Política

Brasília: o descalabro faz 50 anos (Segunda Parte)

Como dizia aquela modinha de Carnaval: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira / Onde é que eu vou morar?”. E de fato, é mais fácil encontrar um intelectual carioca que não seja de esquerda, não torça pelo Flamengo e pela verde e rosa Mangueira, com seu “samba no pé”, do que encontrar uma casa para morar em Brasília. Professor e jornalista, Guy Sorman descreveu Brasília de modo sucinto e preciso:

 

O arquiteto Oscar Niemeyer, em função da destinação dos prédios retangulares, sem charme nem imaginação – quadra dos bancos, quadra dos hotéis -, distribuiu-a de um lado e de outro de uma auto-estrada central. Onde quer que estejamos, impossível fugir do barulho ensurdecedor do tráfego. Da mesma forma, impensável andar, perambular, procurar um lugar tranqüilo e um pouco de sombra: Brasília não tem esquinas nem refúgios nem árvores. Essa arquitetura do absurdo atinge seu paroxismo com a catedral: um teto cônico com placas de vidro apoiado em vigas de cimento concentra os raios do sol tropical, transformando-a em um forno sem a menor utilidade, pelo menos para dizer missa.(…)

 

Que Brasília tenha se tornado a referência de chefes de Estado do Terceiro Mundo, desejosos de construir também uma capital em pleno deserto, é bastante revelador de sua megalomania. Brasília é o sonho de cimento de uma elite em busca do poder nacional: tecnocratas, militares e demagogos. Brasília e as favelas não são as duas faces do capitalismo, mas, na verdade, as duas faces de uma mesma política de desenvolvimento equivocado. (Sorman, 1987, 61-2, o grifo é nosso).

 

 De fato, “política de desenvolvimento equivocado” é a expressão correta. Mas o Brasil na época recebia a pecha de país subdesenvolvido e muitos brasileiros se irritavam com essa suposta discriminação. A UNESCO – entidade criadora de empregos, equívocos e eufemismos – passou a recomendar a expressão “país em desenvolvimento” [Se o que se pretendia era chamar urubu de “meu louro”, lixeiro de “coletor de detritos” ou cafetão de “empresário de damas da noite”, tudo bem].

 

Mas o ISEB – Instituto de Seleção da Elite das Esquerdas Brasileiras – gerou o “desenvolvimentismo”. Pior que isto somente a tal da CEPAL  [Comissão de Estudos para a América Latina] onde pontificava o argentino Raul Prebisch – uma espécie de guru do nacionalismo, estatismo, estruturalismo e abismo latino-americano. (Campos, 1994, pp.164-173)

 

O que era isto? Basicamente a idéia de que o desenvolvimento socioeconômico tinha de ser capitaneado pelo Estado e que, para crescer, era preciso produzir muita inflação. Entendia-se mesmo que, assim como não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos, não se pode produzir desenvolvimento sem inflação. [Que concepção desastrosa!].

 

 Daí para o capitalismo de Estado era um pequeno pulo. Apesar de não militar nas hostes da esquerda, Juscelino gostou da idéia e, a partir dela, gerou seu próprio slogan dos “cinqüenta anos em cinco”. E de fato, ele gastou em cinco o que deveria gastar em cinqüenta anos. E nessa gastança, Brasília despontava como símbolo do desenvolvimentismo, quer dizer: perdularismo típico do interditável pródigo.

 

Dizem que a desastrosa idéia de construir a NOVACAP e abandonar a BELACAP surgiu na cabeça de Juscelino durante sua campanha presidencial. Em um comício em Goiás, um desconhecido perguntou a Juscelino se ele pretendia cumprir essa meta já proposta na Constituição [e já foram tantas, que o autor não sabe dizer qual delas], e o velho Juça – da velha Diamantina de Chica da Silva, que se casou com Lampião em outro enredo de Samba do Crioulo Doido – disse resolutamente que sim, sob aplausos efusivos da platéia goiana. E esta foi uma das raras vezes em que um político brasileiro cumpriu uma promessa de campanha  [quando teria sido melhor não ter feito tal coisa].

 

Para Lúcio Costa, tudo o que importava era a função urbanística e para Niemeyer era a forma arquitetônica. Seres humanos eram coisas do interesse de sociólogos, antropólogos, psicólogos, etc., jamais de um urbanista pós-bauhausiano e de um arquiteto esteticista na forma, mas  estalinista no conteúdo. E o resultado dessa gritante falta de sensibilidade foi uma espécie de cidade-escritório demasiadamente uniforme e visualmente insípida, estimulando o tédio e até mesmo a depressão crônica.

 

E imaginemos o efeito disto em um país de maníaco-depressivos… Um paraíso para psicanalistas, curandeiros e ufólogos, ao que se pode acrescentar belos palácios reais que – tal como o Pártenon de Atenas – não são exatamente aquela conjunção de forma, função e fator humano que deve caracterizar a arquitetura propriamente dita, mas sim edificações que mais parecem esculturas monumentais. [Recentemente, no Rio, Niemeyer fez uma exposição de esculturas no sentido próprio do termo. Para nós, nada surpreendente, uma vez que sempre soubemos que seu talento estava muito mais para o ofício de Hans Arp e Henry Moore do que para o de Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe].

 

Como se sabe, o Pártenon cumpria apenas uma finalidade estético-religiosa. Era um templo em homenagem à deusa Pallas Athenea, a protetora de Atenas, e ao mesmo tempo um belo monumento público no alto de uma colina, a Acrópole, podendo ser apreciado de qualquer ponto pelos habitantes da referida Cidade-Estado grega. Porém, diferentemente de um templo cristão ou de uma sinagoga, ele não costumava abrigar fiéis para a realização freqüente de cultos. Apenas uma vez por ano alguns sacerdotes sozinhos realizavam um ritual em homenagem à referida deusa.

 

 Porém casas e prédios públicos não são somente feitos para a satisfação estética do olhar e a simbolização do Poder, pois pressupõem a presença habitual de seres humanos e devem estar adequados a diversas necessidades humanas. Quando, no entanto, na elaboração de um projeto, não é levado  em consideração o fato de que seres humanos viverão e trabalharão nos ambientes projetados, deixamos de cumprir a função essencial da arquitetura como criação de um espaço funcional e agradavelmente habitável.

 

Mas para que se preocupar com o aproveitamento da luz solar quando existe a elétrica, para que se preocupar com a ventilação quando existe o ar condicionado? Isto nos lembra o caso daquele sujeito que, ao ver  pernas eletrônicas de alta precisão tecnológica, ficou tão maravilhado que decidiu amputar as suas para implantá-las. E afinal de contas, redução de despesas é coisa de economistas monetaristas, jamais de urbanistas indiferentes a esta veleidade, e de arquitetos mais preocupados com as linhas da arquitetura do que com as linhas de financiamento da mesma.

 

E além disso, como todos nós sabemos, deitada eternamente em berço esplêndido, a Viúva é rica e generosa. É mesmo a própria Viúva Alegre na bela e festiva Viena das valsas intermináveis do Imperador Francisco José. Entra o Blau Donau : “Danúbio azul / tan-tan / tan-tan” (bis). E como se sabe o referido rio nunca foi azul em Viena, a não ser para os que estão apaixonados. Ora, para quem está apaixonado, até Brasília é uma cidade romântica!

 

E por falar em despesas, é difícil dizer qual a maior: a da construção dessa cidade-escritório – cerca de 8 bilhões de dólares – ou a do seu custo operacional. Parece que, neste aspecto, ambos estavam antecipando os CIEPS do Brizola ressuscitados pelos CIAPS do Collor. No que se refere à Ilha da Fantasia, todos os materiais de construção tiveram de ser transportados de avião. Mas, assim como não se pode dizer que Lúcio Costa tivesse intencionalmente projetado uma cidade de acordo com uma estratégia de defesa do Poder, não se pode dizer que Juscelino a tivesse intencionalmente idealizado de acordo com os interesses de grandes empreiteiras nacionais. Parece mais adequado pensar que tais coisas foram conseqüências não-pretendidas das suas respectivas ações, de acordo com este importante conceito de F. von Hayek (1960). Ou não?!

 

Porém nem sempre conseqüências dessa natureza podem ser consideradas eventos imprevisíveis. Em uma república cuja história tinha começado com uma quartelada de meia dúzia de militares positivistas contra uma monarquia constitucional e até então tinha sido pontilhada de levantes e golpes, era muito mais sensato e mais provável esperar que continuasse assim do que, a partir da década de 60, por um passe de mágica, acabasse se transformando em uma democracia sólida e estável. Queira Deus que estejamos caminhando neste sentido e tenha sido afastada a probabilidade de mais um indesejável golpe, como o recente golpe de Fujimori no Peru.

 

A história da nossa República tem sido uma história de instabilidade política e inúmeros desacertos. O grupo de militares positivistas – que, liderados pelo Marechal Deodoro, derrubaram D. Pedro II – nada tinham de democráticos. Não estavam inspirados no federativismo preconizado por Thomas Jefferson, nem em qualquer outra visão autenticamente democrática, porém na sociocracia de Auguste Comte cujo regime era a ditadura republicana [a expressão é do próprio Comte]. Que coisa incrível! Parece que tem sempre um francês por trás de uma idéia torta! Ontem eram Rousseau, Robespierre e Comte, hoje Deleuze, Mitterand, Foucault, Lacan, Bourdieu, Touraine, etc. Como observou muito bem Roberto Gomes na sua Crítica da Razão Tupiniquim:

 

Nas concepções que trouxeram prejuízo ao país, e que podem ser atribuídas “à má orientação positivista”, encontramos o regime totalitário de inspiração comteana, cujo melhor exemplo, o mais direto, seria o de Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, onde governou autocraticamente de 1893 a 1898, sob a inspiração do Sistema de Política Positiva de Comte. Sistema totalmente centralizado, esse regime ditatorial trazia ainda outras marcas. A desconfiança com relação ao voto – “o voto não é nem pode ser o verdadeiro instrumento capaz de determinar precisamente o profundo trabalho de formação de opiniões”, dizia Júlio de Castilhos – e a personificação do poder, pois era suposto que o governo caberia a um “ditador institucional”, enquanto o poder Executivo absorvia o Legislativo, podendo o chefe de governo demitir os ocupantes dos executivos municipais. Todos esses poderes acumulados nas mãos de um só homem marcavam desde já o caráter antiparlamentar e antipartidário que, mais tarde, estaria presente em outros movimentos militares como, por exemplo, o tenentismo. Essas concepções totalitárias eram de todo coerentes com o que dizia Augusto Comte no Catecismo a respeito dos direitos humanos: “A noção de direito deve desaparecer do domínio político, como a noção de causa do domínio filosófico. Todo direito humano é tão absurdo quanto imoral”. (Gomes, 1978, pp.79-80, os grifos são nossos).

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. Brasília: o descalabro faz 50 anos (Segunda Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/brasilia-o-descalabro-faz-50-anos-segunda-parte/ Acesso em: 25 abr. 2024