Judiciário

Desembargador Cesar Dias Filho, meu pai

Desembargador Cesar Dias Filho, meu pai

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Ainda que a atividade profissional nos dê intimidade no manejo das palavras e colocar sentimentos no papel seja a função precípua do julgador – bastando lembrar que sentença e sentimento têm a mesma origem etimológica, ambas vêm do latim sentire -, nada é mais difícil do que falar de alguém cuja identidade aproxima, mas a distância dói.

 

Ao certo que, se hoje integro o Poder Judiciário, devo à admiração que sempre devotei ao meu pai e ao profundo respeito que sua figura exemplar me serviu de modelo. Para tentar imitá-lo, não tive medo de enfrentar uma barreira praticamente intransponível, qual seja o preconceito, que fazia com que simplesmente não fossem sequer homologados os pedidos de inscrição para o concurso de Juiz de Direito dos candidatos pertencentes ao sexo feminino.

 

Somente após ter logrado o privilégio de ser a primeira mulher a integrar a Justiça gaúcha é que vim a saber que, em todas as vezes que o Tribunal Pleno rejeitava as mulheres, dizia Cesar Dias que eu, sua filha, seria a pioneira.

 

Sem dúvida, minha maior mágoa é não ter tido a possibilidade de dar-lhe a alegria de ver seu vaticínio se tornar realidade. Tenho certeza de que orgulho teria em ver que meu ingresso também teve o ineditismo de três gerações integrarem o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Como forma de agradecer-lhe, quase que como fazendo uma prece, é que vou procurar retratar seu perfil, atendendo à solicitação do Des. Nelson Oscar de Souza, que teve a feliz iniciativa de lançar o projeto Pró-Memória.

 

Cesar Dias Filho nasceu em Canguçu-RS, em 25 de dezembro de 1910, sendo filho do Desembargador Cesar Dias e de Albertina Camargo Dias. Mesmo antes de bacharelar-se pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1936, passou a exercer a atividade judicante. De 1933 a 1942, foi Juiz Municipal em Nova Prata, Guaporé, São Sebastião do Caí e Alegrete. Quando, aprovado em primeiro lugar, como Juiz de Direito jurisdicionou as Comarcas de Santiago, Jaguarão e Passo Fundo. Em 1954, foi promovido para Porto Alegre, tendo sido juiz eleitoral, sendo que, como Presidente da AJURIS, adquiriu a sede campestre e lançou o projeto de construção de residência para magistrados. Em 1963, passou ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça.

 

Seu engajamento com a sociedade levou-o a presidir, em 1942, a Liga de Defesa Nacional em Alegrete, e, em 1949, liderou o movimento para a fundação do Ginásio Santiaguense. Criou em Passo Fundo a Oficina dos Velhos e instalou na cidade o SENAC. Foi um dos fundadores da APLUB e presidiu a Associação dos Ex-alunos Salesianos.

 

Mas foi como Juiz de Menores que se destacou no panorama nacional e internacional. Durante sua trajetória na magistratura, sempre demonstrou grande preocupação com a condição do menor abandonado e do menor delinqüente. Em Passo Fundo fundou a Federação de Menores, com o objetivo de dar ocupação aos menores carentes, sendo que possuía uma sapataria, uma fábrica de tamancos e de emoldurações de quadros, bem como um departamento esportivo, com 12 equipes de futebol. Presidiu o Consórcio de Assistência à Maternidade e à Infância, tendo organizado e presidido a Iª Conferência Nacional de Magistrados sobre a Assistência à Infância Abandonada.

 

Enquanto Juiz de Menores de Porto Alegre, cargo que ocupou de 1954 a 1958, procurou dar condições efetivas para uma recuperação mais humana aos menores infratores. Estruturou e especializou os serviços do Juizado de Menores, instituindo um quadro geral de funcionários, com todos os serviços técnicos necessários para estudos sociais e atendimentos psicológicos, além de gabinete médico e pedagógico. Intensificou o serviço de vigilância, implantando ronda e plantão permanentes. Criou setores de trabalho ao menor, núcleos esportivos, bem como o instituto de assistência semi-aberta, o lar de portas abertas e o serviço de liberdade vigiada.

 

Esse conjunto de realizações levou ao decréscimo do índice de delinqüência infanto-juvenil na Capital, com tal repercussão, que foi o primeiro magistrado brasileiro a ser convidado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos para apresentar o trabalho que desenvolveu. Nos meses de novembro e dezembro de 1957, visitou a Suprema Corte em Washington e proferiu palestras nos Tribunais de Menores de São Francisco, Boston, Chicago e New York.

 

Sua atenção, no entanto, não se voltava somente às questões referentes a infância e adolescência, não se podendo deixar de registrar também sua postura no exercício da atividade jurisdicional. A profunda atenção ao momento social identificou-o como um juiz irrequieto, sempre questionando o dogmatismo legalista e buscando soluções mais voltadas à concretização do justo. Daí ser conhecido como “o rei do voto vencido”, com o que acabou provocando, em alguns temas, profundas mudanças nos rumos da jurisprudência.

 

Como exemplo, cabe lembrar seu pioneirismo em distinguir, já no ano de 1970, os conceitos de concubina e companheira, restando, pela vez primeira, por reconhecer o direito da companheira de perceber pensão previdenciária. Ressaltando que iriam enfrentar um problema muito delicado e que não tem, a meu sentir, esta simplicidade com que foi tratado, nem esta candidez com que se resolvem problemas sociais desta envergadura, simplesmente com a invocação destes dispositivos legais já bastante antigos de um Código Civil que já tem quase 70 anos de existência, acabou por afastar a vedação do art. 1.177, dizendo:  acho alguma coisa de doloroso nessa disposição. Com base nesse dispositivo legal, a sentença havia deferido o seguro à esposa, da qual estava o instituidor separado havia mais de 20 anos, em detrimento da companheira, indicada como beneficiária, que entretinha com o de cujus uma convivência more uxorio por quase dois decênios e que restara com 8 filhos menores dessa união, sendo um nascituro.

 

Reconhecendo como sendo grave nossa responsabilidade que, aliás, não é inédita, mas já é tempo de verificarmos uma realidade que existe, acaba por questionar a legitimidade da esposa para a percepção do benefício: Que legitimidade é esta, se há mais de 10 anos, se extinguira a sociedade conjugal? Essa mulher ainda é esposa? É esposa no Registro Civil, é esposa porque tem o nome dela no assento de nascimento, mas não é mais nada de esposa.

 

Dito acórdão encontra-se publicado na Revista de Jurisprudência do TJRGS, v. 24, pp. 247:252, tendo o Des. Athos Gusmão Carneiro, destacando o pioneirismo de tal julgado, mostrado o novo caminho da jurisprudência a partir do voto do inolvidável Des. Cesar Dias Filho (Revista de Jurisprudência do TJRGS, v. 69, pp. 290:291).

 

Se dúvida mais nenhuma persiste sobre os direitos decorrentes da hoje nominada união estável, reconhecida como entidade familiar pela própria Constituição Federal, imperioso tributar esse avanço à função criadora da jurisprudência.

 

São os julgadores sem medo de fazer justiça que restam por forjar alterações no próprio sistema jurídico, fazendo-o adequar-se à realidade da vida. Com certeza, meu pai foi um deles.

 

Cesar Dias Filho faleceu a 03 de julho de 1971, deixando um exemplo de vida devotada à função social do julgador, servindo como modelo de magistrado encharcado de sensibilidade, tendo sido um marco de dinamismo e coragem na história da magistratura gaúcha.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

                                                                                     

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Desembargador Cesar Dias Filho, meu pai. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/desembargador-cesar-dias-filho-meu-pai/ Acesso em: 28 mar. 2024