Política

Entrevista a Bruno Garschagen


1- Por que escolheste Fausto, de Goethe, para, a partir desse livro,
elaborar uma compreensão da modernidade? Gostaria, ainda, que você explicasse o
conceito de modernidade com que está a trabalhar para saber exatamente qual o
período histórico que deseja escrutinar.

Nivaldo- Venho de uma longa jornada de auto-aprendizado que se prolonga
por duas décadas. Minha formação é em ciência econômica e aos 26 anos (estou com 52) eu larguei o curso de
doutoramento que fazia na FGV de São Paulo, por absoluto desalento com o que
estudava. Eu percebia a superficialidade e a insuficiência do que aprendia. O
tédio me varava a alma. Então simplesmente abandonei tudo e fui ler aquilo que
me caiu nas mãos. Lembro perfeitamente que foi o momento em que descobri a obra
de Carl Jung, o psicólogo, de quem logrei ler toda a obra. Jung me abriu as
portas para a realidade da alma, eu que era um ateu militante. E quem lê Jung
se interessa imediatamente por Goethe, de quem li logo a seguir o Fausto. Tudo
isso de forma privada, solitária, na agonia das muitas perguntas sem respostas.
É claro que pouco proveito tirei daquela leitura inicial despreparada. Embora a
tradução da Jenny Segall estivesse disponível, não tínhamos a excelente edição
que a Editora 34 nos colocou à disposição em 2007, ricamente acrescida com as
notas de Marcus Vinícius Mazzari, que permitem a um leitor iniciante se colocar
dentro da obra com grande facilidade, para além da linguagem arcaica e da
construção hermética dos seus versos. Mais recentemente eu venho de um esforço
de leitura de grandes obras, que eu associei a cursos do projeto que Martim
Vasques da Cunha tem oferecido em boa hora para os paulistanos. Fiz um mergulho
na ciência política num curso que chamei de Estado Total, focado essencialmente
em Maquiavel. Depois estudei o conceito de Direito Natural, também oferecido na
forma de curso, que permitiu mostrar em que consiste essencialmente a diferença
entre o que é moderno e o que é a tradição. Mais recentemente enfrentei o Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes, um momento sublime de minha consciência
intelectual. Escolher Goethe para a nova jornada foi um passo lógico e um
antigo anseio que sempre tive, eu que sempre vi no grande escritor alemão um
Everest a ser escalado.

O Fausto é todo simbolismo e uma leitura puramente literária, que será
necessariamente laudatória, pois o livro é um monumento às Letras, não dá conta
de explanar toda sua expressividade. Porque o Fausto é a obra da vida de Goethe
e com ela se confunde. Ali é o grande épico que condensa o problema do mal, seja
no âmbito teológico, seja no âmbito filosófico. A geração de Goethe foi a que
caiu definitivamente no desalento espiritual, com a tragédia do terremoto de
Lisboa, quando ele tinha então sete anos. O pano de fundo são os dois séculos
anteriores, desde Lutero, o cisma cristão, as guerras religiosas, o
Renascimento e o fascínio pela antiguidade clássica (o classicismo é o apogeu
desse processo), em que Aristóteles e Platão deram lugar a Epicuro e Zenon,
principalmente, mas não apenas. A questão do mal é o centro do poema. Harold
Bloom afirma que, junto com Shelley, Goethe é o grande cantor do microcosmo,
simbolizado pelo pentagrama, tão caro às escolas de maçonaria que então
floresciam. Escrito ao longo dos 60 anos de vida adulta do autor, claro que a
perspectiva mudou ao longo do tempo e o desfecho da obra está descolado do seu
corpo porque eu entendo que o Goethe dos últimos anos não era o mesmo da
juventude e maturidade. O final “católico” mostra isso e é incoerente com toda
narrativa. Goethe acabou por destronar o mal e afirmar o bem, num paradoxo
sensacional.

Goethe começou a escrever no final do período gótico e praticamente
fundou o romantismo alemão. Aliás, o romantismo alemão é o único que se tornou
universal, graças ao gigantismo de Goethe, segundo muitos comentadores. Sua
vida rica e seu gênio deram-lhe condições de ver o que se passava à sua volta,
de mergulhar nas loucuras do seu tempo, das sociedades secretas, dos
cultuadores de seitas satânicas, dos destruidores do cristianismo. O modernismo
é tudo isso, é sobretudo a substituição dos valores cristãos por outros,
recuperados da antiguidade sofista ou criados pelo voluntarismo moderno. A
crença no homem, em substituição à crença em Deus, eis o modernismo.

Essencialmente, a diferença da modernidade para a tradição está
demonstrada na concepção do Direito Natural. Para a tradição a fonte do Direito
é transcendente. Para os modernos é imanente. Fundada nesse eixo vem a teoria
política, do Estado, do sistema legal, da representação. Tudo novidade, tudo
estranho ao mundo que era a Europa até o século XV. Goethe, como homem de gênio
que era, no final não endossou as loucuras modernas. Ficou contra a Revolução
Francesa. Era nostálgico da ordem medieval. Embora embarcasse nas besteiras
teóricas que colocavam os germânicos no centro da história européia (o Fausto
relata isso, na união do personagem com a Helena mitológica), ao fim e ao cabo
Goethe curvou-se à importância histórica do cristianismo. O “demônio” do norte
Mefistófeles só faz sentido quando visto de uma perspectiva cristã, meridional.
Não é uma criação autóctone dos germanos. Por detrás desse germanismo temos o
racismo em potência, que irá explodir no século XX.

2- O Iluminismo alemão (Aufklärung) no século XVIII, período de formação
e da publicação da primeira grande obra de Goethe, Os Sofrimentos do Jovem
Werther, é bastante diferente do Iluminismo continental francês, tanto pela
configuração política da Alemanha (divisão em pequenos estados, muitos dos
quais governados por déspotas) quanto pelo aspecto social (inexistência de um
fosso social a distinguir a classe média da Aristocracia, como na França) e
pelo background cultural (a linguagem literária predominante era o Latim, o que
impediu a difusão de obras do Iluminismo continental). Também não havia na
Alemanha, a exemplo da França, o descontentamento popular em relação à religião
e à Igreja, o que fez com que o Iluminismo Alemão não submetesse a religião a
equivalente escrutínio realizado pelos Iluministas franceses. Apesar disso,
Goethe foi uma das figuras de destaque do movimento Sturm und Drang, grupo de
jovens intelectuais alemães inspirados por Rosseau, especificamente na ênfase
na emoção e na reação contra o otimismo.

Você acha que, considerando essa diversidade de estímulos intelectuais
sobre Goethe para a posterior elaboração do Fausto (publicado em 1808, a
primeira parte, e 1832, a segunda parte) e as contingências especificas da
época, é possível encontrar na obra lições para analisar a modernidade? Que
lições são essas?

Nivaldo- O fato de na Alemanha não ter havido coisas como vimos na
Revolução Francesa não minimiza o ativismo anticristão. Ao contrário, houve
todo um esforço para apagar a importância da herança recebida do Império Romano
e, em seu lugar, colocar os supostos grandes
valores alemães. Goethe embarca nessa também, como disse. O poema reflete esse anseio de ligar
diretamente a antiguidade clássica com as raízes germânicas, como se fosse
possível apagar Roma e Cristo da história da Europa. O negócio foi doentio nesse
nível. Por isso entendo que Goethe é uma mistura de profeta hebreu com
Sófocles. Tempestade e Ímpeto dá cor a
essa ânsia juvenil pelo germanismo. Mas o gênio de Goethe estava além do
paroquialismo e do modismo. Werther ainda é o livro mais editado de todos os
tempos. Essa tentativa de segmentar o Iluminismo me desagrada. Ele forma um
todo. Determinou o descenso civilizacional e moral em que estamos metidos.

3- De que forma você avalia a influência de Fausto na cultura européia
nos séculos seguintes ao seu lançamento? O que restou neste século XXI?

Nivaldo- Profunda. Todos os grandes autores tiveram que lê-lo e
copiá-lo, mas nem todos tiveram a sua envergadura e o seu bom senso para
perceber as tolices do tempo. Nietzsche é um deles, levou Goethe às últimas
conseqüências, de forma unilateral. Zaratustra é seu Mefistófeles. Thomas Mann,
autor que quero estudar no segundo semestre, é outro. Nosso Machado de Assis
teve no alemão (e no Cervantes, claro) seu modelo. E Guimarães Rosa, nosso
grande épico, é seu descendente direto. Aliás, explorar Goethe e Thomas Mann
agora é preparação para o projeto que tenho de, em 2012, me dedicar
integralmente ao Grande Sertão, Veredas.

Outro que lia Goethe com devoção era Karl Marx. Especialmente nos
Manuscritos Econômico-filosóficos, mas também em O Capital, está lá o impávido
Goethe. O comunismo é filho de Mefistófeles também. Não custa notar o paradoxo
de que os nazistas também o eram. A ambigüidade da obra de Goethe é
superlativa.

Goethe é o profeta do que veio no século XX. Os versos dedicados a Lord
Byron, na figura do personagem Eufórion, são arrebatadores e, se lidos com
cuidado, refletem a personalidade doentia de Hitler. Aliás, os nazistas
gostavam de ler Goethe, embora seu final lhes desagradasse muitíssimo. Fausto
só entregou a alma quando realizou sua obra de colonização, de domínio da
natureza, o verdadeiro espírito moderno. Para tanto, acontece o sacrifício de
Filemon e Baucis, um dos crimes de sua coleção. Quando vi o vazamento
radioativo de Fukushima, causado por um terremoto, não pude deixar de me
lembrar vivamente dessa passagem. O agricultor japonês, cuja família tem
cultivado uma propriedade desde o século XVI e que está impedido e vender sua
produção por causa do acidente, encarnou de forma emblemática o destino do
homem sacrificado pelas coisas da modernidade.

4- O que você verdadeiramente espera dos alunos ao ministrar um curso
como esse?

Nivaldo- Curiosidade intelectual, abertura da alma para os fossos
profundos da nossa psique e da nossa história, anseio para descobrir o que é
essencial em uma obra de grande envergadura universal. O curso é um convite a
iniciar uma leitura madura do Fausto. Fiquei muito contente por já ver
matriculados no curso inúmeros alunos que me têm acompanhado desde os cursos
anteriores. É gratificante e me permitirá dar o sentido de continuidade ao
esforço de apreender as coisas de nosso tempo.

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente
em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias
coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento,
escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor
da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

http://www.nivaldocordeiro.net/

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. Entrevista a Bruno Garschagen. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/entrevista-a-bruno-garschagen/ Acesso em: 29 mar. 2024