História do Direito

Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: Breve análise dos crimes tipificados

TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL DE NUREMBERG: BREVE ANÁLISE DOS CRIMES TIPIFICADOS

 

Luiz Felipe Gondin Ramos

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina

 

SUMÁRIO: Resumo; Palavras-Chave; 1. INTRODUÇÃO; 2. ESTATUTO: O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS CRIMES INTERNACIONAIS, 3. ACUSAÇÕES, Os Crimes de Guerra, Crimes contra a Humanidade, Os Crimes Contra a Paz, O Crime de Conspiração e/ou Plano Comum, 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS; BIBLIOGRAFIA.

 

RESUMO

Ao final da Segunda Guerra Mundial no continente europeu, em maio de 1945, os países aliados, ao longo de conferências diplomáticas desde antes do fim do conflito, resolveram pela instalação de um Tribunal Militar Internacional para julgar os assim caracterizados Grandes Criminosos de Guerra dos Países do Eixo. Ao longo de seus trinta artigos, o documento traça princípios para seu funcionamento e tipifica os quatro crimes internacionais a serem imputados aos acusados selecionados pela Comissão de Instrução e Processo – o Ministério Público. Estes recém-criados delitos, embora apresentados de maneira confusa no Ato de Acusação, vinculam-se uns aos outros, e seu estudo um pouco mais aprofundado revela que a intenção do Tribunal, além de punir os acusados pela realização de crimes diretamente, estava na condenação dos mesmos por planejá-los, viabilizá-los e ordená-los.

Palavras-Chave: Palavras-Chave: Tribunal de Nuremberg; Tribunal Militar Internacional; Segunda Guerra Mundial; Direito Internacional; História do Direito.

 

1. INTRODUÇÃO

 

A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 com a invasão da Polônia pela Alemanha, só atinge sua conclusão, em solo europeu, em maio de 1945, deixando aproximadamente 60 milhões de mortos – o equivalente, hoje, à população da Itália.

 

No intuito de prevenir a realização de um novo conflito – até mesmo na crença de que a humanidade talvez não sobrevivesse a um embate ainda mais devastador que o que se encerrara – determinadas providências foram adotadas, em diferentes esferas de atuação internacional.

 

Aproveitando-se do clima de euforia pela vitória, e no intuito de resgatar-se uma sensação de paz duradoura, a comunidade internacional direciona seus esforços na criação de uma entidade que pudesse servir de fórum para as relações entre os países, e, tendo-se aprendido lições do fracasso da Sociedade das Nações, é assinada, em julho de 1945, a Carta de São Francisco, criando a Organização das Nações Unidas (ONU).

 

Noutra vertente, tinha-se a questão do que fazer com os inimigos capturados na guerra. Ante o fracasso das medidas punitivas do Tratado de Versalhes ao final da Primeira Guerra[1], a questão da punição à Alemanha – desde então já considerada o país agressor na guerra – ocupava seu espaço na agenda diplomática dos Aliados.

 

Tal desenvolvimento se registra pela Conferência de Moscou de 1943 e pelo Acordo de Londres de 1945[2], sendo que este último traz anexo o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. Ao longo de seus trinta artigos, o documento traça princípios para seu funcionamento, tanto no tangente a normas de direito material como processual, bem como tipifica os quatro crimes internacionais a serem imputados aos acusados selecionados pela Comissão de Instrução e Processo.

 

Estes recém-criados delitos, embora apresentados de maneira confusa no Ato de Acusação[3], vinculam-se uns aos outros, e seu estudo um pouco mais aprofundado revela que a intenção do Tribunal, além de punir os acusados pela realização de crimes diretamente, estava na condenação dos mesmos por planejá-los, viabilizá-los e ordená-los, e é este o ponto a que se dedica o presente trabalho.

 

2. ESTATUTO: O MINISTÉRIO PÚBLICO[4] E OS CRIMES INTERNACIONAIS

 

Adentrando o conteúdo do Estatuto do Tribunal, temos na leitura de seu primeiro artigo a constituição da corte, reafirmando tratar-se de realização conjunta dos quatro países signatários do Acordo de Londres: Estados Unidos,  França, Reino Unido e União Soviética. Naturalmente que a composição coincide com as nações que, àquele momento, compunham o Conselho de Controle na Alemanha – o órgão provisório criado pelos Aliados durante a ocupação conjunta do território alemão. Nos artigos restantes, lança disposições normativas materiais e procedimentais para o funcionamento do Tribunal, refletindo as intenções das potências que o redigiram.

 

Destarte, temos no artigo 06 do Estatuto a tipificação das condutas criminosas sujeitas à competência do Tribunal. O “caput” do dispositivo certifica-se de estabelecer que as práticas e atos dispostos na seqüência podem ser imputados aos Grandes Criminosos de Guerra – como indicado pelo Acordo de Londres. As três acusações são: (a) os Crimes Contra a Paz; (b) os Crimes de Guerra; e (c) os Crimes Contra a Humanidade. O mesmo artigo dispõe, ainda, que são imputáveis “dirigentes, organizadores, provocadores ou cúmplices que tomaram parte na elaboração ou na execução de um plano orquestrado ou de um complô para cometer qualquer um dos crimes acima definidos (…)”. Tal disposição dá sustentação a uma quarta acusação, desenvolvido pela promotoria e colocado no libelo de acusação como Crime de Conspiração ou Complô.

 

Dois dispositivos no Estatuto do Tribunal dispõem sobre a estrutura e funções do Ministério Público, que será formado por um Promotor-Chefe de cada signatário e tendo por objetivo, dentre outros: (a) a designação, em última instância, dos criminosos de guerra a serem levados ao Tribunal; e (b) redação do Ato de Acusação ao Tribunal.

 

3. ACUSAÇÕES

 

Embora não tenha sido registrado oficialmente, o mais próximo de um critério objetivo delineado para a seleção dos acusados foi o de escolher pessoas-chave no nazismo, de modo a representar as estruturas que detinham o poder naquele Estado.[5]

 

Tendo isto em vista, o processo foi movido em face de 24 líderes, tendo seu maior expoente em HERMANN GÖRING, presidente do Conselho de Ministros para Defesa do Reich, durante muitos anos o sucessor escolhido por Adolf Hitler, criador da Gestapo[6] e chefe da força aérea alemã – a Luftwaffe –, entre outros.[7]

 

O Ato de Acusação, confeccionado pelo Ministério Público, após apontar os indiciados, caracteriza e desenvolve os crimes criados pelo Estatuto do Tribunal, na seguinte ordem: (1) Crime de Conspiração e/ou Complô; (2) Crimes Contra a Paz; (3) Crimes de Guerra; e (4) Crimes Contra a Humanidade.

 

Ao abordar as acusações tipificadas no Estatuto, percebe-se, durante a leitura da bibliografia específica do Tribunal, que a maioria dos autores opta por ficar adstrito à ordem apresentada no Ato de Acusação e seguida durante o próprio processo. Neste trabalho, iremos fazer uma abordagem de enfoque um pouco diferenciado, e trataremos inicialmente dos itens 3 e 4 e, posteriormente, dos itens 2 e 1.

 

a) Os Crimes de Guerra

 

Provavelmente a acusação menos controversa do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. O Estatuto caracteriza os Crimes de Guerra como “as violações das leis e costumes de guerra”, completando que “essa violações compreendem, entre outras, os assassinatos, os maus tratos e a deportação para trabalhos forçados ou com qualquer outro objetivo das populações civis nos territórios ocupados”, bem como a execução de reféns e prisioneiros de guerra e homens em alto-mar, a pilhagem de cidades e vilarejos, e toda devastação não justificada para fins militares.[8]

 

Pouco é passível de argumentação por parte dos defensores, visto que no período pré-guerra já se tinham consolidado, na esfera do Direito Internacional, diversas práticas como inaceitáveis, estando tais conceitos lançados expressamente nos instrumentos diplomáticos, com especial destaque às Convenções de Haia de 1907 e Genebra de 1929. Mais do que isso, um dos principais focos do chamado “Direito de Guerra”, é justamente a caracterização dos delitos de guerra.[9]

 

Quanto ao próprio Direito de Guerra, alguns afirmam que não pode haver aplicação válida de Direito em “estado de Guerra”, por uma suposta contradição entre ambos, já que ao passo que a guerra constitui um ilícito em si – ou, como considerado em Nuremberg, um crime internacional – não faz sentido a regulação jurídica de ações bélicas, já que o Direito não pode se dispor a organizar ou regularizar a prática de um crime. Tal argumento, segundo FÁBIO KONDER COMPARATO, “impressionante à primeira vista pelo seu aparente rigor lógico, não é, contudo aceitável” – mesmo considerando-se a guerra um crime, pelos conceitos modernos de Direito Internacional, porquanto “nada impede que se reconheça a prática, por qualquer das partes beligerantes, de outros ilícitos no desenrolar do conflito”.[10]

 

O maior questionamento que se poderia levantar a respeito da acusação de “crimes de guerra”, na verdade, seria se a aplicação destes aos réus ali presentes era válida, pela natureza ilícita da prática. Ocorre que se tratam de delitos personalíssimos, e, portanto, como se poderia acusar aqueles homens pelas condutas de terceiros?[11]

 

O caminho encontrado pelo Ministério Público ampara-se em dois alicerces fundamentais: a maciça documentação adquirida provando a emissão de ordens para o cometimento de tais crimes e a própria instituição, pela Alemanha Nazista, do “Princípio do Líder”, que estabelecia – como explicado pelo próprio HERMANN GÖRING, quando fora interrogado por seu advogado, Dr. OTTO STAHMER – que a autoridade era depositada, pelo povo, em seu Líder, de quem esta descendia, legitimando progressivamente seus subordinados, ao passo que a responsabilidade seguia o caminho inverso na pirâmide social – da base para o topo[12].

 

A peça de acusação lista diversas condutas que se encaixam na tipificação, e fundamenta-se juridicamente no Regulamento de Haia de 1907 que dispõe sobre as condutas a serem seguidas em relação aos prisioneiros de guerra e pelos exércitos ocupantes em territórios ocupados.

 

O regulamento veda expressamente condutas como: pilhagem (artigo 47); obrigar habitantes a jurar lealdade ao ocupante ou a fornecer informações sobre o exército inimigo (artigos 45 e 44). Estabelece, indubitavelmente, que prisioneiros de guerra devem ser tratados humanamente, inclusive sendo repatriados ao final do conflito (arts. 04 e 20).[13]

 

b) Crimes Contra a Humanidade

 

Considerada por muitos como o grande legado do Tribunal de Nuremberg, a caracterização dos Crimes Contra a Humanidade é dividida em dois tópicos: (1) o “Assassinato, extermínio, escravidão, deportação e outras ações desumanas cometidas contra populações civis antes e durante a guerra” e (2) a “Perseguição política, racial e religiosa na execução e em conexão ao plano comum mencionado na Acusação 1”.

 

Trata-se na verdade, esta acusação, de extensão do anterior. Isto fica claro pela colocação, no Ato de Acusação, que “todos os fatos elencados na Acusação 03 também constituem Crime Contra a Humanidade”.

 

Adicionando os dois tópicos mencionados, porém, o Estatuto passa a incluir uma série de condutas para as quais não havia precedentes sequer na tipificação dos delitos nos Direitos Internos, muito menos no ordenamento internacional.

 

Na descrição das acusações, o Ministério Público expõe que “os réus adotaram uma política de perseguição, repressão e extermínio de todos os civis na Alemanha que eram, ou acreditava-se serem, ou mesmo que se acreditava que viriam a ser, hostis ao governo nazista”. Para a aplicação desta política, teriam aprisionado pessoas sem qualquer processo judicial, em campos de concentração, onde elas estariam sujeitas a atos degradantes, como escravidão, tortura e assassinato.[14]

 

No tangente à perseguição política, racial e religiosa, são elencadas as contagens de cidadãos – judeus e de outros segmentos sociais – mortos e assassinados em campos de concentração nos territórios ocupados pela Alemanha Nazista. Pressupondo que a realização de tais delitos fora motivada pela “Conspiração e Plano Comum” a que se refere a primeira acusação, também discrimina a doutrinação anti-semita.[15]

 

A opinião de muitos autores de que a caracterização desta acusação representa o mais importante legado de todo o processo vivenciado em Nuremberg reside no fato de ser esta a primeira vez que – nas palavras do presidente TRUMAN – “reconhece-se formalmente que existem Crimes Contra a Humanidade” (grifou-se). [16]

 

A expressão não traduz fidedignamente, porém, a real amplitude de sua conquista. “Humanidade”, por mais que saibamos tratar-se da soma de vários indivíduos, ainda remete à idéia de pluralidade, induzindo a acepção de que o delito só é passível de acontecer quando realizado em face de grupos, quando, em verdade, reconhece formalmente que o ser humano tem direitos inerentes pelo simples fato de ser um ser humano,[17] e não apenas aqueles direitos emanados do Estado.

 

Muito mais do que Crimes de Guerra, a Segunda Guerra testemunhou atrocidades que iam além do que a consciência comum era, ou ainda é, capaz de imaginar.[18] Não traduzia a realidade reduzir tais condutas a simples violações de tratados sobre práticas inaceitáveis durante a guerra.

 

A caracterização dos Crimes Contra a Humanidade, mais do que inovação jurídica, representou a formalização do desenvolvimento histórico do Direito Humanitário, que vinha surgindo no âmbito internacional em esfera consuetudinária, e já encontrava referências em diversos dispositivos, como no preâmbulo da Segunda Convenção de Haia Referente às Leis e Costumes de Guerra Terrestre:

 

Esperando que um Código mais completo das leis da guerra possa ser redigido, as Altas Partes contratantes julgam oportuno fazer constar que, nos casos não compreendidos nas disposições regulamentares adotadas por elas, as populações e os beligerantes ficam sob a salvaguarda e sob o império dos princípios do direito das gentes, como resulta dos usos estabelecidos entre nações civilizadas, das leis da humanidade e das exigências da consciência pública (grifo nosso).[19]

 

Aplicando-se tais princípios ao caso em tela, vê-se que a ausência de convenções celebradas entre os Estados não dispensa da aplicação dos costumes internacionais, e que estes se baseiam, em última análise, em princípios comuns à humanidade.

 

Esta acusação, portanto, pavimenta o caminho para a concepção moderna de Crime de Genocídio[20], permitindo que os réus sejam acusados pelas condutas que posteriormente vieram a ser conhecidas sob um mesmo termo: “Holocausto”.

 

c) Os Crimes Contra a Paz

 

Tal acusação, de curta descrição tanto no Estatuto do Tribunal quanto no Ato de Acusação, resume-se, na prática, à denúncia de preparação e desencadeamento de uma Guerra de Agressão, violando a ordem internacional pacífica e os tratados firmados.

 

Segundo GONÇALVES, “a Guerra de Agressão é o elemento do tipo, constitutivo do crime contra a paz, o qual é o objeto próprio da acusação e do julgamento”.[21]

 

 A acusação elencou as declarações de guerra da Alemanha Nazista a partir de 1939 como as condutas que caracterizaram o ilícito da denúncia, não deixando de incluir, também, os atos de agressão anteriores ao início do conflito, como a remilitarização da região da Renânia e a ocupação da Boêmia e da Morávia.[22]

 

O maior arcabouço jurídico da acusação reside, porém, em diversos tratados internacionais e pactos de não-agressão firmados pela Alemanha, destacando-se ainda a ameaça ao ambiente de segurança coletiva moldado pelas Convenções de Haia e – principalmente – reafirmado pelo Pacto Briand-Kellog[23].

 

d) O Crime de Conspiração e/ou Plano Comum

 

Construção típica do direito anglo-americano, o Crime de Conspiração e Plano Comum descreve que os acusados agiram seguindo uma mesma concertação, com o objetivo de cometer os crimes elencados nas demais acusações.

 

O libelo acusatório, no tópico relativo às “Particularidades da Natureza e Desenvolvimento do Plano ou Conspiração”, coloca o Partido Nacional-Socialista como elemento central aglutinador dos acusados e como meio destes para alcançar o poder utilizando-se das ferramentas do regime democrático de Weimar para, a partir de então, promover a realização dos demais crimes, adotando as práticas elencadas na peça acusatória.

 

O grande problema desta acusação reside em sua inexistência nos sistemas jurídicos da Europa continental. Grande parte das negociações para a confecção do Estatuto do Tribunal Militar Internacional em Londres e, posteriormente, da confecção do Ato de Acusação giraram exatamente em torno da inclusão ou não do Crime de Conspiração e/ou Plano Comum em seu ordenamento. Enquanto os americanos viam neste crime o coração de todo o julgamento, os franceses simplesmente achavam a acepção absurda e completamente desamparada pelo Direito Internacional, por ser muito vaga e confusa. Por outro lado, como poderia ser tal conduta compatível com o “Princípio do Líder”, alicerce do ordenamento da Alemanha Nazista? [24]

 

Tomemos as elucidativas palavras de EHRENFREUND quando aborda o controverso tema:

 

No Direito anglo-americano, a conspiração criminosa é definida genericamente como um acordo de vontades entre duas ou mais pessoas para cometer ilícitos. Jackson acreditava que a acusação era vital para o caso por que não possuía qualquer evidência que os acusados haviam cometido eles mesmos quaisquer das atrocidades. Alguns jamais visitaram um campo de concentração. Isto fazia difícil provar sua culpa. No caso da acusação de conspiração, tudo que precisava fazer era provar que os acusados concordavam com os crimes alegados, o que poderia ser feito através de provas circunstanciais. Não seria necessário provar acordos ou reuniões formais. (…)

Na verdade, a acusação de conspiração é muito simples: você planeja com outra pessoa de cometer um crime e pronto, é isto.[25]

 

Na acepção anglo-americana, “complô” implica a reunião de dois elementos: o acordo de vontades e o consenso acerca dos procedimentos – mas na prática a prova do primeiro aspecto é suficiente para considerar a culpabilidade. O conceito franco-germânico de conspiração possui um espectro muito mais estreito, relativo principalmente a questões de Estado. Muito mais apropriado à hipótese, para eles, seria o conceito da cumplicidade, que, pelo sistema europeu continental, significava o envolvimento na preparação para o delito, mas não necessariamente na execução deste. [26]

 

No processo em Nuremberg, esta foi a primeira acusação listada, e a primeira apresentada à corte. Na medida em que era sustentada pelo Ministério Público, ia-se formando a impressão de que englobava todo o processo, uma vez que se lastreava na orquestração ordenada do cometimento dos outros três crimes. Conseqüentemente, as acusações restantes apresentadas tornaram-se repetitivas e entediantes ao público.[27]

 

E é neste ponto que se justifica a escolha, no presente trabalho, de abordar por último esta que normalmente é colocada à frente das acusações. Neste momento se começa a evidenciar que não se trata de uma acusação autônoma, mas diretamente vinculada às demais. A simples acusação de conspiração é vazia se não houver um ilícito sobre o qual se conspira, e é exatamente por isso que o Estatuto não elenca Conspiração e/ou Plano Comum entre as alíneas do artigo sexto.

 

O grande objetivo da acusação de Conspiração e/ou Plano Comum não fora o de imputar aos acusados uma conduta propriamente ilícita, mas sim o prová-los responsáveis por consentir com ela, furtando-se de impedi-la ou viabilizando-a. Provar a existência de tais condutas era o objetivo das acusações restantes.

 

Talvez isto tivesse ficado mais claro se esta não fosse a primeira acusação a ser apresentada ao Tribunal. De qualquer modo, fez-se bastante evidente nas alegações finais da Promotoria, pelas palavras do Promotor-Chefe Americano, ROBERT JACKSON:

 

O que estes homens ignoram é que as ações de Hitler são também suas ações. Foram esses homens, em meio a milhões, e foram esses homens liderando milhões, que construíram Adolf Hitler, e concederam à sua personalidade psicopata não apenas pequenas decisões, mas também aquelas relativas à guerra e à paz. Eles o intoxicaram com poder e adulação; eles alimentaram seu ódio e seus receios. Eles colocaram-lhe uma arma carregada em suas mãos ansiosas e deixaram-lhe que puxasse o gatilho, e, quando o fez, àquele tempo, todos aprovaram.

(…)

Admitiria que Hitler fosse o vilão-chefe – mas não seria verdade se os réus creditassem-lhe toda a culpa. Outras pernas precisavam correr suas jornadas; outras mãos precisavam executar seus planos. Com quem Hitler contava senão com estes presentes ao banco dos réus? (grifou-se)[28]

 

Tais palavras lembram outras, datando de 1872, por um determinado jurista:

 

A responsabilidade por tal estado de coisas não recai sobre a parcela da população que infringe a lei, mas sobre aquela que não tem coragem de lutar por sua observância. Quando o direito é expulso do lugar que lhe pertence, não devemos culpar a injustiça, mas o direito que com isso se conformou. Se tivesse de classificar os preceitos ‘não pratique injustiças’ e ‘não tolere injustiças’ segundo sua importância prática nas relações humanas, colocaria em primeiro lugar a regra ‘não tolere injustiças’ e, em segundo, ‘não pratique injustiças’. É que, pela própria natureza do homem, este se sentirá impedido na prática de uma injustiça antes pela certeza de uma resistência decidida da parte do titular do direito que pela simples norma, pois esta, se deixarmos de lado o obstáculo oposto à infração, no fundo não terá outra força senão a do preceito moral.

(…) uma vez admitida a verdade do que acabo de expor, isto é, que ao defender seu direito o titular também defende a lei, e com ela a ordem essencial à vida em sociedade, ainda haverá quem negue que tal defesa representa um dever para com a sociedade? Se esta pode convocar um cidadão para a luta contra o inimigo externo, uma luta na qual é empenha a própria vida, se, portanto, a qualquer um cabe o dever de defender os interesses comuns contra o inimigo externo, tal dever não prevalecerá também no interior do país? Será que os homens corajosos e de boa vontade não devem unir-se e congregar forças na defesa contra o inimigo interno, tal qual fazem contra o inimigo externo? (…) A justiça e o direito não florescem num país pelo simples fato de o juiz estar pronto a julgar e a polícia sair à caça dos criminosos; cada qual tem de fornecer sua contribuição para que isso aconteça. (grifou-se) [29]

 

Tais lições, escritas sessenta e um anos antes da ascensão do Nazismo na Alemanha, são algumas dentre os ensinamentos presentes no livro “A Luta Pelo Direito”, escrito pelo jurista – alemão – RUDOLF VON IHERING.[30]

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O episódio em Nuremberg, apesar de carregar o arcabouço jurídico que dá o tema de análise deste trabalho, foi um julgamento eminentemente político, fato que se constata não apesar pelas circunstancias – em que os vencedores julgam os vencidos – como pelo próprio texto do estatuto, que veda a utilização de determinados argumentos à defesa.

 

Tais imperfeições, porém, não tornam a experiência inválida, devendo servir, muito mais, de motivação para o incremento das iniciativas advindas futuramente.

 

Tanto assim o é que podemos perceber em diversas esferas do Direito, destacadamente na área Internacional, a utilização de conceitos que possuem suas raízes nos dispositivos criados em Nuremberg, como a caracterização do Crime de Genocídio, desenvolvida pela ONU e adotada posteriormente pelo Brasil.

 

Se a recente instalação do Tribunal Penal Internacional em Haia representa um grande passo na consolidação de uma justiça de caráter global, não é exagero afirmar que em Nuremberg se deu o primeiro passo, afinal – não à toa – algumas similaridades podem ser facilmente percebidas na leitura de ambos– mas isso já é tema para outro artigo…

 


 

BIBLIOGRAFIA

 

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[1] Embora o Tratado de Versalhes tenha estipulado o julgamento do Kaiser Guilherme II, este conseguira abrigo diplomático nos Países-Baixos, que se recusou a extraditá-lo, alegando que o crime cometido por este tinha “caráter político”. In: ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 17ª Edição. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 787.

[2] A primeira, de 1943, caracterizava os “Grandes Criminosos de Guerra” como aqueles cujas ações delituosas não tenham localização específica, transcendendo, portanto, o critério geográfico, o que impediria que fossem enviados à determinada região para que fossem julgados segundo as leis locais, enquanto a segunda, de 1945, estruturava o próprio Tribunal, trazendo anexo seu Estatuto. Curiosamente, nesta ocasião os Países-Baixos subscreveram o Acordo, registrando seu apoio à formação daquele Tribunal. In: RAMOS, L. F. G. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: Análise Histórica e Legado Jurídico. Monografia (Graduação em Direito): Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. p. 25-28.

[3] Equivalente ao “Libelo Acusatório”.

[4] Quanto ao nome do órgão, convém esclarecer que, pela tradução adequada do Estatuto, o correto é “Comissão de Instrução e Processo”, que por sua vez funciona de maneira muito mais semelhante aos “General Prosecutors” do direito anglo-americano que o “parquet” francês ou o Ministério Público em nosso ordenamento. Porém, no intuito de adotar nomenclatura mais prática, adotar-se-á neste texto o nome do correspondente brasileiro, ainda que não seja o mais adequado.

[5] EHRENFREUND, Norbert. The Nuremberg Legacy: How the Nazi War Crimes Changed the Course of History. Nova Iorque: Palmgrave Macmillan, 2007, p. 22.

[6] Polícia política secreta alemã.

[7] Da lista de acusados, três não estavam presentes durante o processo: MARTIN BORMANN, Secretário de Hitler e membro do Conselho para Defesa do Reich, estava desaparecido e foi julgado à revelia [7]; GUSTAV KRUPP, presidente da maior firma de manufatura de armamentos da Alemanha e grande financiador das políticas de Hitler, encontrava-se com a saúde seriamente debilitada, o que levou o Tribunal à conclusão que estava incapaz de suportar o julgamento; e ROBERT LEY, Chefe da Frente de Trabalho e General das SA, suicidou-se antes do começo dos trabalhos do Tribunal. In: EHRENFREUND, Norbert. Op. cit. p. 22-24.

[8] INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Trial of the Major War Criminals before the International Military Tribunal, Nuremberg 1945-46. Vol. 1. 42 vols. Nuremberg: IMT, 1947. p. 11.

[9] GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. Rio de Janeiro, RJ: Renovar. p. 130.                                                                                 

[10] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª Edição. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 173-174.

[11] GONÇALVES, Joanisval Brito. Op. cit. p. 131.

[12] MARRUS, Michael. The Nuremberg War Crimes Trial 1945-46: A Documentary History. Boston: Bedford Books, 1997. p. 105.

[13] CONVENTION RESPECTING THE LAWS AND CUSTOMS OF WAR ON LAND AND ITS ANNEX. HAGUE, 18 OCTOBER 1907. International Humanitarian Law – Treaties & Documents. Regulations concerning the Laws and Customs of War on Land., 2005. Disponivel em: <http://www.icrc.org/IHL.NSF/INTRO/195?OpenDocument>. Acesso em 05 jun 2009.

[14] INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Op. cit. p. 27.

[15] Idem.

[16] MARRUS, Michael. Op. cit. p. 189.

[17] EHRENFREUND, Norbert. Op. cit. p. 121.

[18] Na atualidade, crescem os movimentos que negam sistematicamente a ocorrência do Holocausto. Exemplo prático e imediato se encontra na figura do Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.

[19] II CONVENÇÃO DE HAIA REFERENTE ÀS LEIS E COSTUMES DE GUERRA TERRESTRE – 1907 apud GONÇALVES, Joanisval Brito. Op. cit. p. 166.

[20] “Quando foi criado o Tribunal de Nuremberg, ainda não estava em uso o termo genocídio, cunhado por um jurista polonês, Rafat Lemkin, em 1944, ao lançar nos Estados Unidos uma campanha de esclarecimento da opinião pública mundial sobre o massacra dos judeus poloneses.” In: COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit. p. 243.

[21] GONÇALVES, Joanisval Brito. Op. Cit. p. 126.

[22] Idem. p. 124.

[23] Firmado em 1928 entre os EUA e a França, trata-se de um pacto multilateral aberto a qualquer signatário em que os países renunciavam à guerra de agressão como instrumento político a ser adotado por seus signatários.

[24] EHRENFREUND, Norbert. Op. cit. p. 16. (tradução-livre)

[25] Ibid. p. 39.

 

[26] GONÇALVES, Joanisval Brito. Op. cit. p. 117.

[27] EHRENFREUND, Norbert. Op. cit. p. 35.

[28] JACKSON, Robert H. apud CONOT, Robert. Justice at Nuremberg. Nova Iorque: Basic Books, 1983. p. 468-470. (tradução-livre)

[29] IHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 61-62.

[30] A adoção das palavras de IHERING não implica na remissão a este autor como pioneiro no tema, uma vez que a questão da responsabilidade coletiva em relação à manutenção do Estado Democrática já se encontrava presente nos escritos de PLATÃO. In: DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus Inimigos: a repressão política na história do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 36.

Como citar e referenciar este artigo:
RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: Breve análise dos crimes tipificados. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/tribunal-militar-internacional-de-nuremberg-breve-analise-dos-crimes-tipificados/ Acesso em: 25 abr. 2024