Judiciário

Decisões judiciais rabilongas

Decisões judiciais rabilongas

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

We are under a Constitution, but the

Constitutions what the judges way it is.

(Charles Hughes)

 

Quanto mais se fala em necessidade de agilizar o tempo de tramitação de processos para tornar efetiva a jurisdição, a única razão de ser do Poder Judiciário, mais e mais vai se inovando as diversas formas de tornar cada vez mais lenta a atuação da Justiça.

 

Procedimentos tradicionais ágeis vão sendo substituídos por outros ‘modernos’, complicados, burocráticos e lentos. Agora existe ordem cronológica para distribuição de cartas precatórias, conclusão dos autos, juntada de petição aos autos, remessa de despachos e resumos de decisões à imprensa oficial, expedição de mandado de levantamento, apanhar o mandado expedido etc.

 

O prazo de distribuição dos processos no Tribunal foi agilizado. Ele foi substituído pelo prazo de inclusão na pauta de julgamento. Um mandado de segurança, sem concessão de liminar ou com a liminar suspensa automaticamente pelo Tribunal, se denegado em primeira instância, é melhor desistir, pois o remédio heróico transformou-se, na prática, no instrumento processual menos indicado para solução de questões urgentes, pela morosidade de seu julgamento nos tribunais, que levam em média 25 a 30 meses!

 

Muita culpa tem sido atribuída aos advogados, que estariam elaborando recursos meramente protelatórios sabendo, de antemão, da posição contrária do tribunal em face da jurisprudência já pacificada. Pergunta-se, por que não julgar esses recursos protelatórios assim que derem entrada no tribunal, por meio de decisão monocrática, já que a matéria seria de rotina? Por que aguardar 30 meses para submetê-los ao julgamento pela Câmara, a fim de proclamar que o recurso era meramente protelatório? Quem faria um recurso protelatório e tão dispendioso financeiramente se soubesse que esse recurso seria julgado em 30 dias? Como se vê, falta o serviço de triagem prévia dos processos ingressados no tribunal, providência simples que independe de Reforma do Judiciário.

 

O tema deste artigo, ‘decisões judiciais rabilongas’ tem pertinência com a morosidade da Justiça à medida que se toma o tempo, não só, dos julgadores e de inúmeros servidores do Judiciário, como também, do Executivo e das partes e até mesmo da Associação dos Advogados de São Paulo, que nos remeteu, por exemplo, cópia de uma decisão singular, com exatos trinta dias de atraso, perfeitamente justificável em razão do tamanho e do peso da publicação, 29 laudas com cerca de 300 gramas.

 

Cuidava-se de uma decisão monocrática, proferida por um ilustre Ministro do STJ, dando provimento a um agravo de instrumento da Fazenda, não para fazer subir o recurso especial inadmitido na origem, mas, para decidir diretamente o recurso dando-lhe provimento, para modificar a decisão recorrida, fundada na ordem jurídica positivada.

 

Para assim decidir o culto, erudito e inteligente Ministro partiu da premissa de que “a exegese Pós-Positivista, imposta pelo atual estágio da ciência jurídica, impõe na análise da legislação infraconstitucional o crivo da principiologia da Carta Maior, que lhe revela a denominada ‘vontade constitucional’, cunhada por Konrad Hesse na justificativa da força normativa da Constituição”.

 

Tratava-se de um singelo recurso da Fazenda, para exigir da recorrida, uma empresa que opera exclusivamente no setor de transporte de passageiros, o pagamento da contribuição de 0,2% destinada ao INCRA. A escorreita decisão recorrida havia analisado a matéria à luz de princípios tributários expressos e implícitos, abrigados na Constituição Federal. Se as contribuições sociais – INCRA, CNA, CNT, CNI, SENAI, SENAC, SESC, SESI e SEBRAE – não fossem causais, isto é, tributos com referibilidade, todas as empresas, independentemente do ramo econômico explorado, teriam que pagar simultaneamente todas essas contribuições. E se assim fossem, todas elas teriam natureza de imposto não se justificando o fato de a Carta Política ter reconhecido cinco espécies tributárias, dentre elas, a contribuição social, que difere do imposto exatamente porque este é um tributo não vinculado à atuação do Estado, na precisa e valiosa lição de Geraldo Ataliba. Menor sentido teria a discriminação constitucional de impostos (arts. 153, 155 e 156 da CF) já que ‘n’ outros poderiam ser criados com nome de contribuição social, fundada na solidariedade, palavra que entrou na moda com o advento da EC nº 41/03, e que está incorporada na proposta de Reforma Tributária apresentada pelo Deputado Virgílio Guimarães. Se dormirmos, virá o imposto solidário esquecendo-se que o imposto de renda, por exemplo, já é um imposto fundado na solidariedade à medida que os ricos pagam mais, para que o Estado possa redistribuir a riqueza arrecadada entre os que ganham pouco ou nada ganham.

 

Por isso, essa ‘exegese Pós-Positivista’, que conduziria à revelação da ‘vontade constitucional’ fere o princípio maior da segurança jurídica, assegurado no âmbito de cláusula pétrea, por depender a sua detecção da considerável dose de subjetivismo do aplicador da lei, às vezes, com afastamento de princípios expressos na Carta Política. A Constituição teria tantas ‘vontades’ quantos fossem os diferentes intérpretes divorciados dos princípios constitucionais. Por isso, afirma com toda propriedade o saudoso mestre Geraldo Ataliba que ‘da riqueza peculiar do nosso sistema e da singularidade da nossa solução quanto à ordenação do poder tributário decorre a inapelável inviabilidade do imediato aproveitamento de doutrina estrangeira para a solução de problemas emergentes a atuação do nosso mecanismo’ .

 

Decisões laudatórias, normalmente, visam revolucionar matéria já pacificada ao longo das décadas de embates jurídicos, ou, objetivam demonstrar cultura e erudição de seu prolator. Só que processo judicial não é o instrumento adequado para enriquecer a cultura jurídica, em geral. Ato de julgar deve se ater ao exame do caso concreto em face do direito vigente. Certamente, existem outros meios para que cada um possa divulgar seus brilhos, para proveito de todos. E aqui são oportunas as palavras da Ministra Ellen Grace proferidas em seu discurso de posse como Presidenta do STF, no dia 27-4-2006:

‘Por isso, entendo que a difusão e fortalecimento os juízos de primeiro grau deva ser priorizado. Que todos os cidadãos tenham acesso fácil a um juiz que lhes dê resposta pronta é o ideal a ser buscado. Que o enfrentamento das questões de mérito não seja obstaculizado por bizantino formalismo, nem se admita o uso de manobras procrastinatórias. Que a sentença seja compreensível a quem apresentou a demanda e se enderece às partes em litígio. A decisão deve ter caráter esclarecedor e didático. Destinatário de nosso trabalho é o cidadão jurisdicionado, não as academias jurídicas, as publicações especializadas ou as instâncias superiores. Nada deve ser mais claro e acessível do que uma decisão judicial bem fundamentada. E que ela seja, sempre que possível, líquida. Os colegas de primeiro grau terão facilitada, a partir de agora, esta tarefa de fazer chegar as demandas a conclusão’2.

 

Não é por outra razão que sempre repetimos: o melhor juiz é o ‘juiz da roça’. Aquele que decide, com objetividade e rapidez, a lide posta, apenas com base no bom senso e na inteligência.

 

Sentença ‘curta e grossa’, como se diz na gíria, praticamente impossibilita uma apelação com um leque de argumentos contrários. A maioria dos processos não demanda conhecimentos jurídicos aprofundados, nem grande esforço mental e muito menos necessita de invocação de doutrinas alienígenas ou nacionais.

 

É tempo de simplificar as coisas, para fazer a justiça andar de novo.

 

 

* Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do IASP. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

E-mail: kiyoshi@haradaadvogados.com.br

Site: www.haradaadvogados.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Decisões judiciais rabilongas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/decisoes-judiciais-rabilongas/ Acesso em: 29 mar. 2024