Política

Goethe e Jó

 

05/02/2011

 

O poema-tragédia Fausto, de Goethe, é peça única na literatura universal. Na forma de teatro, não foi feito para os palcos, em face do seu tamanho. Impossível encenar. O estilo literário está contido na sua mensagem, daí a necessidade de ser escrito como peça teatral, onde o próprio diretor vira personagem. O poema é uma síntese poética da filosofia do autor. Aqui quero explorar o paralelo entre o Jó bíblico e o personagem Fausto. É claro que Goethe inspirou-se no antiguíssimo livro sapiencial judaico para sua criação, mas seu personagem nada tem em comum com Jó.

 

O pano de fundo é a questão do bem e do mal e também da redenção. Afinal, Deus é amor ou nele também está contido o seu oposto? O que é que determina a salvação e em que ela consiste? Todo Fausto é uma coleção de símbolos que trata desses assuntos. Vemos que ele desposa a tese do dualismo e vê Deus como uma encarnação de Abraxas.

 

Se olharmos Jó com atenção veremos que ele é um santo incorruptível. Deus, ao permitir que Satanás o tente, sabia desde sempre que seu servo não cederia a qualquer sofrimento ou tentação. Satanás perdeu a aposta com Deus e ao fim e ao cabo Jó foi recompensado com ganho em tudo o que perdeu. A salvação de Jó estava em Deus ele mesmo, que sabia que Jó não se dobraria ao mal, acontecesse o que fosse. Portanto, o pressuposto de sua salvação é sua integridade moral. Não é à toa que Deus o tinha como um dos seus preferidos. Podemos ler em Jó 1,1: “Havia, na terra de Hus, um homem chamado Jó, íntegro, reto, que temia a Deus e fugia do mal”.

 

Jó fugia do mal, mas este o procurou e passou a determinar a sua vida, a sua desgraça. Jó não quis e nem desejou e nem autorizou a provação melíflua. A ação de Satanás no livro é unilateral. Esse é um dos livros mais duros de ser lidos na Bíblia. O justo é posto a todas as provas, contrariando o senso ordinário de justiça.

 

No poema de Goethe nada disso acontece. Fausto é um moderno intelectual enfastiado com o mundo que o cerca e pretende transformá-lo. Ambicioso e hedonista, Fausto está pronto para praticar o mal. Essa é a brecha que Mefistófeles usa para se aproximar. O pecado maior de Fausto é ter abraçado como verdadeira a lei das analogias, tão cara aos humanistas desde o Renascimento: “O que está em baixo é como o que está em cima”. Ao macrocosmo (Abraxas) corresponde o microcosmo (o homem), que é capaz de criar como um criador gnóstico.

 

Feito o pacto, Fausto saiu a vagabundear pelo mundo, buscando toda sorte de prazeres e praticando crimes hediondos, como a sedução e a destruição de Gretchen e sua família. O crime lhe é indiferente, pois o que queria alcançou: o intercurso sexual com a menina de apenas quatorze anos. O fecho do livro também se dá com outro crime de sangue, com o assassinato de Baucis e Filemon, a fim de permitir o ativismo “criador” de Fausto. “No princípio era a ação”.

 

Fausto é salvo no poema porque era também um preferido de Deus, mas a visão hedonista e modernista de Goethe (na verdade, herdada de Guilherme de Ockham) a salvação é prerrogativa divina e nada do que façamos aqui é relevante para alterar a vontade de Deus. Deus que fez a lei eterna pode quebrá-la a bel prazer. Há um completo descolamento entre a salvação escatológica e o comportamento moral do homem, no livro. Ao homem compete simplesmente a ação, imitar Deus, “criar”. Ao final do primeiro livro tem-se o aparecimento do homúnculo, forjado precisamente no forno alquímico. Uma imitação do homem original nascido de partenogênese de Wagner, um duplo de Fausto, um discípulo que aplicou a receita do mestre.

 

Carl Jung cometeu grave erro na página final do seu livro Resposta a Jó, ao dizer que o homúnculo de Goethe é uma imitação da passagem dos Evangelhos, que diz: “Tornai-vos como criança”, talvez se referindo ao evangelho apócrifo de Tomé. Em João 3.3 temos, no diálogos de Jesus com Nicodemos: “quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus”.  O homúnculo não é criança, é um adulto em miniatura, bem outra coisa. Um grave erro de perspectiva. A forja não substitui a pureza infantil e nem o sacramento. O esforço alquímico-materialista de Fausto nada tem de cristão. O homúnculo está mais para clone do que para criança. O desfecho do livro não é cristão, mesmo aparecendo o Eterno-feminino como a Virgem Maria. (A psicologia junguiana não passa de aplicação das intuições de Goethe).

 

Não digo que o Fausto é o sêmen do relativismo moral moderno porque vejo o personagem mais como elemento de descrição da realidade que cercava Goethe do que uma proposta para os leitores de filosofia de vida. Goethe fez a crônica dos tempos, não pregação. A modernidade é isso, um grande crime, uma grande pecado, sendo o maior deles a tentativa da criatura de suplantar o Criador.

 

 

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. Goethe e Jó. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/goethe-e-jo/ Acesso em: 18 abr. 2024