Filosofia do Direito

Verdade: aletheia, veritas ou emunah?

 


Na Grécia clássica a expressão phronésis designava sabedoria. Phronésis estava sempre associada a outras duas palavras: aletheia (verdade) e eudaimonia (harmonia, felicidade). A sabedoria, pois, só teria o seu sentido completo quando formasse uma triangulação com a verdade e a felicidade.


Parece-me impossível ter phronésis sem aletéia. Ao passo que, tendo phronésis e aletéia, a felicidade, a harmonia são inevitáveis. O triângulo se completa.


Buscar a verdade – aletéia – seria buscar distinguir aquilo que é impressão dos sentidos, o que está impregnado com o nosso arbítrio, com a nossa instabilidade de humores, tudo, enfim, que nos é subjetivamente próprio – do que é produto da razão, onde encontraremos conhecimentos universais, iguais para toda a humanidade. Infelizmente, não é com a aletéia que o Direito está comprometido. O Direito está comprometido com a veritas dos romanos – que significa “afirmação de um fato”. Ou seja, buscamos a melhor narrativa do fato, e não o fato em si.
Conseqüentemente, o compromisso do Direito é com a estabilidade.
E o que é estabilidade? É firmeza, solidez, segurança.


Realmente causa estranheza ver-se buscar firmeza, solidez, segurança com veritas, e não com aletéia.


Parece-me que, assim procedendo, temos alcançado tão-somente a manutenção do status quo, que nada tem a ver, em verdade, com estabilidade. Porque a tão falada e protegida estabilidade é segurança tão-só para uma minoria, cada vez mais reduzida nos tempos de crise; para a maioria da população a manutenção do status quo nada tem a ver com segurança, firmeza, solidez.


Mas no Direito o processo busca a estabilidade. E o faz através de ficções. Ficções jurídicas.


A palavra ficção tem significados como: ato ou efeito de fingir; simulação, fingimento. Coisa imaginária, fantasia, invenção, criação.


Bem, como o Direito não busca aletéia, mas sim veritas, faz sentido que faça mesmo uso de ficções.


Dentro do Direito Processual Civil, essas ficções buscam estabilizar o processo – o mais rápido possível.


Isso nos faz lembrar da celeridade, hoje tão decantada. Tentam com todo vigor, todo empenho nos fazer crer que buscam-na, mas isso tem sido tão-somente uma forma de “mudar” para manter a mesma situação anterior. Ou seja, faz-se toda uma mise-en-scêne, toda uma encenação para todos pensem que haverá, enfim, uma substancial mudança na situação, não raro, caótica. Mas, trata-se apenas de uma prestidigitação política, econômica ou legislativa para fazer crer à maioria de que atende ao seu clamor, mas que tem como único objetivo continuar mantendo favorável a situação para alguns.


Os gregos entendiam a phronesis como a capacidade de lucidez na deliberação, decisão e ação. No sentido de se decidir levando em conta a existência do acaso, da incerteza, do risco, do desconhecido e do complexo, phronesis estaria próxima do nosso conceito de prudência.


Mas phronesis não se limita a essa idéia latina de prudens, assim como não se confunde com a epistéme (ciência). Pois, enquanto a epistéme se refere ao conhecimento, à erudição e a informação, phronesis está ligada aos sentidos – é a sabedoria prática: é o conhecimento que se adquire através dos sentidos, o saber que se adquire com a prática, com a experiência. Precisamente por isso, etimologicamente, a palavra saber não advém de saber, mas sim de sabor. E é muito fácil entender a razão: nenhuma experiência precisa ter o cientista sobre o que diz, fala ou escreve. O sábio, ao revés, se manifesta sobre o que experimentou. E essa experiência pode ter se dado de formas diversas, mas nunca de modo breve, superficial: a sabedoria advém sempre do que experimentamos, vivenciamos – com profundidade. A sabedoria – como o sabor – é resultado da impressão que nós próprios tivemos ao degustar, ao comprazer de uma emoção, de uma experiência, de uma vivência. Portanto, sabemos profundamente do que se trata – porque foi algo que nós mesmos vivenciamos, que nós mesmos executamos ou estivemos submetidos à experiência. O cientista, com o seu entendimento abstrato ou o seu pensamento discursivo jamais atingirá a plenitude nem igualará o brilho da manifestação de um sábio. Se os artigos científicos são algo insípido, as manifestações dos sábios são saborosas pois o sábio lhes confere sabor ao relatar do que ele mesmo experimentou, vivenciou, saboreou, degustou. Ele não está reproduzindo o relato de outrem que pode lhe ter omitido vários detalhes (até por esquecimento) de sua experiência. Como o sábio fala do que ele próprio vivenciou, suas palavras são profundas, seu relato é rico em detalhes – porque ele não apenas sabe, mas tem a experiência do próprio ato daquilo que é sabido.


Mas aqui devemos ter uma maior acuidade, uma maior agudeza de percepção, pois o verdadeiro é o não-oculto, o não-escondido, o não-dissimulado e se manifesta não apenas aos olhos do corpo – mas, principalmente, aos olhos do espírito.


Os maiores sábios da humanidade detiveram conhecimento porque viram e disseram a verdade. E onde foram-na buscar? Na própria realidade, pois é quando a realidade se manifesta que a verdade se revela, se descortina.
Independente do relato, da memória e da percepção de cada um – a verdade existe e é imutável.


Por exemplo: pode-se afirmar que cumpriu-se uma missão, que fomos os vitoriosos numa guerra, mas se a realidade não o confirmar de nada adiantará a repetição do que não aconteceu, do que não se verificou. Mesmo que não se aceite ou não se constate a verdade – ela continua existindo. E quem não a admite é tão-somente um louco.


Veritas, ao revés, se prende ao relato e ao enunciado do fato. É a precisão, a exatidão, o rigor do relato que conduzirá à veritas. Para esta o verdadeiro está ligado à linguagem, isto é, à narrativa dos fatos ocorridos, e aos enunciados que, fielmente, dirão como foram ou aconteceram as coisas. A veracidade dos fatos, pois, dependerá da linguagem usada para enunciá-los.


Outra visão têm os hebreus sobre a verdade. Para eles ela se traduz na palavra emunah, que significa confiança. Emunah se aplica às pessoas e a Deus. De sorte que serão verdadeiros, Deus ou um amigo, se cumprirem o que prometeram. Serão verdadeiros, pois, se cumprirem com a palavra dada ou com o que foi pactuado, ou seja, se não traírem a confiança neles depositada. Emunah, cuja origem é a mesma da palavra amém, se dirige ao futuro, pois é a confiança que se alia à esperança do que virá ou será.


Mas a Verdade está além do que esperamos ou confiamos; está além do que nos parece ser o real, o veraz. Porque a verdade independe da nossa razão, da nossa compreensão, do nosso beneplácito. A verdade independe do nosso consentimento, da nossa aprovação: ela é.


O momento da descoberta da verdade pelo ser humano pode se dar a qualquer momento – ontem, hoje ou daqui há milênios: não importa. Pois a verdade, para existir, independe do conhecimento que fazemos dela. Novamente exemplificando: independente do que o ser humano pense ou ache a respeito do Universo, o planeta Terra tem o seu próprio formato há bilhões de anos, e o Sol, igualmente, segue o seu próprio curso há muito mais tempo ainda.


A verdade não se adequa ao nosso gosto, nem se amolda à nossa personalidade; nem tampouco fica à espera do nosso conhecimento sobre ela para evoluir, para seguir o seu curso. Nós é que temos de persegui-la se quisermos viver em harmonia com a própria vida.


Há leis que regem a vida no planeta Terra – saibamos quais são elas ou não, aceitemo-nas ou não. Conhecendo-as e vivenciando esse conhecimento viveremos melhor, muito melhor.


Se, ao revés, decidirmos que o mais importante é escolhermos qual o melhor enunciado para essas leis, qual o que mais se adapta e favorece os nossos interesses – seremos esmagados pela verdade – como centenas de civilizações nos milhares de anos que suas existências foram registradas. Ninguém jamais teve ou terá o controle da verdade. Quem assim pensou enganou-se a si mesmo. Quem, em suas graves meditações, em suas profundas cogitações pensou (e ainda pensa) ter o controle da verdade, o controle da enunciação dos fatos, de como serão eles conhecidos, não só engana as populações a médio e longo prazos, mas causa um maior prejuízo a si mesmo, porque em verdade esteve a se enganar a curto, médio e longo prazos.


Ninguém pode deter a força da verdade, ninguém pode escravizá-la ou aprisioná-la, pois enquanto temos certeza de que ela está encoberta, e de que ninguém a descobrirá; enquanto a refutamos ou obrigamos quem já a conhece a desmentir a realidade da sua existência (como fez a Igreja Católica Apostólica Romana com Galileu), a verdade permanece. E quando se torna evidente a todos, evidencia também a falsidade de quem tentou encobri-la, de quem não quis aceitá-la.
Desgraçadamente, o homem, ao vislumbrar os preâmbulos da ciência, já se considera um deus, e crê que só ele é capaz de pensar – em todo o Universo. Iludido por essa crença, embasada em sua ainda inesgotável ignorância, o homem acaba por se conceber como mais importante do que todo o Universo. Claro que quando paramos de olhar para os nossos próprios umbigos, erguemos as nossas cabeças e presenciamos a grandeza de céu, começamos a ter desvanecida essa nossa ilusão, e a perceber que um grão de areia aqui na Terra pode ser muito mais importante do que toda a humanidade para o Universo.


Qual o valor de sermos seres pensantes se usamos toda a nossa capacidade cognitiva e intelectiva muito mais para a destruição do que para construir o nosso bem-estar, a nossa felicidade?


A verdade é o que dá sentido à existência humana, só que, efetivamente, ainda não nos demos conta disso. Parece mesmo que nem ao menos conseguimos vislumbrar a importância da verdade, não só para nossa existência, como para atingirmos a tão almejada felicidade.


Querer dominar a verdade, querer enquadrá-la, controlá-la, desvirtuá-la de alguma forma, moldá-la aos padrões de uma determinada sociedade ou de uma determinada classe é desiderato dos loucos. Sim, claro que há quem afirme que podemos substituir uma verdade por outra, que os poderes humanos estabelecidos podem destruí-la. Mais isso não foi possível nem para a mais poderosa organização humana de todos os tempos: a Terra continuou girando em torno do Sol e tendo o seu formato próprio. Conseqüentemente, o que pode ser modificado ou destruído é sempre a nossa ignorância – jamais a verdade.


Porque assim é a Verdade: incontestável, inigualável, irrefutável, independente e eterna – apesar da vontade de qualquer ser humano – ocupe ele a posição mais proeminente na sociedade – mesmo assim, sobre ele reinará sobranceira a verdade, tendo o controle total de tudo e de todos.

 

 

* Lucília Lopes Silva – Formação acadêmica: Graduada em Direito pela Faculdade Cândido Mendes. Pós-graduada Lato Sensu em Direito Civil, pela ESA/OAB-RJ. Cursos de especialização na FGV Online: Direitos do Consumidor, Direitos Humanos, Direito Societário, Direito Processual Civil – Fundamentos e Teoria Geral e Atualização em Direito Processual Civil. Dados profissionais: Consultora jurídica e parecerista

Como citar e referenciar este artigo:
, Lucília Lopes Silva. Verdade: aletheia, veritas ou emunah?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/verdade-aletheia-veritas-ou-emunah/ Acesso em: 20 abr. 2024