História do Direito

Justiça E Tribunais No Brasil Colônia

Cristine Helena Cunha *

 

 

Para melhor compreensão do funcionamento da justiça colonial brasileira, é necessário antes ver o que se passava em Portugal na época.

 

 

 

Portugal

 

 

 

No reinado de D. João II (1481-1495), cria-se o Desembargo do Paço, grande órgão da administração da justiça: um Conselho de Justiça (responsável por administrar todos os outros tribunais; nomear juízes, corregedores e desembargadores – é o órgão superior do sistema judicial). “Ao lado dele estão os altos tribunais do reino: em primeiro lugar a Casa de Suplicação de Lisboa; em segundo lugar a Mesa de Consciência e Ordens (cuja competência abrangia as matérias eclesiásticas, as Ordens Militares)”.

 

Havia também os tribunais intermediários (ou relações): a Relação do Porto (criada em 1580), a Relação de Goa (Índia), a Relação da Bahia e a do Rio de Janeiro (1609 e 1751, respectivamente).

 

Os cargos judiciais eram:

 

§         Juiz de fora: nomeados pelo rei, para exercerem uma jurisdição que competia com a dos juízes ordinários, leigos e eleitos pelas Câmaras; portavam uma vara (bastão) branca em público.

 

§         Corregedores: jurisdição era definida como uma Comarca; função de ouvir recursos, investigar, inspecionar eleições, denunciar criminosos, supervisionar os serviços públicos.

 

§         Juízes de órfãos: função de cuidar das causas envolvendo órfãos, ausentes, escravos, irmandades ou associações religiosas leigas.

 

§         Ligados à justiça, mas sem exercerem jurisdição: oficiais auxiliares (escrivões, inquiridores, meirinhos, etc.).

 

 

 

Para ter maior controle do aparelho judicial, a Coroa criou vários cargos com jurisdições que se sobrepunham e regulou o sistema “de modo a permitir cada vez mais que os tribunais mais próximos do rei pudessem ouvir apelos e recursos vindos de tribunais e magistraturas locais e inferiores”.

 

A partir de 1539, “exigiu-se de todo juiz de fora e corregedor o título de bacharel universitário em direito”.

 

 

 

 

 

Brasil

 

 

 

A administração da justiça no período das capitanias hereditárias era competência dos donatários que, como soberanos da terra, eram os administradores, juízes e chefes militares.

 

O mesmo documento que designava esses poderes, a Carta de Doação, também orientava para a criação da primeira autoridade da Justiça Colonial, o cargo de ouvidor, que era designado e subordinado aos senhores donatários pelo prazo de três anos, com possível renovação, tendo meramente a função de representantes judiciais dos proprietários das capitanias, com competência sobre ações civis e criminais.

 

Nessa época das capitanias, havia a tripartição dos poderes jurisdicionais:

 

§         Juízes municipais (ordinários, das Câmaras): ocupando a base do sistema;

 

§         Justiça senhoril dos donatários e governadores: justiça intermediária exercida pelos ouvidores, ora exclusiva (dependendo da pessoa ou da matéria), ora instância de recurso da decisão municipal;

 

§         Tribunais superiores (de apelação): no topo estavam os tribunais da Metrópole, com competência de ouvir apelações e agravos, diretamente ligados ao rei.

 

Com o advento dos governos-gerais, a situação mudou de forma considerável, sendo criada uma justiça colonial, possível graças à reforma político-administrativa que impôs um sistema de jurisdição centralizadora, regida pela legislação da Coroa. No regimento de Tomé de Sousa, menciona-se o seu Ouvidor-geral, que ocuparia o topo da hierarquia na vida judiciária colonial, os donatários deveriam submeter-se a ele, começando então a diminuição dos poderes dos donatários.

 

“Ao lado do ouvidor vinha o séqüito de oficiais menores: escrivão para lavratura dos atos (autos) do processo, tabelião (para a redação de documentos como notário), meirinhos (oficiais de diligências), eventualmente os inquiridores (cuja função era tomar os depoimentos das testemunhas e inquiri-las), etc.”.

 

Em 1549, com o primeiro governo-geral, aumentaram as responsabilidades burocráticas e fiscais, fazendo que os primeiros ouvidores se tornassem ouvidores-gerais, com mais poderes e menos dependência da administração política.

 

Tal realidade refletia o desejo da Coroa de melhorar a justiça, assim como centralizar mais o poder e, no ano seguinte, o interesse dessa pela colônia aumentou, fazendo com que o ouvidor-geral adquirisse cargos cada vez mais poderosos, tanto quanto eram os de governador-geral e de provedor-mor da fazenda. Para resolver as questões de justiça, seu poder era quase ilimitado, sujeito apenas a seu próprio arbítrio e sem o direito de apelação.

 

“Na medida em que o governo do Brasil saiu das mãos dos donatários das capitanias e passou a ser diretamente controlado pela Coroa, os funcionários judiciais (…) assumiram importantes funções políticas e administrativas”.

 

Quanto mais aumentavam as cidades e a população, maior era o número de conflitos e a necessidade de expandir o quadro de funcionários da justiça. Sendo assim, foi implantado um sistema semelhante ao português:

 

§         Primeira instância: juízes singulares, divididos em ouvidores, juízes ordinários e juízes especiais (de vintena, de fora, de órfãos, de sesmarias, etc.);

 

§         Segunda instância: juízes colegiados que se agrupavam em Tribunais de Relação, seus membros eram chamados de desembargadores e suas decisões eram os acórdãos;

 

§         Terceira instância: Tribunal Superior, com sede na Metrópole, representado pela Casa de Suplicação (que posteriormente teve uma sede no Brasil, mesmo assim continuou sendo uma “instituição remota para a maioria dos brasileiros”).

 

 

 

Criado em 1587 para atuar na Colônia, o primeiro Tribunal de Relação não chegou a entrar em funcionamento, pois os dez ministros nomeados não puderam sair de Portugal. Posteriormente, a Metrópole constituiu um segundo Tribunal de Relação, regulamentado em 7 de março de 1609, com intuito de ocorrer no estado da Bahia, mas devido à invasão holandesa, o Tribunal foi suspenso temporariamente por um alvará expedido em 5 de abril de 1626, sendo reaberto somente em setembro de 1652, por interesse da Câmara Baiana.

 

O tribunal foi constituído com dez desembargadores, todos letrados e, “estando a Bahia na rota de navegação para a África, a Relação ficou incumbida de julgar causas dos territórios africanos”. Também era função dessa Relação fiscalizar a Câmara de Salvador e todos os “oficiais de justiça” e o poder inspetivo (ou de polícia).

 

“Os castigos ou penas mais comuns, seguindo critérios normais da época eram multas, degredo (obrigação de residência em certo lugar), marca com ferro para identificar certos tipos como criminosos, espancamento e morte por enforcamento ou decapitação”. A prisão não era utilizada como pena, apenas tinha a função preventiva, de assegurar as investigações ou garantir a ordem. Os criminosos eram beneficiados por cartas de fiança, sendo assim, os brancos compravam sua liberdade e os negros eram resgatados por interesse de seus donos. Portanto quem sofria as penas eram os brancos pobres, os libertos, os artesãos e os trabalhadores braçais.

 

“Era caro e desconfortável para os desembargadores irem até o sertão fazer residências ou correições”, desse modo “o sertão tornava-se sinônimo de esconderijo e terra sem lei”.

 

O funcionamento desse Tribunal, assim como também viria a acontecer no Rio de Janeiro, consolidou-se numa forma de administração judiciária não mais dominada pelo ouvidor-geral, e sim centrada na burocracia de funcionários treinados pela Metrópole e compreendia em “três situações do ponto de vista jurídico processual. Era uma instância recursal e enquanto tal recebia dois tipos de recursos: as ações e os agravos. Recebia ações novas nas áreas civil, criminal e do patrimônio estatal, em certos casos. Possuía, também, competência avocatória em situações de juízo criminal.” (WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. “A Atividade Judicial do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751 – < xml=”true” ns=”urn:schemas-microsoft-com:office:smarttags” prefix=”st1″ namespace=””>1808”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 156 (386): jan./mar. 1995, p. 81.).

 

Os magistrados eram leais e obedientes aos interesses reais, evitando ao máximo o envolvimento com a vida local, através de regras como a permanência por apenas certo período de tempo no mesmo lugar e a proibição de casar sem licença especial. Para exercer essa atividade profissional era necessário ser graduado pela Universidade de Coimbra, ter exercido a profissão por dois anos, ter sido selecionado através do exame de serviço público realizado pelo Desembargo do Paço em Lisboa, além de uma origem social privilegiada. A carreira iniciava como “juiz de fora”, em seguida ouvidor da comarca e corregedor, podendo ser designado tanto para a Metrópole como para as colônias.

 

Outros Tribunais de Relação foram implantados no Brasil: em 1751 no Rio de Janeiro (para maior “integração” do sul do País e maior eficácia da máquina judiciária), em 1812 no Maranhão e em Pernambuco no ano de 1821.

 

Junto ao organismo judiciário da época, existiam as Juntas de Justiça, já referidas pelo Regimento de Tomé de Souza, que passaram a ter maior importância a partir de 18 de junho de 1765, quando se tornaram extensivas a todo território brasileiro, onde houvesse ouvidores. Os tribunais eram compostos pelo ouvidor da capitania e de dois letrados adjuntos, responsáveis pela sentença em certas partes do País.

 

Analisando a administração da justiça no período colonial, Stuart B. Schwartz relatou a convivência e a inter-relação de duas, complexas e opostas, formas de organização sócio-política:

 

§         As “relações burocráticas, calcadas em procedimentos racionais, formais e profissionais”;

 

§         As “relações primárias pessoais baseadas em parentesco, amizade, apadrinhamento e suborno”.

 

“O entrelaçamento desses dois sistemas – burocracia e relações pessoais – projetaria uma distorção que marcaria profundamente o desenvolvimento de nossa cultura jurídica institucional”.

 

Em virtude desse entrelaçamento, surgiu um fenômeno chamado “abrasileiramento”, “a corrupção das metas essencialmente burocráticas, porquanto os critérios de validade passavam a ser imputados a pessoas, à posição social e a interesses econômicos”.

 

É indiscutível o fato de que no Brasil-Colônia, “a administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação colonial”.

 

É importante ressaltar, que além das formas convencionais de administração da justiça, havia a forte presença da Igreja Católica e sua “justiça eclesiástica acolhida e resguardada pela Inquisição”. Apesar de não ter existido um Tribunal Inquisitorial do Brasil, “a Inquisição teve atuação marcante na Colônia com as chamadas Visitação do Santo Ofício” e, em casos muito graves, os acusados eram mandados ao Tribunal Inquisitorial de Lisboa.

 

 

 

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 58-71.

 

LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História – Lições Introdutórias. São Paulo, p. 259-266.

 

 

 

*Acadêmica de Direito da UFSC

 

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito

Como citar e referenciar este artigo:
CUNHA, Cristine. Justiça E Tribunais No Brasil Colônia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/just/ Acesso em: 20 abr. 2024