Política

A Questão da Democracia

 

03 de agosto de 2009

 

O filósofo Denis Rosenfield, no excelente artigo que publicou hoje (“Democracia totalitária”), colocou para os brasileiros um belo tema para meditação. No texto, o filósofo gaúcho compara o que chama de Democracia Totalitária, tomando como exemplo a Venezuela, com a sua forma tradicional, a Democracia Representativa ou Constitucional. Esta última forma é o ideal de democracia que as pessoas sensatas almejam, ao menos como suposto. O que se vê atualmente no mundo, todavia, especialmente na América Latina, é a tendência de líderes carismáticos se apossarem do poder e tender a nele se perpetuar, fazendo do voto plebiscitário uma caricatura de democracia, fato que é a expressão da sua própria corrupção. Chávez copia o roteiro do que foi a ascensão de Hitler ao poder e muita gente parece querer imitá-lo.

 

Rosenfield também registra a sua estranheza pelo fato de que houve uma unânime condenação ao movimento cívico-militar em Honduras, que protegeu sua democracia do demagogo que lá queria implantar os métodos bolivarianos. Esses mesmos países não têm uma palavra de reparo ao que se passa na Venezuela. O silêncio do conjunto das nações em relação a Chávez é mais que suspeito, é cúmplice. Como explicá-lo? Mesmo a América de Barack Obama parece ter se curvado ao totalitarismo caudilhesco do venezuelano.

 

A questão substantiva é: como uma democracia “normal” pode se transformar na sua caricatura totalitária? O que explica a metamorfose? Existem formas híbridas, de transição? Correrá perigo a democracia no mundo, como de fato correu nos anos Trinta do século passado?

 

Não se pode dizer que basta alguém querer ser demagogo, subir em um banquinho diante das câmaras de TV e sair a pregar sandices para se eleger. Poderá até fazê-lo, mas se a sociedade para quem pregar estiver saudável, seu discurso cairá no vazio. Dois atores são relevantes nesse estágio em que a sociedade ainda está sã: o povo, pelo voto, rejeita o demagogo e, quanto este tenta um atalho, a elite também o rejeita, como vimos agora em Honduras. Se, no tempo certo, a Venezuela tivesse feito algo parecido o nosso vizinho do Norte não estaria padecendo agora do mal político que sofre, em larga escala.

 

Aqui cabe recordar o cirúrgico diagnóstico de Denis Rosenfield: “A democracia totalitária volta-se contra os direitos individuais, contra os direitos das pessoas de não se dedicarem aos assuntos políticos, de se contentarem com seus afazeres próprios. Ela se volta contra as instituições por estas interporem um limite ao seu desregramento. Ela se volta contra a propriedade privada tanto no sentido material, de bens, quanto imaterial, de liberdade de escolha. Ela se volta contra todo aquele que reclame pela liberdade. Eis a questão com que nos defrontamos na América Latina. A clareza dos conceitos é uma condição da verdadeira democracia.” O democratismo é deletério e destrutivo e é o portador de grandes sofrimentos para aqueles que estão sob seu jugo.

 

Uma discussão teória mais profunda teria que ser feita, a fim de demonstrar que esse casamento da filosofia política de Thomas Hobbes com Rousseau, que é a Democracia Totalitária, vive latente nas democracias liberais. Os fundamentos de ambas as formas, sua antropologia, são os mesmos. Os abalos sísmicos que as democracias têm sofrido ao longo do tempo têm sua causa nesses fundamentos comuns de ambas as formas de governo. Não é um acidente de percurso, é acontecimento previsível, o flerte com o totalitarismo.

 

Eu entendo que há também as formas intermediárias. Veja-se, por exemplo, a social-democracia européia. Ali, com a taxação consumindo para mais de 40% do PIB e com a regulação da vida privada chegando ao ponto da asfixia, há muito deixou-se de ter uma democracia liberal clássica. Talvez o profundo sofrimento causado pelas Grandes Guerras em solo europeu tenha criado anti-corpos suficientes para segurar ainda os demagogos mais radicais. No entando, com essa estatização progresssiva e continuada de toda a vida privada, não se pode dizer que os valores da liberdade estão sendo cultivados. Ali há um híbrido entre socialismo e economia de mercado e nenhum governante pode chegar ao poder se não se comprometer com a irracional e injusta ordem mantida pela social-democracia. A instituição da propriedade privada ficou prejudicada, seja pelo excesso de taxação, seja pelo excesso de regulação.

 

A eleição de Barack Obama nos EUA, por seu lado, mostra que o mesmo processo se passa na América. Na verdade, não vem de hoje, vem desde o início do século XX, mas a fortuna daquele país permitiu que a expansão continuada do Estado fosse feita de forma mais vagarosa. A eclosão da atual crise econômica, juntamente com a eleição do intervencionista Obama, pode acelerar o processo no rumo do socialismo nas terras do Tio Sam. Os inúmeros bailouts, a tentativia de estatização de todo o sitema de saúde e a consequente expansão desenfreada da dívida pública coloca sérias dúvidas sobre a trajetória salutar da economia, com seus inevitáveis reflexos políticos. Os EUA podem, a qualquer momento, deixar de ser os emissores da moeda de pagamento mundial. A atual recessão pode se arrastar e o desemprego instalado, já altíssimo, não tem data para ser superado. Temos, portanto, um terreno semeado para que aventureiros demagógicos possam vir a ser ouvidos. Resta saber como a sua elite reagiria diante de uma situação hipotética dessas.

 

Cabe a pergunta: será a social-democracia a institucionalização da demagogia? Do roubo? Parece claro que, para alcançar os mesmos objetivos a social-democracia dispensa o demagogo caricato.

 

O Brasil também está em processo de transição. Por muito pouco Lula não alcançou o terceiro mandato e tem fortes condições para fazer o sucessor. Durante seus dois mandatos o sistema jurídico sofreu forte transformação, no rumo do socialismo. Aqui, como na Europa, ninguém se elege se não fizer profissão de fé no socialismo, na manutenção dos privilégios e de fé pública contra a inciativa privada. Nenhum nome da chamada direita política teria chances numa eleição majoritária. Não por acaso o grande garantidor de Cháves no poder tem sido Lula. A identificação política dos dois líderes parece evidente. No Brasil, ao contrário dos EUA, as instituições são mais vuneráveis ao aventureirismo político, colocando uma grande interrogação para o futuro imediato.

 

Meu ponto é que a desordem política, seguindo a linha de Eric Voegelin, não deriva de fatores sazonais, como a crise econômica. Nem mesmo coloco relevo no trabalho diurtuno dos subversivos que apregoam as virtudes do socialismo, na forma proposta por Antonio Grasmsci. Gente adulta e bem formada não daria ouvidos a essa deformação demagógica do processo político. Em última análise, temos que buscar a causa na decadência dos valores espirituais, que são o fundamento último da alma. A descristianização do Ocidente, juntamente com o surgimento do ateísmo militante, em ambos os hemisférios, é que provocaram as rachaduras que possibilitaram o crescimento da tal Democracia Totalitária. Se esta é a causa, outro não poderá ser o remédio: é necessário retormar a tradição, às raízes greco-judaico-cristãs. É preciso colocar novamente os valores maiores de volta aos centros de decisão. Estamos muito longe disso. É o tempo da demagogia.

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

 

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. A Questão da Democracia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/a-questao-da-democracia/ Acesso em: 25 abr. 2024