Política

O caráter do Estado moderno


12/11/2010

O artigo publicado no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara (Estado:
ministro de Deus), escrito a quatro mãos por Júlio Severo e o Pr. Marcello de
Oliveira, traz-nos um excelente tema para discussão. O que é o Estado? Em
última análise, é uma estrutura jurídica organizada burocraticamente com o
objetivo de fazer prevalecer a vontade política da elite dirigente. Gosto dessa
definição porque ela é exata. Claro que o Estado tem que respeitar a vontade
geral, mas nem sempre o faz. Claro que ele deveria respeitar a lei natural, mas
há séculos não o faz. Claro que deveria ser um instrumento pelo qual a justiça
divina fosse corretamente administrada e ministrada aos delinqüentes, mas o
Estado moderno deu as costas à transcendência, de sorte que aquilo que é
definido como crime deixou de ter raiz em Deus.

O artigo, embora bem escrito, peca precisamente por pensar o Estado em
termos do “como se”, ou seja, como se o Estado buscasse o bem comum e estivesse
de acordo com a lei natural. Acontece precisamente o oposto desde que irrompeu
o primeiro Estado nacional, suplantando a ordem medieval e inaugurando a
modernidade. Desde Maquiavel, pelo menos, os dirigentes estatais deixaram de
buscar o ideal de Estado que nasceu com Platão e Aristóteles e foi consagrado
pela Igreja. Desde então valeu o que os homens modernos pensaram: o Estado é um
espólio a ser apropriado pelos novos príncipes em constante luta entre si para
se apossar dele.

No meio dessa luta há o problema do consentimento ou da legitimidade dos
governantes. Os novos príncipes passaram a cultivar os mais baixos instintos
das multidões como instrumento de alcançar o poder e nele se legitimar.

O novo Estado moderno também perdeu qualquer amarra com a lei natural,
passando o processo legislativo a ser completamente autônomo e arbitrário em
relação à lei divina e à lei natural. Afirmo, sem medo de errar, que desde
Felipe II da Sicília o corpo legislativo de todos os Estados adquiriu a
autoridade da lei divina, mas seu processo foi completamente descolado da
transcendência. Além de fazer do poder a fonte única do direito, o novo
legislativo, na sua imanência radical, tem buscado o que a Igreja e as
Escrituras rejeitaram desde sempre: o perfectibilismo humano. O que temos visto
é precisamente isso: os novos príncipes, para terem o poder de mando sobre o Estado,
prometem ao povo todo tipo de perfectibilismo, como se estivesse ao seu alcance
eliminar as tragédias humanas. Começa pela enorme blasfêmia contida na
afirmação de que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, se
esquecendo que todo poder emana de Deus ele mesmo.

Aí está a raiz de todas as revoluções. No século XX conhecemos o
aprofundamento das democracias com o uso do expediente do voto universal, que
permitiu fazer emergir o que elas têm de pior: a adulação das massas – ou do
homem-massa, como observou Ortega y Gasset – em nível nunca antes visto. Ao
Estado cabe agora eliminar a lei da escassez, prover Educação e Saúde, eliminar
os riscos existenciais, corrigir o clima, substituir a família como célula
formadora de homens íntegros, corrigir qualquer tipo de singularidade natural.
A palavra igualdade será o mantra a ser perseguido em todas as circunstâncias.
Todas as decisões estatais serão agora tomadas com o fito de instituir essa
utopia nefasta, contrária à lei divina. Até mesmo a hierarquia natural de amar
a Deus sobre todas as coisas é deixada de lado. O supremo crime agora é
descumprir qualquer lei estatal, mesmo que esta seja ostensivamente injusta e
contra o direito natural. Um exemplo óbvio é a legislação sobre o aborto que se
espalha sobre o planeta, gerando o que João Paulo II chamou de “cultura de
morte”.

Os autores escreveram: “A função de autoridade governamental constituída
é trabalhar como ministro de Deus para o bem, isto é, para a segurança, ordem e
a paz da sociedade (Rm 13:3,4)”. Eles deveriam escrever que essa “deveria” ser
a função, mas que há muito ela foi abandonada e que é essa toda a tragédia da
modernidade. Vimos Obama com seu sistema de saúde, vimos Lula e Dilma com suas
múltiplas bolsas. Esses novos príncipes querem aperfeiçoar o homem, adular as
massas contra a natureza apenas e tão somente para chegar ao poder e nele se
manter. As recentes eleições no Brasil formam um exemplo claro dessa descida
aos infernos da política. Diferentemente dos EUA nossa gente está politicamente
muito mais doente.

São Paulo, quando escreveu suas epístolas, tinha diante de si uma
realidade de poder, o Império Romano, firmemente comprometido com o direito
natural aristotélico, que moldou o sua estrutura jurídica. Ele estava correto
por essa via. E, por outro lado, bem sabia que o Reino de Deus não é desse
mundo, faça lá o Estado o que fizer cabe ao cristão estar de acordo com a lei
de Deus, que é transcendente e além do Estado. Paulo, como Cristo, recusou-se o
papel de revolucionário, embora nunca se enganasse quanto à natureza real do
Estado. Cristo diante de Pilatos e do Sinédrio é o exemplo mais consumado da
injustiça que o Estado pode cometer. O Estado condenou o Justo dos justos.

O Estado moderno não apenas não está comprometido com o bem comum, ele
encarna o próprio mal. Ele realiza os massacres em larga escala, pelas guerras.
Ele mata inocentes como a polícia brasileira tem matado. Ele encarcera como
jamais as multidões foram encarceradas, desde o início dos tempos. Ele interfere
na relação do homem com a mulher, do casal com seus filhos, na relação com
vizinhos, em tudo. Regula tudo. Policia tudo. Com os meios técnicos disponíveis
fez uma prisão eletrônica que por ela praticamente eliminou a liberdade em
geral. Não se pode ter qualquer ilusão quanto ao caráter do Estado moderno e é
dever de um cristão consciente denunciá-lo e combatê-lo. E eliminar qualquer
ilusão que se possa ter de que alguma bondade possa derivar desse leviatã
maldito.

Compreender que o Estado moderno encarna a rebelião do homem contra Deus
e que ele é a grande máquina de matar, como descrita no Livro do Apocalipse, é
um salto de consciência que exige grandes estudos e muito compromisso moral.
Estamos todos acostumados a esperar por soluções estatais, seja para aos
problemas do cotidiano, que as pessoas poderiam resolver por si mesmas, seja
para resolver falsos problemas, como o tamanho da população, o clima, a
poluição do ar e quimeras equivalentes que se multiplicam no dia a dia.

O Estado moderno não é apenas laico, mas ateu. No seu ateísmo construiu
uma nova forma de deidade, muito parecida com aquela que é própria dos Estados
islâmicos. Na verdade, o Estado moderno é a islamização da política no
Ocidente, fato bem observado por Miguel de Cervantes no Dom Quixote. Mas a
demonstração desse fato é mais longa e exigiria um espaço mais amplo do que um
mero artigo de opinião.

* José Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente
em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias
coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento,
escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor
da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. O caráter do Estado moderno. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/o-carater-do-estado-moderno/ Acesso em: 16 abr. 2024