do sistema acusatório, sobre o qual escreveu Vitu: Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[6]

Para Afrânio Silva Jardim, “o devido processo legal está vinculado diretamente à depuração do sistema acusatório, mormente quando conjugado com a regra do art. 129, I do novo texto constitucional, bem como com as demais normas que sistematizam e asseguram a independência do Poder Judiciário, em prol de sua imparcialidade e neutralidade[7] na prestação jurisdicional e aquelas outras que, igualmente, tutelam a autonomia e independência funcional dos órgãos do Ministério Público.”[8]

Por outro lado, além do texto constitucional e do Código de Processo Penal, devemos nos referir aos pactos internacionais subscritos e adotados pelo nosso “Direito Positivo”.  Assim, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92, estabelece em suas cláusulas alguns preceitos garantidores e reveladores de um devido processo legal, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

Nestes documentos, verbi gratia, encontramos o direito à não auto-incriminação, à “presunção de inocência”, a um julgamento sem dilações indevidas (ver adiante), à ampla defesa (idem), à publicidade do processo, dentre outras.

É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de direito ou garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º.

Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (…) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico[9]: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.[10]     

Hoje, com a Emenda Constitucional nº. 45, temos uma nova disposição constitucional, contida no art. 5º., § 3º., da Constituição Federal, segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

A ampla defesa compõe-se da defesa técnica e da autodefesa.[11] O defensor exerce a defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa.

A propósito, veja-se a definição do jurista espanhol Miguel Fenech:

Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”.

Para ele, diferencia-se esta auto defesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo”.[12]

Segundo o Ministro Gilmar Mendes, “(…) o direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana. Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (“rechtliches Gehör”) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18). (HC 85294).

Outrossim, não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser, em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito do contraditório, Willis Santiago Guerra Filho afirma: “Daí podermos afirmar que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (grifos no original).[13]

O contraditório, por exemplo, obriga que a defesa fale sempre depois da acusação. Segundo Étienne Vergès, a Corte Européia dos Direitos do Homem (CEDH) “en donne une définition synthétique en considérant que ce principe ´implique la faculté, pour les parties à un procés penal ou civil, de prendre connaissance de toutes pièces ou observations présentées au juge, même par un magistrat indépendant, en vue d´influencer sa décision et de la discuter` (CEDH, 20 févr. 1996, Vermeulen c/ Belgique, D. 1997, som. com. P. 208).”[14] 

Estes são, em linhas gerais, os aspectos mais importantes que envolvem o direito ao devido processo legal. É evidente que há outros e muito mais poderíamos escrever. Não esquecemos, evidentemente, das provas ilícitas, do ne procedat judex ex officio, do princípio da correlação entre acusação e sentença, e tantos outros.

Importante extrairmos esta lição de Bobbio: “Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.”[15] 

Portanto, com Bacigalupo, podemos afirmar que o devido processo “aparece como un conjunto de principios de carácter suprapositivo y supranacional, cuya legitimación es sobre todo histórica, pues proviene de la abolición  del procedimiento inquisitorial, de la tortura como medio de prueba, del sistema de prueba tasada, de la formación de la convicción del juez sobre la base de actas escritas en un procedimiento fuera del control público. Es, como la noción misma de Estado democrático de Derecho, un concepto previo a toda regulación jurídico positiva y una referencia reguladora de la interpretación del Derecho vigente.” (grifo no original).[16]

O JUIZ NATURAL

O Princípio doJuiz Natural, figura consagrada no art. 5º., XXXVII e LIII da Constituição, bem como nos arts. 8º. e 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Segundo José Frederico Marques, o princípio do Juiz Natural “surgiu formulado com esse nome, ao que parece, na Carta Constitucional francesa de 1814. Em França, na Carta de 1830, figurava tal princípio nos arts. 53 e 54, nada obstante Faustin Hélie mostrar “que o princípio do juiz natural remonta aos primeiros textos constitucionais da revolução.” Aliás, para Bluntschli, “a origem do princípio está na regra do direito medieval de que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares.”[17]

Com efeito, o Juiz Natural é aquele constitucional, legal e previamente competente para julgar determinada causa criminal, imparcial e independente, garantindo-se-lhe a inamovibilidade (arts. 95, II e 93, VIII, CF/88), a irredutibilidade de vencimentos (art. 95, III, CF/88) e a vitaliciedade (art. 95, I, CF/88).

A propósito, vejamos a lição de Rogério Lauria Tucci: “O acesso do membro da coletividade à Justiça Criminal reclama, também como garantia inerente ao ‘due processo of law’ especificamente no processo criminal, a pré-constituição do órgão jurisdicional competente, sintetizada, correntemente, na dicção do juiz natural (…) É por isso, aliás, que incidente ao processo penal a máxima ‘tempus criminis regit iudicem‘, deve prevalecer, para o conhecimento e julgamento das causas criminais, a organização judiciária preexistente à prática da infração penal; ao imputado confere (a garantia do juiz natural) a certeza da inadmissibilidade de processamento da causa e julgamento por juiz ou tribunal distinto daquele tido por competente à época da prática da infração penal.[18]

Segundo Edgar Silveira Bueno, o Princípio do Juiz Natural “teve origem, segundo afirma Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, citando Ernst Beling: ‘como limitação do poder absoluto e para aprofundar a distinção entre a administração e a justiça, cuja necessidade já se impunha desde o Iluminismo. Nesse período, frequentemente o rei, o príncipe, enfim, o chefe de Estado, intrometia-se no Judiciário, delegava suas atribuições a outras pessoas e impedia, assim, que o órgão com atribuição específica para julgar se pronunciasse em determinado processo (…) Essa foi, em síntese, a razão fundamental da instituição do princípio do juiz natural ‘. (…) Há dois dispositivos constitucionais que asseguram o respeito ao princípio do juiz natural em nosso texto magno. São as regras do art. 5º, XXXVII e LIII, segundo as quais não se admite no Brasil a existência de juízo ou Tribunal de exceção e impõe-se que as pessoas só podem ser processadas e julgadas pelas autoridades competentes. Esses dispositivos servem para garantir ao indivíduo que nenhum juízo ou tribunal será criado para apurar um delito que já foi praticado.[19]

Ada Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antonio Carlos de Araújo Cintra afirmam que “as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmente competente. Desse modo, a garantia desdobra-se em três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa à discricionariedade de quem quer que seja. (…) Entende-se que as alterações da competência introduzidas pela própria Constituição após a prática do ato de que alguém é acusado não deslocam a competência criminal para o caso concreto, devendo o julgamento ser feito pelo órgão que era competente ao tempo do fato (em matéria penal e processual penal, há extrema preocupação em evitar que o acusado seja surpreendido com modificações posteriores ao momento em que o fato foi praticado).[20]

Não esqueçamos que o Processo Penal é antes de tudo “um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado.” Para Alberto Binder, por meio do Processo Penal “procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa[21]  

Para terminar, e bem a propósito, já afirmou Eugenio Raúl Zaffaroni: “A independência do juiz importa a garantia de que o Magistrado não está submetido às pressões do poderes externos à própria Magistratura, mas também implica a segurança de que o Juiz não sofrerá as pressões dos órgãos colegiados da própria judicatura”.[22] 

O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Note-se, mutatis mutandis, que a Constituição Federal, razoável e proporcionalmente, estabelece regimes penal e processual mais gravosos para autores dos chamados crimes hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ao passo que permite medidas despenalizadoras quando se trata de infração penal de menor potencial ofensivo (cfr. arts. 5º., XLII, XLII e XLIV e 98, I, ambos da Constituição Federal).

Atente-se, com Luiz Flávio Gomes, que “o princípio da proporcionalidade tem base constitucional (é extraído da conjugação de várias normas: arts. 1º., III, 3º., I, 5º., caput, II, XXXV, LIV, etc.) e complementa o princípio da legalidade.[23]

Igualmente, “el principio de proporcionalidad que, como ya indicado, surgió en el Derecho de policía para pasar a impregnar posteriormente todo el Derecho público, ha de observarse también en el Derecho Penal.[24]

Na lição de Sebástian Melo, “esse princípio, mencionado com destaque pelos constitucionalistas, remonta a Aristóteles, que relaciona justiça com proporcionalidade, na medida em que assevera ser o justo uma das espécies do gênero proporcional. Seu conceito de proporcionalidade repudia tanto o excesso quanto a carência. A justiça proporcional, em Ética e Nicômaco é uma espécie de igualdade proporcional, em que cada um deve receber de forma proporcional ao seu mérito. Desta forma, para Aristóteles, a regra será justa quando seguir essa proporção. Nas palavras do filósofo grego em questão, a sua igualdade proporcional representa uma ´conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional´.[25]

Como observa Mariângela Gama de Magalhães Gomes, este princípio “desempenha importante função dentro do ordenamento jurídico, não apenas penal, uma vez que orienta a construção dos tipos incriminadores por meio de uma criteriosa seleção daquelas condutas que merecem uma tutela diferenciada (penal) e das que não a merecem, assim como fundamenta a diferenciação nos tratamentos penais dispensados às diversas modalidades delitivas; além disso, conforme enunciado, constitui importante limite à atividade do legislador penal (e também do seu intérprete), posto que estabelece até que ponto é legítima a intervenção do Estado na liberdade individual dos cidadãos.[26]

Para Pedraz Penalva, “a proporcionalidade é, pois, algo mais que um critério, regra ou elemento técnico de juízo, utilizável para afirmar conseqüências jurídicas: constitui um princípio inerente ao Estado de Direito com plena e necessária operatividade, enquanto sua devida utilização se apresenta como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso em que possam ser lesionados direitos e liberdades fundamentais.[27]

Mas, infelizmente, como afirma Francesco Palazzo, “a influência dos valores constitucionais vem, pouco a pouco, crescendo sempre no arco dos tempos, sem que, no entanto, ainda assim as transformações constitucionais tenham logrado produzir a esperada reforma orgânica do sistema penal, inclusive.”[28]

Canotilho explica que são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.[29]

A CONCLUSÃO CÉLERE DO PROCESSO

Desde logo, observamos que a Emenda Constitucional nº. 45/04 acrescentou mais um inciso ao art. 5º. da Constituição Federal, estabelecendo expressamente que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (LXXVIII).

Aliás, Carl Friedrich Gustav Seidler, um viajantesuiçoalemão que esteve no Brasil entre 1825 e 1826, escreveu em 1837 o seguinte: “Mete-se num buraco de cachorro um cidadão sob a suspeita de haver praticado um crime, e só muito mais tarde se verifica sua culpa”. Depois, afirmava que “entre nós (brasileiros) não se tem amor à justiça.”[30]                       

É verdade que alguns motivos, às vezes, justificam o atraso e impedem a alegação de constrangimento ilegal. Cita-os, exemplificando, Mirabete: processo em que há vários réus envolvidos, necessidade de instauração de incidente de insanidade mental, citação editalícia, etc.[31] A doença do réu ou do seu defensor, a complexidade da causa ou outro motivo de força maior também justificam a demora.

Aliás, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos concebeu a chamada Teoria dos Sete Critérios que podem autorizar, excepcionalmente, a dilação processual; segundo esta teoria, sete situações devem ser observadas para se aferir o excesso prazal, dentre as quais, a complexidade do caso, a conduta processual do acusado e a conduta das autoridades judiciárias.[32]

Lê-se no Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92:

Art. 8º. – Garantias Judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente…” (grifo nosso).

Tal norma (que, evidentemente, não diz respeito apenas aos processos criminais) já se incorporou ao nosso “Direito Positivo”, devendo ser obrigatoriamente observadas pelos nossos juízes e Tribunais, por força do disposto no art. 5º., § 2º., da Constituição Federal.

No mesmo sentido, confira-se a Convenção européia para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, art. 6º., 1.

Na atual Carta Magna espanhola, art. 24, 2, temos:

Asimismo, todos tienen derecho (…) a un proceso público sin dilaciones indebidas y con todas las garantías…” (grifo nosso).

Mesmo a alegação de ser o réu perigoso ou o ilícito por ele praticado ter sido grave, não afasta o constrangimento ilegal pela demora na instrução, pois a duração prolongada do processo “ofende o postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, consubstancia constrangimento ilegal”, conforme afirmou o Ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus nº. 95087).

É isso aí… Como diria Ibrahim Sued “à demain” (aliás quem não se lembra, não procure saber quem o foi, pois, além de não valer a pena, será uma (somente?) insignificância ao meu texto.



[1]  Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Segundo Étienne Vergès, “la présomption d´innocence est un principe qui se rapporte à la charge de la preuve pénale. Sa dimension procédurale semble donc s´imposer au premier abord. Pourtant, depuis la Déclaration des droit de l´homme et du citoyen de 1789, la présomption d´innocence est consacrée au rang des principes fondamentaux consubstantiels du régime démocratique (art. 9º., de la DDHC).” (Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 53).

[3] O direito tem um caráter declaratório, enquanto a garantia tutela a sua efetividade. Ex.: o direito à liberdade vem garantido pelo habeas corpus.

[4] Luciana Russo, “Devido processo legal e direito ao procedimento adequado”, artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, na edição do dia 26 de agosto de 2007.

[5] Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 43, na tradução de Fernando Zani.

[6] Vitu, André, Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13/14.

[7] Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Neste sentido, veja-se a lição de Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como elemento de seu Papel SocialinO Trabalho“, encarte de doutrina da Revista “Trabalho em Revista”, fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista “Trabalho & Doutrina”, nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.

[8] Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. ed., 2001, p. 318.

[9] ApudSylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.

[10]Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel.”  (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116).

[11]A defesa técnica é um direito indispensável e irrenunciável de todo cidadão. Com esse entendimento, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal negaram o Habeas Corpus (HC 102019). Condenado por homicídio, o paciente pretendia anular o processo a que respondeu, alegando que foi impedido de atuar na própria defesa.Depois de tentar, sem sucesso, recursos no Tribunal de Justiça da Paraíba e no Superior Tribunal de Justiça, Rafael recorreu ao Supremo, sempre alegando que qualquer pessoa, independente de inscrição na OAB, tem o direito de defender-se.O ministro Ricardo Lewandowski, relator do habeas, lembrou que a legislação brasileira dispõe que a defesa técnica é indispensável. A autodefesa pode ser exercida quando o réu responde ao interrogatório, quando tem oportunidade de negar as imputações, ou em outras possibilidades oferecidas pelo Código de Processo Penal.Mas, excluído o pedido de habeas corpus, que pode ser impetrado pela própria pessoa, a autodefesa não é permitida no sistema judicial brasileiro, frisou o ministro. Todos os ministros presentes à sessão acompanharam o voto do relator.

[12] Miguel Fenech, Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952,  p. 457.

[13] Introdução ao Direito Processual Constitucional, São Paulo: Síntese, 1999, p. 27.

[14] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 35.

[15] A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 18.

[16] El Debido Proceso Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 13.

[17] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, p. 188, São Paulo: Bookseller, 1998.

[18] Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p.121/123.

[19] O Direito à Defesa na Constituição, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 33.

[20] Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros, 1995, p. 52.

[21] Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25, na tradução de Fernando Zani.

[22] Poder Judiciário, Crise, Acertos e Desacertos, Editora Revista dos Tribunais.

[23] Penas e Medidas Alternativas à Prisão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 66.

[24] Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 29.

[25] “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal”, texto inserto na obra Princípios Penais Constitucionais, Salvador: Editora JusPodivm, 2007, p. 203.

[26] O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 59.

[27] Apud Mariângela Gama de Magalhães Gomes, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 60.

[28] Valores Constitucionais e Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 117.

[29] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., p. 1.151.

[30] Apud Abelardo Romero, “A Origem da Imoralidade no Brasil”, Rio de Janeiro: Conquista, 1967. Nesta obra, este grande jornalista e escritor sergipano informava que já no século XIX “quase todos se queixavam da morosidade da justiça, uma das causas e o principal efeito de seu aviltamento.” (p. 221).  

[31] Ob. cit., p. 476.

[32] Sobre o assunto, conferir “El plazo razonable en el proceso del estado de derecho”, de Daniel Pastor, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, pp. 111 e seguintes.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Os julgamentos da Apelação e do Recurso Especial – O postulado do Devido Processo Legal, os princípios do Juiz Natural e o da Proporcionalidade e o direito de ser julgado sem dilações indevidas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/os-julgamentos-da-apelacao-e-do-recurso-especial-o-postulado-do-devido-processo-legal-os-principios-do-juiz-natural-e-o-da-proporcionalidade-e-o-direito-de-ser-julgado-sem-dilacoes-indevidas/ Acesso em: 28 mar. 2024