Política

O caso Polanski

 

 

29 de setembro de 2009

 

O caso do diretor Roman Polanski, que tinha mandado de prisão de trinta e dois anos atrás, por estupro, e que foi capturado na Suíça, leva-nos a refletir. Um caso a se pensar. Resgato aqui dois momentos do filósofo Luiz Felipe Pondé, publicados ambos na Folha de São Paulo, para nos ajudar a meditar sobre o assunto. Na última segunda feira (No Sinai) o filósofo paulistano fez uma reflexão sobre uma das mais belas datas do calendário judaico, o Dia do Perdão, do qual resgato o seguinte parágrafo:

 

“Deus não precisa perdoar ninguém porque Ele não precisa de ninguém. Este é o personagem. Quando o povo trai a aliança depois de tudo que Ele fez, Ele poderia simplesmente destruir tudo. Fosse Ele apenas justo, o sol pararia de brilhar. A ideia que Deus seja misericordioso nasce do fato que Ele nos criou e é paciente conosco sem precisar sê-lo. Daí a afirmação comum na Bíblia hebraica de que Ele carrega o mundo na palma de Sua mão enquanto nós somos uma sombra que passa”.

 

Justiça e perdão, os dois lados de Deus. Nós, os cristãos, aprendemos que o amor de Deus é imenso, a ponto de Ele mesmo ter-se feito carne para nos salvar dos pecados. O cristianismo leva a idéia do amor divino às últimas conseqüências, que supera a sua justiça.

 

Na segunda feira anterior a crônica versou sobre a problemática do mal, a partir do filme O Anticristo, do cineasta Lars Von Trier. A conclusão surpreendente de Pondé: “O ‘Anticristo’ é um filme sobre o mal. Com o mal não se brinca, respeita-se. Não se faz terapia com o mal, esse alerta aparece inúmeras vezes na boca da personagem feminina, que pressente sua tragédia. É ridícula a arrogância do marido diante do processo que está em curso na alma de sua mulher. O filme se abre com a queda do filho para a morte enquanto o casal goza deliciosamente. Ao final, saberemos que ela, de olhos abertos em meio ao orgasmo, vê o filho saltar para a morte, mas opta pelo orgasmo. Mas o que está de fato acontecendo com ela? Seria um “luto normal”, como seu marido terapeuta supõe? Não, a morte do filho é a consequência e não causa de sua agonia”.

 

O mal e o perdão, os delitos e as penas. O que dizer sobre Polanski? Fui ler sobre os fatos. Uma torpeza praticada pelo diretor. Uma mãe carreirista leva sua filha de 13 anos para o covil dos lobos de Hollywood. Parece o enredo do filme de Lars Von Trier: o cordeiro inocente entregue à sanha do lobo mau. Quando a mãe cruzou aquela porta para deixar à filha, sozinha, com homens adultos e devassos, fez a escolha pelo mal, em troca da incerta e difícil carreira no cinema para a jovem. Consciente ou não, seu comportamento foi muito semelhante ao do personagem do filme. Que pena ela mereceria, a mãe, por ter lançado a filha na senda dos perigos? Uma maior do que a do cineasta, o autor material do crime, quer me parecer. Ao deixar a menina desprotegida ela selou o destino da filha. É inevitável ver aí a maldade do conluio secreto dos dois, contra a menina inocente.

 

Polanski se comportou rigorosamente dentro do esperado. Abusou da inocência da menina e praticou crime bárbaro, tipificado no Código Penal. Foi sentenciado e fugiu. Podemos condená-lo pelo crime, não pela fuga, todavia. A polícia e a Justiça dos EUA falharam miseravelmente ao permitir que escapasse. Não de pode recusar ao apenado o recurso da fuga, sempre esperada. Depois de trinta e dois anos veio a captura tardia. Coloca-se a questão: não teria a pena, por algum critério de Justiça, caducado? Um homem de 76 anos não é o mesmo de 44 anos. Faz sentido a prisão agora? Além dessa interrogação, temos que colocar o fato de que a Justiça estatal, com tentáculos espalhados em escala mundial, precisa ser questionada. Se nos EUA as penas não prescrevem, em outros países, como aqui no Brasil, acontece o contrário. Qual é a Justiça mais justa? De novo, o limite da lei estatal e a proporcionalidade e a racionalidade entre o delito e pena. E a sua temporalidade e tempestividade. E a sua circunscrição geográfica. E seu valor educativo.

 

 Estou convencido de que o poder de polícia estatal, com tentáculos mundiais, não fará bem aos homens, mas apenas o mal. Não se aperfeiçoa os homens como tal e nem se espanta o mal do mundo por essa via, mas se cria um instrumento que elimina as liberdades. É a ditadura policial mundial que se constrói, a meu ver. É uma maneira de consolidar o Governo Mundial, algo muito mais amplo e perigoso do que não se pegar um criminoso qualquer, evadido. Sob esse ponto de vista há que se questionar fortemente a captura do cineasta. Se fazem isso com alguém da estatura de um Polanski, o que estará sendo feito com um homem comum? O peso do Leviatã mundial está caindo sobre as pessoas também na esfera judicial com toda a força.

 

Poderíamos adotar o pessimismo agostiniano, de que todos nós somos culpados e nenhuma pena é grande o bastante para reparar o pecado original. Mas a isso contraponho que a própria existência já é uma prisão e essa vida é, ela própria, um vale de lágrimas, prescindindo do agravamento da exorbitância do Governo Mundial. A Justiça estatal não passa de quimera, quando muito um castigo adicional. Viver é cumprir pena perpétua, a dor de viver não é pequena, o mal está em cada esquina. Já nos chega os Estados particulares e suas Justiças corruptas no âmbito dos poderes nacionais. Poderíamos raciocinar como Santo Agostinho: “Se até Daniel pediu perdão pelos pecados…” Ora, isso pode levar ao cinismo mais grotesco. O fato é que me desagrada enormemente esse crescimento do poder de polícia do Governo Mundial, mais um instrumento de ameaça às liberdades do que propriamente de realização de Justiça. É o que se revela com toda a força e é preciso se entender as conseqüências políticas do fato.

 

Não é um caso comum, o de Polanski. A prática do mal, a justiça, o perdão, está tudo entrelaçado nesse destino trágico. Mas há também a sua dimensão política, que não pode ser esquecida: a relação do cidadão isolado com os poderes constituídos. Há muito deixei de acreditar que a tenhamos qualquer justiça estatal nesse mundo, esse fabricante de injustiças em escala industrial. Temos mesmo é que cuidar para que o Leviatã não seja o instrumento a esmagar a todos nós, a troco da manutenção da ordem. É irrelevante julgar se Polanski deve permanecer culpado; mais relevante ainda é perguntar se o monstro estatal deve ter tanto poder. Eu digo: Não!

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. O caso Polanski. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/o-caso-polanski/ Acesso em: 28 mar. 2024