Judiciário

A lei do silêncio

A lei do silêncio

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Ao Estado compete assegurar a convivência social e impor respeito às garantias do cidadão. Para cumprir sua missão, socorre-se das leis, verdadeiras pautas de conduta que estabelecem parâmetros comportamentais a serem obedecidos por todos.  O legislador, no entanto, não consegue acompanhar o desenvolvimento da sociedade, não tendo condições de prever tudo que é digno de regramento. Quer por insensibilidade com referência a alguns temas, quer por medo de apoiar projetos que visem à proteção de segmentos minoritários, de modo muito freqüente, o legislador se omite.

 

Surge assim uma lacuna no sistema jurídico. A chegada ao Judiciário de situações não regulamentadas em lei coloca os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema. O confronto entre o conservadorismo social e a emergência de novos valores, o paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente faz surgir a necessidade de implementar direitos de forma ampliativa.

 

Tal é o que ocorre com as relações afetivas de pessoas do mesmo sexo. É absolutamente conservador e preconceituoso o silêncio da lei. Na falta de previsão legislativa, a tendência da Justiça é reconhecer que inexiste direito a ser tutelado. Assim, acabam as uniões homoafetivas sendo condenadas à invisibilidade. Negam-se direitos como forma de punir posturas que se afastam do modelo familiar aceito pela sociedade.

 

Felizmente, mesmo que de forma ainda um pouco acanhada, vêm os juízes tomando consciência de que a ausência de regras legais não pode servir de limite à prestação jurisdicional. Ante situações novas, a busca de subsídios em regras ditadas para outras relações jurídicas tende a soluções conservadoras. Por outro lado, utilizar normas editadas em diverso contexto temporal nada mais é do que negação de direitos. Assim, é dever da jurisprudência inovar diante do novo.

 

Apresentando-se a julgamento situações fora da normatização ordinária, a resposta precisa ser encontrada não só na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito, como ordena a lei civil, mas principalmente nos direitos e garantias fundamentais, que servem de base ao estado democrático de direito. Imperioso que os juízes encontrem soluções que atentem aos ditames de ordem constitucional de maneira a assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, que se calca nos princípios da liberdade e da igualdade.

 

Felizmente a Justiça vem assumindo essa responsabilidade. Mesmo sem nome e sem lei, o Judiciário começou a dar-lhes visibilidade e juridicidade aos vínculos afetivos homossexuais. A princípio, ainda que de forma tímida e conservadora, tais relações eram vistas como mero negócio jurídico e inseridas no campo do Direito das Obrigações. Entendeu-se como sociedade de fato o que nada mais é do que sociedade de afeto.

 

Mas não se pode olvidar que a Constituição Federal alargou o conceito de família para além do casamento. A união estável e as relações de um dos pais com seus filhos receberam o nome de entidade familiar e a especial proteção do Estado. Mas, embora vanguardista, o conceito de família cunhado pela Lei Maior ainda é acanhado. Não alcançou vínculos afetivos outros que não respondem ao paradigma convencional, identificado pela tríade: casamento, sexo, reprodução. Como os métodos contraceptivos e os movimentos feministas concederam à mulher o livre exercício da sexualidade, passaram a ser considerados família os relacionamentos não selados pelo casamento. Assim, é imperioso que se busque um novo conceito de família, sobretudo no atual estágio de evolução da Engenharia Genética, em que a reprodução não mais depende de contato sexual.

 

A identificação da presença de um vínculo amoroso cujo entrelaçamento de sentimentos leva ao enlaçamento das vidas é o que basta para que se reconheça a existência de uma família. Como afirma Saint Exupéry: você é responsável pelas coisas que cativa. Esse comprometimento é o objeto do Direito das Famílias. Comungar vidas gera imposição de encargos e obrigações, servindo de base para a concessão de direitos e prerrogativas. Essa nova concepção tem levado cada vez mais a sociedade a conviver com todos os tipos de relacionamento, mesmo que não mais correspondam ao modelo tido como “oficial”.

 

Basta a presença do afeto para se ver uma família, e nenhum limite há para o seu reconhecimento. Qualquer outro requisito ou pressuposto é desnecessário para sua identificação. No momento em que se inserem, no conceito de família, além dos relacionamentos decorrentes do casamento, também as uniões estáveis e os vínculos monoparentais, faz-se mister enlaçar em seu âmbito mais uma espécie de vínculos afetivos: as uniões homoafetivas.

 

Ainda que as relações de pessoas do mesmo sexo sejam alvo do repúdio social, não podem receber do Poder Judiciário um tratamento discriminatório e preconceituoso. A generalizada resistência à adoção de crianças por casais homossexuais mostra a inaceitação de tais estruturas familiares, que, como todas as outras famílias, têm no afeto a sua razão de existir. Em nome da preservação do menor, acaba-se perpetrando verdadeiros infanticídios. O medo da repulsa social, de comprometimento psicológico ou simplesmente da falta de referências de gênero que lhe sirvam de modelo são as justificativas invocadas. Porém, nenhum estudo revela comprometimento ao pleno e saudável desenvolvimento dos filhos de pares homossexuais.

 

De uma realidade não se pode fugir: crianças convivem com parceiros do mesmo sexo quer por serem concebidas de forma assistida, quer por serem filhos de apenas um deles. Havendo convivência familiar, negar a vinculação jurídica acarreta, ao invés de benefícios, somente prejuízos. Mesmo tendo dois pais ou duas mães, a vedação de chancelar dita situação impede que o filho perceba direitos sucessórios e benefícios previdenciários. Em caso de separação, a falta de reconhecimento não permite a fixação de alimentos nem a regulamentação do direito de visitas.

 

Ante as novas formas de convívio, são necessárias uma revisão crítica e uma atenta reavaliação dos fatos sociais, para alcançar a tão decantada igualdade. É fundamental a missão dos juízes, sendo imperioso tomarem consciência de que lhes é delegada a função de agentes transformadores dos valores jurídicos que perpetuam o estigmatizante sistema de exclusão social perpetrado pelo silêncio da lei.

 

Não se pode olvidar que aquilo que é aceito pelos tribunais como merecedor da tutela jurídica acaba recebendo a aceitação social e gerando, por conseqüência, a possibilidade de cobrar do legislador a regulação das situações que a jurisprudência consolida.

 

O surgimento de novos paradigmas conduz à necessidade de rever os modelos preexistentes. A liberdade e a igualdade são princípios que impõem o reconhecimento da existência das diferenças. Esta sensibilidade deve ter o magistrado hoje: a necessidade de assegurar a plenitude dos direitos humanos, o que torna imperioso pensar e repensar a relação entre o justo e o legal.

 

Precisam os juízes enfrentar as novas realidades que lhes são postas a julgamento. Não podem ter medo de fazer justiça, para o Judiciário não receber a pecha de ser um poder incompetente e sacralizador de injustiças.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

                                                                                     

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. A lei do silêncio. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/a-lei-do-silencio/ Acesso em: 19 abr. 2024