Política

Dois Centenários

 

 

07/09/2009

 

 

 

“A novidade é que o Brasil não é só litoral

É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul

Tem gente boa espalhada por esse Brasil

Que vai fazer desse lugar um bom país

Uma notícia está chegando lá do interior

Não deu no rádio, no jornal ou na televisão

Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil

Não vai fazer desse lugar um bom país”.

 

Milton Nascimento

 

 

Não tenho como deixar de relacionar o centenário da morte de Euclides da Cunha, autor de OS SERTÕES, completado agora em 2009, com o centenário que se aproxima da cidade de Juazeiro de Norte, no Ceará, minha terra natal, em 2011. Falar de Euclides é falar de Antonio Conselheiro; falar de Juazeiro do Norte é falar do fundador, Padre Cícero Romão Batista. O que liga os dois centenários?

 

Antônio Conselheiro e seus seguidores são as vítimas mais inocentes já sacrificadas no altar da arrogância das elites ilustradas do Litoral, que jamais compreenderam e aceitaram o seu próprio povo sertanejo. É nos sertões que ainda persistia e persiste a herança européia mais genuína, seu catolicismo popular. Os novos senhores da recém fundada República laica, no final do século XIX, não perderam a oportunidade de castigar essa valiosa herança. E o fizeram de forma impiedosa, matando de forma genocida a nossa gente sertaneja, que crime nenhum havia cometido, a não ser o de querer manter seu próprio modo de vida e de não deixar os forasteiros arrogantes do Litoral se assenhorear de suas posses.

 

Antonio Conselheiro foi sacrificado criminosamente, mas morreu valente, lutando ao lado dos bravos sertanejos que jamais se entregaram. Deram uma lição de civismo e de valentia e o inimigo do Litoral, mais numeroso e armado, ganhou, mas não venceu: saiu envilecido do confronto desigual, colecionando muitas derrotas, sobretudo a derrota moral definitiva. A morte de Moreira César é o emblema dessa derrota dos litorâneos. No altar da Pátria os vencedores não passam de assassinos frios e frívolos, que abusaram do próprio poder de Estado.

 

É por isso que Canudos e Antonio Conselheiro têm servido de mote para que fossem escritas grandes obras-primas da literatura, a começar pelo monumental OS SERTÕES, que projetou Euclides da Cunha como autor de estatura mundial. O heroísmo do combate desigual é sempre algo que inspira os grandes artistas. E o grande romance do século XX, GRANDE SERTÃO, VEREDAS, de Guimarães Rosa, não teria sido escrito sem essa epopéia. Riobaldo está em cada um de nós, molda a nossa alma coletiva e certamente esteve nas trincheiras ensangüentadas de Canudos. Do lado certo da luta, claro.

 

Assim teria sido em Juazeiro do Norte, um desfecho trágico, se a figura hercúlea do fundador não tivesse se agigantado e liderado seus conterrâneos contra os agressores litorâneos. Padre Cícero foi mais que sacerdote, foi um santo, o produtor de um milagre político: a fundação de uma cidade que é hoje exemplo para o Brasil.

 

Padre Cícero Romão Batista teria sofrido o mesmo destino de Antonio Conselheiro se não tivesse tido o tirocínio que teve, se não tivesse enfrentado com galhardia os maiorais da Capital, se não ousasse ele mesmo tomar o poder. Sua luta foi gloriosa e dela resultaram frutos inestimáveis, o maior deles a Grande Juazeiro do Norte, que acabou de ser elevada à condição de Região Metropolitana. Essa região é o centro mais próspero do interior do Nordeste, um milagre do Padre Cícero, santificado pela fé e pelo respeito de seus conterrâneos, que jamais se esquecem da sua memória.

 

O Padre Cícero é herdeiro direto da fé de Antonio Conselheiro e de seu carisma. Essa gente sertaneja, que tanto impressionou Euclides da Cunha, é que edificou a grande cidade, fazendo dela uma metrópole. Juazeiro é a nova Canudos que deu certo. Um milagre na terra dos Cariris. É por isso que os naturais do lugar têm tanto orgulho de suas origens: há uma cultura, há uma história, há uma saga, há um gesto heróico originário que enfrentou as potestades arrogantes. Elas negavam que essa gente pudesse fazer a sua própria história, a seu modo. Mas eles fizeram o seu próprio exercício de liberdade, confirmando a fé em Cristo e o respeito às instituições em torno da Igreja Católica.

 

As gentes do Litoral torcem o nariz para as manifestações da fé popular. Louvar o Padre Cícero? Louvar Nossa Senhora das Dores? Ora, que coisa brega, haverão de dizer. É que nunca ouviram o canto de uma romaria, o louvor do povo sertanejo em plena devoção. Essa gente litorânea não tem como saber o que é uma fé simples e genuína, que moveu o verde vale no rumo da grande metrópole que hoje é. Essa gente sertaneja, a minha gente, é o Brasil em sua inteireza, o Brasil mais brasileiro, o rizoma que jaz profundo, dando a seiva da nossa própria nacionalidade.

 

Hoje Juazeiro do Norte, depois de cem anos, é um realidade pujante. Lembro-me dos meus tempos de infância, das homilias do padre Murilo, das missas dominicais nos Franciscanos, das festas religiosas na Matriz de Nossa Senhora das Dores, das paradas de 7 de setembro… Como esquecer? Tudo forma uma unidade, o amor à terra natal, a religiosidade, o civismo. Desde então a cidade seguiu sua vocação metropolitana, obra dos romeiros, essa gente obreira, operosa. Aos pés da estátua do fundador a mancha urbana se multiplicou e o verde vale abriga agora uma população considerável. Um milagre. Ao chegar o 7 de Setembro a alma vibra em tom mais forte com as imagens imorredouras.

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. Dois Centenários. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/dois-centenarios/ Acesso em: 28 mar. 2024