Política

Brasília: o descalabro faz cinqüenta anos (Terceira Parte)

Como vimos, quando as idéias autoritárias e totalitárias não são provenientes da Alemanha – que produziu Hegel, Marx e Hitler [filho adotivo] – são provenientes da França – que produziu Rousseau [filho adotivo], Robespierre, Napoleão [filho adotivo] e Comte. E é curioso o fato histórico que as formas e os regimes democráticos vigentes no cenário contemporâneo são provenientes da cultura anglo-americana, pois a democracia parlamentarista provém da monarquia constitucional britânica instituída em 1688, ao passo que a democracia presidencialista provém da república instituída pelos Pais da Pátria americanos em 1787. E ainda dizem por aí que a anglofilia deste autor não passa de mera idiossincrasia…

 

Alguém poderá objetar: Mas que dizer do parlamentarismo republicano, tal como existente na França, na Alemanha, em Portugal, etc.? Para encurtar uma longa explanação: um regime tão híbrido quanto uma mula, pois tirou o corpo da forma monárquica constitucional e a cabeça do regime presidencialista republicano. Só podia ser mesmo uma criação de comunistas envergonhados, ou seja: social-democratas. No que diz respeito especificamente à forma e ao regime francês, J.F. Revel tem razão: trata-se de um absolutismo ineficaz. E quanto à nossa anglofilia, ela não é idiossincrasia: é conhecimento da  história universal aliado ao exercício dos neurônios.

 

Um empreendimento faraônico como a construção de uma nova capital, em um país repleto de graves problemas sociais, desafiando todos os princípios de racionalidade econômica e de gerência eficaz do dinheiro dos contribuintes, por acaso não é de se prever que só poderia satisfazer tolos ufanistas embevecidos, especuladores imobiliários, energúmenos incapazes de aplicar a relação custo-benefício e empreiteiros de plantão?! Isto é B. de Mandeville (1988) do lado do avesso: vícios públicos, benefícios privados [muy privados!].

 

Assim como urubus voam em torno da carniça sem se indagar de quem era o corpo, empreiteiras no Brasil costumam rondar o Poder em busca de obras monumentais,  sem se indagar pela necessidade, finalidade e custo das mesmas – coisas que não são mesmo para ser indagadas por empresários que estão obviamente em busca do lucro, mas sim pelo poder público que devia estar em busca de ao menos  evitar o desperdício do dinheiro do contribuinte. Mas, no Brasil, o Estado é visto pela maioria das pessoas como uma entidade mágica dotada de ilimitados recursos financeiros, não como mero repassador de recursos extraídos dos bolsos dos cidadãos, que acabam sempre pagando a conta. Eu e você, vampirizado contribuinte, hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão. Por que?  Talvez porque…

 

 

            La sottise, l’erreur, le peché, la lésine,

            Occupent nos esprits e travaillent nos corps,

            Et nous alimentons nos aimables remords,

            Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

 

           [A idiotice, o erro, o pecado, a mesquinhez,

           Tomam conta dos nossos espíritos e moldam nossos corpos,

           E nós alimentamos nossos agradáveis remorsos,

           Como os mendigos nutrem sua verminose.]

                   

                           Baudelaire, As Flores do Mal

 

Juscelino – tal como Ulysses no País das Maravilhas ou Guimarães na Constituinte de 1988 – detestava responder àquelas perguntinhas chatas: Quem vai pagar a conta? O custo é menor do que o benefício? O  empenho de jk no sentido da modernização do país , bem como a instalação da indústria automobilística,  foram muito mais proveitosos do que sua bravata de romper com o fmi – antecipando a  moratória unilateral de Sir Ney, aquele que não queria ser presidente, mas sim vice, p’ra fazer discursos e ir a banquetes  – e sua quixotesca idéia de construir a Versalhes tupiniquim, unicamente para satisfazer seu ego do tamanho do mundo [narcisismo existe, é problema grave para a saúde mental e interfere na vida política muito mais do que geralmente se pensa].

 

Roberto Campos – de quem não conseguimos discordar por mais que tentemos – diferentemente de Maria da Conceição Tavares, com quem não conseguiríamos concordar por mais que tentássemos – acertou mais uma vez. “Versalhes foi transformada de velhacouto de caça em corte, porque os parisienses irrequietos amolavam a vida da cidade” (O Globo, 17/12/95). Tal mudança não só afastou a nobreza das badernas do Terceiro Estado em Paris, como também gerou maior vassalagem e puxa-saquismo do rei. A corte passou praticamente a morar naquela esplendorosa cidade.

 

Do mesmo modo, Brasília foi transformada de paisagem em Distrito Federal, porque os cariocas irrequietos amolavam a vida da cidade. Tal mudança não só afastou a corte presidencialista das badernas do Terceiro Mundo no Rio, como também gerou maior vassalagem e puxa-saquismo do nosso reizinho absolutista sem coroa nem cetro (o Presidente da República e seu estamento). A história se repete. Só que a primeira é tragédia (a Revolução Francesa e a decapitação na guilhotina de Luís XVI), e a segunda é farsa (a Revolução de Trinta e Um de Março de 1964, que na realidade foi o Golpe de Primeiro de Abril).

 

Porém, levando em consideração que estávamos em plena guerra fria e que havia de fato a ameaça do (des)governo de Jango produzir um anarco-sindicalismo no Brasil, não podemos ser contra o referido golpe, assim como não podemos ser contra a revolução russa de 1917 que derrubou o regime despótico do czar. Somos, no entanto, visceralmente contra o golpe bolchevista liderado por Lenin que derrubou o governo provisório de Kerenski, que estava tentando introduzir a democracia naquele país politicamente defasado [segundo um colega nosso, a visão iluminista nunca foi além da fronteira da Alemanha com a Polônia] , assim como somos visceralmente contra o contragolpe de 1966, que afastou o “o grupo da Sorbonne” a que pertencia Castello Branco e colocou a linha dura militar no Poder.

 

No que se refere especificamente à construção de Brasília, há ainda uma conseqüência social que poderia ter sido facilmente prevista, mesmo por quem não é sociólogo. Por incrível que pareça, porém, não foi. A construção de Brasília mobilizou milhares de candangos, operários geralmente vindos das áreas mais pobres do Brasil, para uma atividade de trabalho longa, porém temporária. Acabada a construção da cidade, acabou o emprego. Evidentemente, o funcionalismo do novo Distrito Federal absorveu uma pequena parte daquela mão-de-obra não-qualificada, mas sobrou uma parte espantosamente grande, sem quaisquer perspectivas empregatícias, pois, em Brasília e ao seu redor, não havia indústrias nem atividades produtivas capazes de satisfazer aquela portentosa demanda de empregos.

 

Resultado: um pequeno número de candangos decidiu voltar para a sua terra e um número muito maior se estabeleceu em volta de Brasília, e aí está a causa do que vemos hoje: uma pequena cidade insípida, tediosa e asséptica cercada por um grande cinturão de miseráveis e desordenadas cidades-satélites – cujo ritmo de crescimento populacional tem sido tantas vezes  maior do que o brasiliense, que a expansão dos seus casebres corre o sério risco de chegar às portas do Palácio da Alvorada.

 

Os planejadores estatais – com suas mirabolantes futurologias que lembram às do gosplan [o órgão de planejamento central da urss] esperavam que no futuro Brasília tivesse no máximo 750.000 habitantes. Mas, de acordo com o censo do ibge de 1985, a população já era mais do dobro da estimada, ou seja: 1.567.709 habitantes. Hoje, mais de dez anos depois, deve ter mais de 3.000.000.

 

Mas será que o narcisismo e a megalomania de Juscelino eram tão fortes que o impediram de prever tal coisa? Barbara Tuchman, que estudou penetrantemente  os desvarios dos governantes em A Marcha da Insensatez: De Tróia ao Vietnã (1985), provavelmente diria que sim. Será que, além disso, seu senso crítico era tão estreito a ponto de levá-lo a pensar que os brasileiros se dividiam em fanáticos ufanistas como Policarpo Quaresma, estrategistas defasados como o general da banda, empreiteiros de plantão, especuladores imobiliários e gente incapaz de aplicar corretamente a relação custo-benefício? Provavelmente só o perfeito idiota brasileiro diria que não.

 

Seus defensores certamente alegariam que não se trata disso, e em sua defesa diriam que Brasília foi um empreendimento ousado e corajoso destinado a levar desenvolvimento para a região centro-oeste. Não temos a menor dúvida de que os colonos americanos que, no século XIX partiram, juntamente com as suas famílias para as terras inóspitas e desertas do oeste americano, que tiveram de enfrentar índios ferozes e outras agruras para se fixarem em suas terras, levaram o desenvolvimento para aquela parte dos Estados Unidos.

 

Mas essa colonização americana, tal como a inglesa no século XVII, foi um empreendimento privado e levou de fato desenvolvimento para onde pouco havia além de pedras, cactos, apaches e comanches, ao passo que o suposto esforço de desenvolvimento brasileiro na segunda metade do século XX – tal como a colonização portuguesa no século XVI – foi um empreendimento estatal, e a única coisa que levou para o Distrito Federal foi um exército de burocratas e sanguessugas do Poder antes sediado no Rio de Janeiro.

 

Mas desde quando burocracia traz desenvolvimento? Quando ela não o dificulta ou não o emperra, já devemos considerar um grande ganho. Quem traz efetivamente desenvolvimento é a iniciativa privada [Poucos são os brasileiros realmente convencidos disto!]. O Estado pode dar evidentemente sua contribuição desfazendo leis que dificultam projetos de pequenos, médios e grandes empresários, bem como criando uma série de condições favoráveis a investimentos e atividades empresariais. Mas é importante não esquecer: o Estado não é gerador de recursos, é repassador dos obtidos dos bolsos dos contribuintes. E neste sentido, Brasília é um colossal fracasso, pois tirou muito mais  do que devolveu como retorno de qualquer tipo.

 

Não há dúvida de que a região do cerrado tem apresentado um apreciável desenvolvimento econômico da década de 60 a de 90, principalmente no que diz respeito à cultura de cereais e à criação de gado, mas devemos tributar isto a uma cidade-escritório despejada onde só havia paisagem? Pensamos que tal desenvolvimento foi produzido pelo trabalho dos próprios fazendeiros da região e pelo de alguns provenientes do sul do país.

 

Se receberam subsídios ou quaisquer outras formas de ajuda, o receberam do Governo Federal cuja localização geográfica no Planalto Central  é algo tão irrelevante quanto a localização geográfica da moradia de um portador de endereço eletrônico na internet. Se o Governo Federal estivesse em qualquer lugar entre o Oiapoque e o Chuí, qual a diferença além da do clima e da do prestígio político de ser a sede – ou a sêde – do Poder?!

 

O que se criou efetivamente com a criação de Brasília foi uma Ilha da Fantasia  em que seus habitantes mais notáveis, distanciados do resto do país, passaram a viver uma realidade [ou irrealidade] toda própria. Após 1964, com os militares no Poder, esse distanciamento não só se agravou como recebeu um aspecto adicional: desencadeou-se um processo de despolitização generalizada e de tecnologização estatal. A primeira continuou gerando seus efeitos até hoje, mesmo após o advento da Nova República, pois, em uns vinte anos de duração, produziu uma geração de eleitores indiferentes à vida política e uma maioria de representantes indiferentes aos seus representados, unicamente voltada para seus interesses corporativistas, e isto para não falar da alarmante corrupção, que costuma acompanhar o dirigismo econômico e a centralização administrativa.

 

Uma piada da década de 70 mostra como os brasileiros viam seus políticos: Um indivíduo chega na rodoviária de uma cidade com uma grande e pesada mala. Vê um outro parado na estação e diz: “Por favor, o senhor pode tomar conta da minha mala enquanto eu dou um telefonema? O homem parado infla os pulmões, enche a boca e diz  para o forasteiro: “Meu caro, eu sou um político!”, e o forasteiro retruca: “Não faz mal, mesmo assim eu confio no senhor”.

 

Será que hoje isto mudou? As pesquisas de opinião pública têm dito que não. A classe política continua sendo uma das instituições menos confiáveis aos olhos do povo. Contudo, tamanha é sua desfaçatez e tantas as suas proezas, que merecem um capítulo inteiro, talvez uma Enciclopédia do Pós-Maquiavelismo diante da qual o vetusto Maquiavel, mofando no purgatório e no Index Librorum Prohibitorum, poderá reivindicar – e não sem boa dose de razão – seu Nihil Obstat e quem sabe até sua beatificação pelo Papa. Nos dias de hoje, somente a Velhinha de Taubaté continua confiando nos políticos e acreditando piamente em tudo o que eles dizem.

 

A tecnologização a que nos referimos não se refere ao impulso dado ao desenvolvimento tecnológico – coisa que inegavelmente constitui uma das contribuições positivas dos governos militares, que, entre outras coisas, criaram o cnpq (Conselho Nacional de Pesquisa)- mas sim ao caráter tecnicista emprestado à arte de governar cujo aspecto mas proeminente foram os planos megalômanos feitos dentro de quatro paredes por tecnocratas totalmente insensíveis a quaisquer fatores sociais e políticos, e se comportando como se estivessem em um laboratório e nós fôssemos suas  cobaias.

 

Alguns dos referidos planos palacianos até hoje suscitam aquele dilema típico na vida política brasileira: safadeza ou incompetência? Consideremos, por exemplo, aquela estrada que hoje não mais existe: a Transamazônica. Na realidade, parecia mais uma Transa Amazônica. Como pode passar  pela cabeça de um indivíduo bem informado e sensato a construção de semelhante loucura? Seu idealizador era algum Juscelino de farda e seu inspirador só pode ter sido o sacana Curupira, aquele molequinho traquinas que tem os pés voltados para trás e anda de costas, de acordo com nosso rico folclore.

 

Já houve quem propusesse trazer de volta a Capital para o Rio de Janeiro – como o professor J.R. Moderno do Dept.º de Filosofia da uerj . Mas, data maxima venia, essa proposta modernista não nos parece muito interessante, pois não conseguimos vislumbrar outra coisa senão o custo monetário e político de semelhante empreendimento. Bairrismos à parte, se a Capital tinha de ser transferida para algum lugar, então que fosse para São Paulo, que já é há muito tempo o centro econômico e financeiro do país e de uns tempos para cá, com a decadência da cidade do Rio de Janeiro – algo que, como carioca nato, o autor reconhece com grande dor – tornou-se também o centro cultural do Brasil. Como dizia o sábio adágio romano: Contra fatos não há argumentos.

 

Temos de admitir, no entanto, que a Capital em Brasília é algo irreversível. Não adianta chorar o leite derramado, mas sentemos o pau naquele que o derramou, porque o líquido das tetas das vacas pode não ser grande coisa como nutriente, mas enche a barriga de muita gente e, por isto mesmo,  é um alimento precioso demais para ser desperdiçado.

 

Mas a história se repete; só que a primeira vez é vibrante epopéia nacional e a segunda, comédia pastelão dos Três Patetas. Nossos ilustres representantes – preocupadíssimos com a contenção de despesas – criaram mais uma unidade da federação: o Estado de Tocantins, onde há mais tatu e papagaio do que contribuintes locais para sustentá-lo. Isto só pode ser a Vingança de Tupã! Como estado sem capital é como futebol sem bola, construíram mais uma capital: Vaias! – perdão: Palmas! [Quem disse que “There’s no business like show business” estava completamente equivocado: “There’s no business like Brazilian political business”]. 

 

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. Brasília: o descalabro faz cinqüenta anos (Terceira Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/brasilia-o-descalabro-faz-cinqueenta-anos-terceira-parte/ Acesso em: 29 mar. 2024