História do Direito

O Liber Iudiciorum e o direito visigótico

Liber Iudiciorum and Visigothic law.

Resumo

Este estudo, cujo objetivo é apresentar alguns fatos e características do Código Visigótico, foi realizado a partir da leitura de textos de especialistas e das fontes primárias.

Primeiramente, é feita uma breve contextualização histórica dos visigodos e das leis que antecederam o Código Visigótico para ajudar o leitor.

Em seguida, a estrutura do Código é analisada bem como o contexto político em que ele foi promulgado e tecem-se então algumas considerações finais.

Palavras-chave: Direito visigótico. Código visigótico. Liber Iudiciorum. Fuero Juzgo.

Abstract

The purpose of this paper is to present some facts and features of the Visigothic Code and it was based on the study of the specialized literature and the primary sources.

First, an overview of the Visigoths is provided alongside with a brief description of the law and legislation that were produced before the Visigothic Code so that the historical context is known to the reader.

Then, the structure of the code is analyzed as well as the political context in which it was promulgated, and some closing remarks are made.

Keywords: Visigothic law. Visigothic code. Liber Iudiciorum. Fuero Juzgo

Sumário

1. Introdução.

2. Os visigodos e as leis visigóticas anteriores ao Código Visigótico.

3. O Código Visigótico (Liber Iudiciorum, Fuero Juzgo).

4. Considerações Finais

O Direito Visigótico

1. Introdução

Estudar o Direito que se desenvolveu na Península Ibérica desde a antiguidade tardia até a invasão árabe desvela a produção intelectual de uma sociedade em formação, rica e receptora, em que os costumes dos bárbaros vitoriosos mesclaram-se com as instituições dos habitantes da antiga Hispânia, adaptando-as a novas realidades.

2. Os Visigodos

De início, deve-se notar que os registros de períodos de transição e consolidação de um grupo são geralmente mais escassos, menos preservados, mais duvidosos. Não é diferente no que tange às origens dos visigodos[1], mas pode-se afirmar, com bastante segurança, que são aquele povo que se destacou do grupo germânico godo e que ocuparam o sul da atual França e constituíram um reino cuja capital era Toulouse. Mais tarde, devido à pressão dos francos, acabaram por cruzar os Pirineus e se fixaram em quase toda a Península Ibérica, transferindo a capital para Toledo.

Consideremos, portanto, o reino visigodo que se inicia com a ascensão de Alarico I em 395 d.C. e que se estende até 711, ano em que a invasão árabe pôs fim ao reinado de Rodrigo, compreendendo, assim, um período de aproximadamente 300 anos.

Desde muito cedo, os visigodos entraram em contato com os romanos, negociando e fazendo alianças. Assimilaram muito de sua cultura e de suas instituições e, definitivamente, contribuíram para preservar a cultura romana ocidental da antiguidade tardia, construindo uma civilização culturalmente rica e desenvolvida [2].

No período inicial do recorte temporal deste trabalho, os visigodos eram cristãos arianistas, ou seja, adotavam o entendimento de Ário de Alexandria, divergente no tocante à consubstanciação da Trindade e à natureza divina de Jesus. Todavia, acabaram por se converter ao catolicismo, no reinado de Recaredo (Ricardo) em 589 d.C.

Em relação ao desenvolvimento do Direito, deve-se ponderar que havia a necessidade de se regular as relações dessa sociedade que se construía sobre uma cultura mais antiga, com instituições políticas e jurídicas bem desenvolvidas, ainda que decadentes. Assim, os visigodos mantiveram o seu direito costumeiro e também utilizaram o direito romano vulgar para regular as questões havidas entre eles e os hispanos-romanos.

De modo geral, o direito dos povos germânicos era um direito costumeiro[3] que foi, aos poucos, sendo registrado em compilações em latim vulgar. Vários povos germânicos produziram suas compilações, servindo, inclusive, umas de subsídio e inspiração às outras. Curioso notar a esse respeito que, sendo as fontes escassas e, muitas vezes, conservadas inadequadamente, o trabalho de reconstrução/ reconstituição do texto passa por cotejá-lo com diferentes versões o que, no caso das compilações das leis germânicas da alta idade média, significa comparar a compilação de um povo com aquela de outro. Nos estudos especializados, há sempre referência e comparação com compilações de outros povos bárbaros e, ainda, utilizam-se textos mais completos de uma compilação para inferir e preencher lacunas de outro.

A maior parte dos estudiosos entende que entre os povos germânicos, inclusive os visigodos, vigia o princípio da personalidade do Direito, o que explica a coexistência de diferentes compilações, até o momento em que não se fez mais distinção no que diz respeito à aplicação do direito entre essas populações. No caso da Península Ibérica, é seguro afirmar que o princípio territorialista já estava bem sedimentado quando da promulgação do Liber Iudiciorum[4].

Ainda assim, há alguns poucos historiadores que defendem a ideia da revogação sucessiva dos códigos e da territorialidade do Direito, sem encontrar muitos entusiastas para suas hipóteses.

Note-se que essas classificações são necessárias a fim de organizar o estudo e auxiliar na compreensão da sociedade da época. Desnecessário dizer que a organização política, econômica e social da época era muito diferente do que a que conhecemos hoje, bem como o acesso à justiça e os meios de comunicação e difusão do conhecimento. A premência desse período de reacomodação e reorganização fazia com que, ainda que se identifiquem padrões comuns, esses limites de aplicação da lei se redefinissem e se remodelassem de região para região e a depender do período, até mesmo porque, a despeito da noção de reino e tentativa de centralização administrativa, havia também os poderes locais, períodos de instabilidade, ataques e retomadas de aldeias, povoados e regiões inteiras. Portanto, a cultura ibérica desse período é um caldeirão em que tem mais peso a cultura dos visigodos que foram, ao longo desse período de 300 anos, se impondo, mas que recebeu influência e assimilou as culturas romana e dos demais povos bárbaros – suevos, burgúndios, vândalos – com quem os visigodos conviveram, ainda que de forma pouco amistosa, isso sem se desconsiderar a influência do cristianismo e, após 589, especificamente e de maneira crescente aquela do catolicismo.

Assim, os estudiosos dividem as compilações do período em Lex Romana Barbarorum, aplicada aos hispano-romanos, e Leges Barbarorum que, apesar de serem identificadas como o direito dos povos bárbaros, reproduziam muito do direito romano vulgar, sendo, por exemplo, a própria ideia de compilação, emprestada do Império.

Primeiramente, concentremo-nos na cronologia da Lex Romana Barbarorum.

a. Código Teodosiano (439 d.C)

O Código Teodosiano era a compilação vigente[5] na Península Ibérica à época da ocupação visigoda e, por isso, optamos por mencioná-lo no início deste tópico, ainda que, tecnicamente, seja um código romano. Foi, em grande parte, por causa desse processo de manutenção e assimilação promovido pelos visigodos que conhecemos o direito romano vulgar vigente da antiguidade tardia ocidental.

b. Edito de Teodorico (Edictum Theodorici, 453/ 466 d.C.)

Há dúvidas sobre sua origem e ano de publicação. Alguns estudiosos apontam que teria sido promulgado por Teodorico, o Grande, rei dos Ostrogodos, outros afirmam que o edito teria sido compilado sobre o governo do rei Teodorico I, mas promulgado por Teodorico II, ambos no reino de Toulouse.

O texto chegou até nós por meio do Editio Princeps de Pierre Pithou (1579) e alguns fragmentos do manuscrito da época.

É uma compilação de partes do Código Teodosiano, Gregoriano e Hermogeniano, incluindo ainda as sentenças de Paulo. É composto de 154 capítulos, versando, principalmente, sobre direitos penal, processual e civil.

c. Breviário de Alarico (Lex Romana Visigothurum, Breviarium Alarici, 506 d.C.)

É uma compilação de excertos do Código Teodosiano, Gregoriano e Hergemoniano, novellae pós-teodosianas, um resumo das Institutas de Gaio, além de interpretações doutrinárias.[6] É atribuída a Alarico II, rei dos visigodos e é uma das compilações mais conservadas da alta idade média.

Agora, voltemo-nos para as Leges Barbarorum, de fontes mais escassas.

a. Código de Eurico (Codex Euricianus)

Apenas uma pequena parte (títulos 74 a 336) chegaram até nós, ainda que de maneira fragmentada. A maior parte do texto pôde ser reconstruído porque o Codex Euricianus foi largamente reproduzido na Lex Baiuvariorum e no próprio Liber Iudiciorum, em que recebeu a denominação lex antiquae. Trazia, além dos costumes germânicos, normas de direito romano.

b. Código de Leovigildo (Codex Revisus)

Foi compilado no reinado de Leovigildo e tinha como base o Código de Eurico, além de incluir as leis extravagantes havidas nos reinados posteriores, advindo daí o nome revisus.

Além das compilações da lei, há de se sublinhar a importância dos Concílios, a partir de 589, que eram assembleias onde se reuniam o bispado e a nobreza para deliberarem sobre assuntos religiosos e administrativos.

Luiz Carlos de Azevedo explica que

“com Recaredo, convertem-se os visigodos ao catolicismo (589) e, a partir de então, os concílios passam a ter grande importância na estrutura política do reino, porque, além dos assuntos eclesiásticos, discutia-se nessas assembléias matéria de natureza administrativa, econômica e civil. Delas participavam os altos dignatários eclesiásticos, representantes das sedes episcopais juntamente com o monarca, nobres e membros do palatinado, da Corte visigótica. Nas reuniões deste órgão legislativo ditavam-se normas e cânones, ocorrendo singular fusão entre o Direito secular e o Canônico, a qual iria servir de fonte ao futuro Código Visigótico.

Para que se tenha ideia da transcendência das questões ali levantadas, oportuno lembrar o cânone II, do XIII Concilio de Toledo (683), que estabeleceu o chamado “habeas corpus” visigótico; dizia ele que nenhuma pessoa vinculada ao rei por juramento de fidelidade, exceto e m caso de culpa evidente, poderia ser presa, acorrentada, desapossada de seus bens, torturada para que se arrancasse por força a confissão, antes de ser apresentada à assembleia, conservando, até o julgamento, seus direitos e prerrogativas; e às pessoas livres, posto que de condição inferior, guardava-se igual procedimento.[7]

De mais a mais, há também uma coleção de 46 fórmulas conhecidas como fórmulas visigóticas (Formulae Wisigothicae), que têm datação imprecisa e origem ainda bastante debatida e que, calcula-se, foram compiladas entre 615 e 620. Essas fórmulas chegaram até nós por um manuscrito de autoria de Ambrosio de Morales no século XVI, que por sua vez é a cópia de um manuscrito do código ovetense, compilado pelo bispo Pelayo que viveu no século XII, cuja idoneidade em relação a textos é bastante discutível[8].

Recorria-se frequentemente a esses modelos contratuais não só no reino de Toledo como também no império carolíngio e essas fórmulas foram reorganizadas, recompiladas e reescrita ao longo do tempo, perdendo sua precisão e originalidade.[9] Sua fundamentação jurídica é consensualmente apontada como sendo o Breviário de Alarico e há fragmentos de contratos encontrados em diversas partes da Europa ocidental que podem ser, de algum modo, relacionados às fórmulas visigóticas.[10]

O conteúdo dos 46 modelos é bastante diversificado, tratando dos mais variados tipos de negócios jurídicos, tais como as relações entre homens livres, servos e, ainda, escravos; negócios de compra e venda, doações à Igreja, a preferência do contrato escrito àquele simplesmente oral e a prova testemunhal, apenas para citar alguns exemplos.[11]

3. O Código Visigótico (Liber Iudiciorum, Fuero Juzgo)

O Livro dos Julgamentos (Liber Iudiciorum)[12] foi promulgado em 654 d.C, sob o reinado de Recesvinto, após sua aprovação no VII Concílio de Toledo e seguiu em vigor por todo o período de dominação árabe até a edição das Siete Partidas em 1450[13].

Originalmente escrito em latim, foi reeditado em castelhano por Fernando III de Castela em 1241 e recebeu o nome de Fuero Juzgo. Há indícios de que houve também uma versão em catalão no século XII, uma versão asturiana e outra, árabe.

É composto de 12 livros, subdivididos em 54 títulos, sendo que a maior parte dessas leis já se encontravam no Código de Eurico e são chamadas de antiquae. Há algumas poucas de Recaredo e Sisebuto e, ainda, de Chindasvinto, identificadas com seu nome e título Flavius Chindasvintus Rex, e, claro, de Recesvinto (Flavius Reccesvintus Rex). Era destinado a todos os habitantes do reino de Toledo, sem distinção de origem.

O Liber Iudiciorum é reflexo da nova organização político-social que se desenvolvera na Península Ibérica, um amálgama de bárbaros germânicos e hispano-romanos de orientação católica, sob a proteção e comando do “bom” rei [14] que recebeu de Deus o poder para administração do reino e, com ela, a administração da justiça.

O Livro I discorre sobre a lei e o legislador e o II sobre causas e processo. Direito sucessório, casamento e nascimento são regulamentados no Livro III e IV e o V trata de doação, compra e venda e outros contratos. O direito penal é disposto em 4 livros (VI ao IX). O Livro X trata de compra e venda de terras, limites e demarcações. Há disposições sobre médicos, sobre os mortos e doentes e mercadores de outras terras no livro XI. O Livro XII dedica-se ao hereges e judeus.

A historiadora Céline Martin estuda o contexto político da promulgação do Liber Iuduciorum. Ela aponta que as reformas judiciárias foram em grande parte promovidas pelo soberano anterior Chindasvinto, pois mais da metade das leis novas foram editadas por esse monarca, ao passo que o esforço de compilação[15] é atribuído a Recesvinto.

As disposições do Código Visigótico não deixam dúvidas quanto ao monopólio do monarca no tocante à criação do direito e a proibição do uso de qualquer outra lei que não o Liber Iudiciorum[16].

Chama atenção seu preâmbulo programático a justificar as reformas administrativas e judiciárias, como bem descreve Céline Martin:

“Os princípios que guiam as reformas de Recesvinto são expostos por um lado no livro I de seu código. Por outro nos atos do VIII Concílio de Toledo que, em dezembro de 653, acompanhou de perto a morte de Chindasvinto. Propriamente falando, as “leis” do livro I do Liber Iudiciorum são apenas sentenças no sentido filosófico, o que motiva sem dúvida o chiste de Carlos Petit pretendendo ver no corpus legal visigodo somente um “momento a mais na produção patrística latina da Antiguidade Tardia”49. O conjunto do preâmbulo, artificialmente divido em dois títulos e quinze leis, pode, na realidade, ser lido de modo sequencial: o emprego entre as leis dos advérbios de ligação (tunc primo, tunc deinde, autem) mostra que eles compunham originalmente um só e mesmo texto.

A primeira parte, uma das mais longas, introduz a descrição do ofício de legislador (artificium condendarum legum), desenvolvida pelas oito seguintes. A segunda parte do preâmbulo, consagrada à lei, é composta de cinco breves sentenças, cujo título e às vezes o próprio conteúdo são inspirados em Isidoro de Sevilha50: Quid obseruabit legislator in legibus suadendis (I, 2, 1) ; Quid sit lex (I, 2, 2) ; Quid agit lex (I, 2, 3) ; Qualis erit lex (I, 2, 4) ; Quare fit lex (I, 2, 5). Enfim a última “lei” do livro, Quod triumphet de hostibus lex (I, 2, 6), é também a mais longa, pois comporta um vintena de linhas. Concluindo a empreitada de legislação, ela convida ao combate: “Assim, tendo sido concluídas estas coisas para a paz doméstica, […] é preciso marchar sobre o inimigo com potência e confiança”51. A vitória sobre os inimigos externos resultará, com efeito, da paz interior da concordia ciuium, obtida graças à iustitia e à moderação das leis.”

Outro ponto que deve ser destacado é o detalhamento da organização e hierarquização judiciária presente no livro II, cabendo somente ao rei à nomeação dos juízes[17], a exceção dos casos em que um árbitro é eleito pelas partes.

Razões políticas acarretaram uma situação incomum e que, em outros contextos, geraria insegurança: o caráter retroativo da lei. Paradoxalmente, é a segurança que vem a justificar a retroatividade, que corrige as arbitrariedades do rei anterior.

Aqui convém lembrar que Chindasvinto e Recesvinto eram pai e filho e o segundo governou concomitantemente ao primeiro durante 4 anos para preparar a sucessão. Nesse ponto, note-se que a sucessão no reino visigodo não era hereditária e Recesvinto, para se legitimar e se manter no poder, usou e, depois, desvinculou sua imagem daquela de seu pai[18]. Isso porque o reinado de Chindasvinto foi marcado pela perseguição política a um determinado grupo aristocrático rival, que, ainda forte, exigia reparação pelos danos impingidos.

A construção teórica para sua legitimação veio alicerçada nas ideias de Isidoro de Sevilha, por meio do aconselhamento de Bráulio de Saragoça, e Eugênio de Toledo e contrapunha o mau ao bom rei. No pensamento isidoriano, rei e bispo eram escolhidos de Deus para cuidar dos cristãos. O rei o faz pela justiça e piedade, ou seja, deve fazer justiça, corrigir e punir os governados, de maneira pia e sem excessos.

No contexto em que chegar e se manter no poder exigia força, habilidade e governabilidade, opor-se à imagem do pai, após a ascensão ao poder, autorizava, inclusive, a imposição de medidas que revogassem as arbitrariedades do monarca anterior, daí o Liber retroagir até o segundo ano do reinando de Chindasvinto[19], atingindo as medidas arbitrárias de confisco e a edição de uma lei penal que punia crime político com a pena de morte.

Não obstante o contexto histórico imediato de sua promulgação, o Liber Iudiciorum é o fruto de um processo de adaptações, fusões e amadurecimento do povo da Península Ibérica. Os bárbaros visigodos são, por vezes, descritos como um povo que sagazmente aprendeu com a cultura mais antiga e desenvolvida dos romanos, extraindo, adaptando e assimilando muitos institutos. Foram, como já mencionado, responsáveis pela preservação das instituições romanas e de muito da cultura romana vulgar da antiguidade tardia.

O desenvolvimento do direito visigótico reflete a riqueza desse processo, desde as primeiras compilações e a aplicação do direito pessoal até a adoção do princípio da territorialidade e o monopólio da criação de leis nas mãos do soberano – a concentração de poder, a exemplo dos imperadores romanos e suas constituições, bem servia aos interesses dos reis visigodos.

As disposições sobre a vida civil tinham que ser regulamentadas, mas requeriam simplificações por isso as diferenças entre propriedade e posse deixaram de ser tão evidentes, como fora outrora para os romanos, e o contrato de compra e venda passou a transferir a propriedade. Além desse, outro exemplo de adaptação à nova conformação da sociedade é a abolição da proibição de casamento entre romanos e visigodos já no reinado de Leovigildo no século VI.

4. Considerações finais

Observou-se que os visigodos foram um povo germânico que se fixou na Península Ibérica e que manteve contato com diversos outros povos. Assimilaram muito da cultura romana vulgar tardia e contribuíram para a sua preservação, inclusive, no que diz respeito a várias compilações de leis, que foram utilizadas e adaptadas à nova realidade que surgia.

Como os outros povos bárbaros, seu direito era pessoal e, por um período, vários direitos conviveram no reino visigodo.

Todavia, com sua fixação permanente na Península Ibérica, iniciou-se um processo de fortalecimento do poder do rei que contribuiu para a unificação dos direitos aplicados e adoção do princípio da territorialidade. Houve, assim, a promulgação do Código Visigótico (Liber Iudiciorum ou Fuero Juzgo) durante o reinado de Recesvinto no século VII, cujo estudo mostra toda a complexidade de um povo que, não dispondo de tantos recursos, adaptava-se e adaptava o que tinha à disposição. Se, de um lado, houve, por exemplo, uma simplificação dos conceitos de propriedade e posse desenvolvidos pelos romanos; de outro, as fórmulas visigóticas mostram a crescente preferência pelo contrato escrito.

O Liber Iudiciorum vigeu por quase 800 anos e cabe a nós dedicarmo-nos ao estudo de suas continuidades e rupturas a fim de identificarmos a evolução do direito ibérico e, por via de consequência, do direito brasileiro.

Bibliografia

AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: RT, 2013.

BENITEZ, Alberto Rosas. Génesis del Derecho Medieval, Siglos de Integración. Guadalajara: Editorial Hexágono, 1991

GARRIDO, Manuel García. Tradición Romanística Medieval en los Principios Contractuales Visigóticos. Revista de Derecho UNED, n. 12, p. 245 – 256, 2013. Disponível em < http://revistas.uned.es/index.php/RDUNED/article/view/11695>  Acesso em 30 abr. 2015.

MARTIN, Céline. A Reforma Visigótica: Os “Anos de Recesvinto”. Revista “Diálogos Mediterrânicos” – “Dossiê “Literatura e Mediterrâneo”. n. 4, p. 97- 115. jun/2013. Disponível em < http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/download/77/74 > Acesso em 22 abr.2015

MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano: Ed. Saraiva, 1995.

MERÊA, Paulo. Estudos de Direito Visigótico. Coimbra: Tip. da Atlântida, 1948.

OLAITZ, Edorta Córcoles. About the origin of the” Formulae Wisigothicae”. Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, n. 12, p. 199-222, 2008, disponível em <http://hdl.handle.net/2183/7493>, data de acesso 18/05/2015.

OLAITZ, Edorta Córcoles. El Contrato de Compraventa a la Luz de las Fórmulas Visigodas. RIDROM: Revista Internacional de Derecho Romano 1, p. 309-330, 2008. Disponível em <www.ridrom.uclm.es/documentos/Edorta_imp.pdf >Acesso em 30 abr. 2015.

PETIT, Carlos. Derecho Visigodo del Siglo VII. Un Ensayo de Síntesis e Interpretación. Hispania gothorum. San Ildefonso y el reino visigodo de Toledo. p. 75-85, Toledo: Empresa pública Don Quijote SA, 2007. Disponível em <http://www.uhu.es/jhering/pubs/petit004.pdf> Acesso em 28 mar 2015

PETIT, Carlos. Sobre la Práctica Jurídica del Sur Peninsular: las Fórmulas Notariales Godas. Luis A. García Moreno (ed.), Historia de Andalucía, II. (Andalucía en la Antigüedad tardía: de Diocleciano a Rodrigo). p. 184-189. Barcelona y Sevilla, Planeta-Fundación J.M. Lara, 2006. Disponível em <www.uhu.es/jhering/pubs/petit005.pdf> Acesso em 30 abr 2015

The Visigothic Code (Forum iudicum), ed. and trans. by S.P. Scott (Print edition: Boston Book Company, 1910). Disponível em < http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm> Acesso em 05 mai 2015.

 

Telma Silva Araújo

Mestranda no núcleo de direito processual civil do programa de pós-graduação da PUC/SP. Advogada.



[1] Os visigodos eram parte de um grupo maior de bárbaros germânicos, os godos. Não há consenso sobre a hipótese de os godos terem se originado na região da Escandinávia meridional e, posteriormente, atravessado o Mar Negro e, depois, o Mar Báltico e se fixado, temporariamente, nos Balcãs. Mais tarde, devido às pressões dos hunos, rumaram em direção ao norte da península itálica e Gália. Todavia, por conta de investidas do povo franco, cruzaram os Pirineus e dominaram a Hispânia, em quase toda a sua extensão, até a conquista mulçumana em 711 d.C.

[2] En primer lugar, las fórmulas nos devuelven la imagen de una sociedade culturalmente desarrollada ? como no es fácil encontrar en Occidente tras la caída del Imperio. Los refinados conocimientos bíblicos y acaso patrísticos de sus autores (cf. FV 20, 39; FV 37), la inesperada familiaridad de uno de ellos con la métrica latina (FV 20), el recurso creativo al derecho del Breviario (FV 1, 2, 13, 18, 19, 21, 22, 35, 44)… son elementos de interés que indican una cultura difusa (cf. FV 7, único caso de un outorgante que ignora las letras), coherente por demás con los magníficos logros alcanzados en los campos de la teología, la literatura, la legislación (tanto canónica como secular). Así puesto al servicio de una robusta “civilización de lo escrito” (Riché) el formulario visigótico resulta instrumento pero también avanzadilla de usos documentales adaptados a la práctica contractual; la tradición tardo-romana favorable a la forma escrita pudo entonces cuajar en numerosas medidas legales que privilegiaron la escritura frente a la simple manifestación oral, aun la realizada en presencia de testigos (a título de ejemplo, LV 2,3,2 y 3 sobre el mandato-procuración; LV 3,1,5 y 9 sobre la dote; en general, cf. LV 2,5,18, Egica. (PETIT, Carlos. Sobre la Práctica Jurídica del Sur Peninsular: las Fórmulas Notariales Godas. Luis A. García Moreno (ed.), Historia de Andalucía, II. (Andalucía en la Antigüedad tardía: de Diocleciano a Rodrigo). p. 184-189. Barcelona y Sevilla, Planeta-Fundación J.M. Lara, 2006, p. 9. Disponível em <www.uhu.es/jhering/pubs/petit005.pdf > Acesso em 30 abr 2015.

[3] Fundado exclusivamente no costume, o Direito germânico mais antigo não trazia leis ou documentos escritos e qualquer reconstrução a esse respeito, esbarra na falibilidade, já que nas inscrições rupestres encontradas pode ter ocorrido a influência do Direito Romano, ao tempo e m que o Império gozava desta hegemonia, de modo a alterar o sentido original das disposições porventura ali transcritas.

Assim, as fontes se situam mais nas descrições relatadas pelos autores romanos, como César, Tácito, Dione, Cássio e outros; nas lendas provenientes da exuberante mitologia germânica, e, principalmente, neste período de contato, na legislação que foi sendo gradativamente editada e que trazia o nome dos povos que a seguiam e respeitavam: lei dos francos, (pactus legis salicae) dos burgúndios, ripuários, etc; e, entre estas, as leis dos visigodos. (AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: RT, 2013, p. 85)

[4] … os historiadores do direito consideram hoje que, no mais tardar, a partir do Codex Reuisus de Leovigildo (568-586), a legislação visigótica se tornara territorial, sem que o direito romano cessasse no entanto de ser aplicável aos assuntos do reino godo. (MARTIN, Céline. A reforma visigótica da justiça: Os “anos de Recesvinto”, http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/download/77/74 em 22/04/2015, p. 99

[5] A norma jurídica deixa de produzir seus efeitos quando termina sua vigência, se o prazo estiver nela estipulado. Não havendo estipulação de prazo, revoga-se a norma por uma que lhe seja contrária: lex posteriori revocat lex priori. A revogação pode dar-se também pelo costume: quer por regra contrária por ele introduzida, quer pela simples inaplicação constante da norma (desuetudo). Essa última forma foi a característica da evolução do direito em Roma. As regras antiquadas, caindo em desuso, eram praticamente abolidas, ainda que não expressamente.” (MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. Ed. Saraiva, 1995, p. 25.)

[6] The Lex Romana Visigothorum (or: Breviarium Alarici) is the most widely used and most complete Roman legal corpus of the Early Middle Ages. It was issued in 506 by the Visigothic king Alaric II and regarded as the official law code up to the year 654, when it was replaced by the Liber Iudiciorum of King Reccesvinth. The Breviarium combines excerpts from the Theodosian Code, a collection of posttheodosian novels, the pseudo- Pauline sentences, a version of the Institutiones of Gaius called Gai Epitome, excerpts from the codices Gregorianus and Hermogenianus, as well as a single responsum of Aemilius Papinianus at the end. Interpretations are added to almost all parts of the Lex. The union of imperial law and Roman jurisprudence in one corpus thus succeeded around 30 years before Justinian’s attempts to do so.

Many shortened versions of the Lex Romana Visigothorum, the so-called epitome, arised, largely based on interpretations of the content. The most important one is the Epitome Aegidii, named after the first editor Petrus Aegidius, who published them in 1517. It was only in 1528 when Johannes Sichardus made a first print of the Lex Romana Visigothorum in Basle. A lot of other epitomizations exist, some of them only surviving in single manuscripts (e.g. the Epitome Guelferbytana, the Epitome Lugdunensis and the Epitome codicis Seldeni). Including its Epitome the Lex Romana Visigothorum is preserved in more than 90 witnesses. ( http://www.leges.uni-koeln.de/en/lex/lex-romana-visigothorum/, acesso em 23/06/2015)

[7] AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: RT, 2013, p. 86.

[8] Aunque este alto eclesiástico fuera responsable de notorias falsificaciones, nada permite atacar la autenticidad de unas fórmulas que sirvieron no sólo en el reino astur-leonés donde operaba Pelayo; más bien hay que pensar que se tomaron de libros antiguos, con probabilidad um códice compuesto en el sur (¿acaso en la misma Córdoba, tan rica en manuscritos hacia el Ochocientos?) y llevado al norte cristiano por la mozarabía entre los escritos reclamados por las empresas culturales de Alfonso II y Alfonso III. Publicado a mediados del siglo XIX por Rozière (1854), las ediciones usuales del formulario se deben a Karl Zeumer (1886) y Juan Gil (1972; por alguna razón falta FV 46). Bernardino Martín Mínguez publicó otra transcripción, con versión castellana y diversos comentarios de discutible acerto (1919-1920), en tanto Angel Canellas, autor de un completo estudio sobre los diplomas visigodos (1979), reprodujo las fórmulas pero les atribuyó diversas dataciones, con la consiguiente dispersión de los textos en un corpus presentado cronológicamente. (PETIT, Carlos. Sobre la Práctica Jurídica del Sur Peninsular: las Fórmulas Notariales Godas. Luis A. García Moreno (ed.), Historia de Andalucía, II. (Andalucía en la Antigüedad tardía: de Diocleciano a Rodrigo). p. 184-189. Barcelona y Sevilla, Planeta-Fundación J.M. Lara, 2006, p. 1-2. Disponível em <www.uhu.es/jhering/pubs/petit005.pdf > Acesso em 30 abr 2015)

[9] A partir del lamentable grado de conservación se ha supuesto la intervención tardía de un escriba con aspiraciones literarias, sin escrúpulos a la hora de amputar los elementos más jurídicos de las piezas que recopilaba; el colmo desemejante intervención sería un ejemplo de donación marital, redactado en hexámetros (FV 20). (PETIT, Carlos. Sobre la Práctica Jurídica del Sur Peninsular: las Fórmulas Notariales Godas. Luis A. García Moreno (ed.), Historia de Andalucía, II. (Andalucía en la Antigüedad tardía: de Diocleciano a Rodrigo). p. 184-189. Barcelona y Sevilla, Planeta-Fundación J.M. Lara, 2006, p. 2. Disponível em <www.uhu.es/jhering/pubs/petit005.pdf > Acesso em 30 abr 2015)

[10] A respeito de fórmulas contratuais de outros povos germânicos e sua possível relação com as fórmulas visigóticas e a tentativa de estabelecimento de sua origem, cf OLAITZ, Edorta Córcoles. About the origin of the” Formulae Wisigothicae”. Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, n. 12, p. 199-222, 2008, disponível em <http://hdl.handle.net/2183/7493>, data de acesso 18/05/2015.

[11] La sociedad de las fórmulas se revela, en segundo lugar, una compleja amalgama de hombres libres y siervos (FV 1 a 5), de dignidades eclesiásticas (FV 6, 45) y generosos reyes (FV 9, 10), de monjes que ofrecen el propio ser al monasterio (FV 45, 46) y aristócratas que donan un cuantioso patrimonio a la iglesia (FV 25) y los altares del mártir local (FV 7, 8) o dotan con esplendidez a sus bellas esposas (FV 14 ss, FV 20). Sin embargo, por debajo de tan nítido panorama entrevemos una extendida red de vínculos de dependencia. Pervive la vieja esclavitud y son frecuentes los negocios que tienen a los esclavos como objeto (cf. FV 11, serui uenditio, donde el vendedor garantiza que el seruus no era pendenciero, fugitivo ni vicioso), pero las transformaciones que están en marcha se manifiestan en la importância cobrada por el patrocinio (FV 3, 5); el estatuto jurídicos de los libertos, titulares de tierras dominicales (cf. otra vez FV 5) y acaso testigos muy útiles cuando surge un pleito (FV 40), no sería diferente al de aquellos precaristas que solicitan la concesión de parcelas “pro excolendum” y se comprometen a pagar un canon anual “ut colonis est consuetudo” (FV 36, 37). A pesar de los préstamos en dinero (FV 42; FV 44) alguno se vería tan reducido como para llegar (“necessitate uel miseria”) al extremo de autovenderse (FV 32); no extraña entonces que esos desgraciados se den a la fuga tarde o temprano, por más que los dueños los persigan con todos los medios a su alcance (cf. FV 43). Tan sólo si otro dominus les protege (o les captura), en los términos del monje que deja el monasterio (cf. FV 45), tal vez hubiera una triste escapatoria…. (PETIT, Carlos. Sobre la Práctica Jurídica del Sur Peninsular: las Fórmulas Notariales Godas. Luis A. García Moreno (ed.), Historia de Andalucía, II. (Andalucía en la Antigüedad tardía: de Diocleciano a Rodrigo). p. 184-189. Barcelona y Sevilla, Planeta-Fundación J.M. Lara, 2006. p.10. Disponível em <www.uhu.es/jhering/pubs/petit005.pdf > Acesso em 30 abr 2015)

[12] Trata-se aparentemente do título original. As numerosas cópias sucessivas deste livro levaram o nome muito bíblico de Liber Iudicum (Livro dos Juízes) e, a partir do século IX, em um ambiente carolíngio de retorno à personalidade das leis, o de Lex Visigothorum. (MARTIN, Céline. A reforma visigótica da justiça: Os “anos de Recesvinto”, http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/download/77/74 em 22/04/2015, p. 99)

[13] Não contaria, o Código Visigótico, entretanto, tão-só com estes parcos sessenta anos de vigência; malgrado a invasão, por força de circunstâncias várias, entre elas a de não desejarem os sarracenos maior contato com cristãos, infiéis a Mafoma, continuaram estes a utilizar-se das leis que lhes eram próprias, fazendo-o, todavia, à custa de largo preço.

Assim, não-obstante carregados de tributos, “pagos por cabeça ou por mês” lograram os cristãos alcançar “proteção e perfeita tolerância civil e religiosa ” (Coelho da Rocha, M. A., “Ensaio sobre a História do Governo e da legislação em Portugal” p. 36).

O “Líber judiciorum” continuará, desta forma, a vigorar junto ao povo conquistado, mesmo porque o ânimo dos vencidos, por não aceitar a derrota desde o momento e m que esta ocorreu, passará a dar ensejo à obstinada e paulatina reconquista. (AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: RT, 2013, p.89)

[14] Toda a construção ideológica da “reforma” recesvintiana repousa na oposição entre um passado repugnante e um presente luminoso, à semelhança do leito real descrito por Eugênio de Toledo. Recesvinto não somente cuidou de cortar todos os laços entre ele e seu pai, afirmando receber seu poder de Deus, recusando que os bens obtidos pelos confiscos de Chindasvinto fossem transmitidos a seus herdeiros e anulando, por medidas retroativas, uma parte de seu legado judiciário; ele se esforça, igualmente, em apresentá-lo com a imagem de um tirano cuja dureza realça, por contraste, sua própria conformação à imagem isidoriana do bom rei. (MARTIN, Céline, op. cit., p.111)

[15] No entanto, uma hipótese alternativa e já antiga atribui a Chindasvinto o primeiro código de leis redigido desde Leovigildo37, e esta conta com a adesão da especialista atual no Liber, Yolanda Garcia Lopez38. Parece que os juristas de Recesvinto trabalharam na base de um primeiro código, compilado sob o reino do velho soberano, para elaborar o Liber Iudiciorum. O epistolário de Bráulio de Saragossa testemunha, por volta de 651, o envio por Recesvinto de um importante manuscrito ad emendandum39: penosamente, Bráulio realizou ali as correções requeridas e o dividiu em tituli; reenviando-o a Recesvinto, ele sinalava que os copistas reais poderiam sempre se referir, em caso de dúvida sobre a sua versão, aos capítulos de onde ela saiu (ad eras de quibus edita sunt). Esta versão originada daquela em que Bráulio de Saragossa trabalhou ao longo dos últimos meses de sua vida corresponde sem dúvida ao código de Chindasvinto, que Recesvinto pretendia remodelar com sua ajuda40: O processo é lançado dois anos antes da morte do rei, o qual, no entanto, foi aparentemente mantido de fora. Além das correções pontuais e da reorganização do código, Bráulio pode intervir na redação do preâmbulo formado pelo livro I, inteiramente datado de Recesvinto. Este se compõe de duas partes puramente teóricas, uma sobre o legislador e outra sobre a lei.

A elaboração de um código acabado, dotado de um preâmbulo programático, sobre o qual falaremos mais tarde, dividido em doze livros (à semelhança do código de Justiniano41?) e apresentando-se como um sistema jurídico ordenado e autônomo que excluía outras fontes de direito é, portanto, obra de Recesvinto, enquanto o empreendimento da codificação e da renovação do corpus legislativo é de seu pai. São assim os juristas de Chindasvinto que realizaram o trabalho de base que permitiu as reformas; sob o preço de um reordenamento da matéria, Recesvinto reivindicou sua auctoritas promulgando em seu nome o Liber Iudiciorum. O edito de promulgação é identificado à lei II, 1, 5 de Recesvinto, De tempore quo debeant leges emendatae ualere, ausente nas versões posteriores do Liber.(MARTIN, Céline. A Reforma Visigótica: Os “Anos de Recesvinto”. Revista “Diálogos Mediterrânicos” – “Dossiê “Literatura e Mediterrâneo”. n. 4, p. 97- 115. jun/2013, p.103 Disponível em <http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/download/77/74 > Acesso em 22 abr.2015)

[16] LV, II, 1, 11, Ne excepto talem librum qualis hic, qui nuper est editus, alterum quisque resumat habere.

Apud MARTIN, Céline. A Reforma Visigótica: Os “Anos de Recesvinto”. Revista “Diálogos Mediterrânicos” – “Dossiê “Literatura e Mediterrâneo”. n. 4, p. 97- 115. jun/2013, p.100. Disponível em <http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/download/77/74 > Acesso em 22 abr.2015.

[17] É igualmente ao rei que Recesvinto reserva a designação dos juízes, à exceção dos casos em que os adversários entrem em acordo para escolher um árbitro: somente poderão proferir sentenças judiciárias quem tenha recebido a potestas iudicandi do rei ou, eventualmente, do consenso das vontades (MARTIN, Céline, op. cit., p. 100)

[18] A reforma da justiça dos anos 650 deve então ser compreendida, em larga medida, como uma construção ideológica destinada a concluir a troca de soberano começada com a associação ao trono de 649. Após a conjuração de Froia de 653, nenhuma revolta marca o reinado de Recesvinto, que morre tranquilamente em um de seus domínios, Gerticos, nos últimos dias do mês de agosto de 672.

Os “anos Recesvinto” da reforma da justiça começaram assim muito antes da morte de Chindasvinto, durante seu reinado conjunto. As reformas empreendidas por Chindasvinto foram completadas por Recesvinto, cujos frutos colheu transformando-as em máquina de guerra dirigida contra a figura de seu pai. Chindasvinto tornado modelo de “mau rei”, Recesvinto encarnava o “bom rei”, e portanto um sucessor incontestável. Tal procedimento prenuncia o da “retórica carolíngia da melhoria”106 utilizada no século VIII para desqualificar o regime merovíngio: a reforma, ao mesmo tempo que um fim em si (em um plano talvez mais metafísico do que prático) é igualmente um instrumento ofensivo de propaganda. (MARTIN, Céline. A Reforma Visigótica: Os “Anos de Recesvinto”. Revista “Diálogos Mediterrânicos” – “Dossiê “Literatura e Mediterrâneo”. n. 4, p. 97- 115. jun/2013, p.114-115)

[19] …leges in hoc libro conscriptas ab anno secundo diue memorie domni et genitoris mei Chindasuindi regis in cunctis personis ac gentibus nostre amplitudinis imperio subiugatis omni robore ualere decernimus […] apud MARTIN, Céline. A Reforma Visigótica: Os “Anos de Recesvinto”. Revista “Diálogos Mediterrânicos” – “Dossiê “Literatura e Mediterrâneo”. n. 4, p. 97- 115. jun/2013, p.104.

Como citar e referenciar este artigo:
ARAÚJO, Telma Silva. O Liber Iudiciorum e o direito visigótico. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/historia-do-direito/o-liber-iudiciorum-e-o-direito-visigotico/ Acesso em: 28 mar. 2024