Filosofia do Direito

A Inserção do Ideário de Habermas no Espaço Público Latino-Americano

A Inserção do Ideário de Habermas no Espaço Público Latino-Americano

 

 

João Fernando Vieira da Silva *

 

Mariana Mázala Cabral **

 

 

Introdução

 

Este breve, porém audacioso estudo, tem o escopo de apresentar a viabilidade da inserção do pensamento habermasiano em um espaço público latino-americano.

 

O diálogo entre culturas diferentes, mas com intensos pontos de confluência é algo indispensável para o desenvolvimento destas culturas. A América Latina, por mais que seja um espaço plural, tem interessantes pontos de identidade. Por mais paradoxal que seja este cenário, ainda assim é perfeitamente possível esta comunicação.

 

Habermas, como poucos, tem a chave para isto. Não desprezamos a crítica que os pós modernos apresentam a tal autor. Não obstante, para muitos, seja impossível a reconstrução do projeto habermasiano, entendido mais como uma situação ideal de fala contrafática e etérea, a busca de alternativas de entendimento não deve cessar. Pode haver ainda os que ridicularizem esta idéia, ao argumento de que nem sequer existe um verdadeiro espaço público latino-americano, e, de certa maneira, terão razão. Entretanto, as contingências contemporâneas não minaram o surgimento futuro deste espaço, nem tampouco foram capazes de destruir os primeiros sinais já existentes de que espaço será concretamente construído.

 

 

01- A idéia de um espaço público latino-americano

 

A idéia de espaço público latino-americano é desafiadora. Se, mesmo os europeus, aparentemente tão integrados, não chegam a um consenso definitivo sobre os pacíficos contornos de um espaço público europeu, o que dizer dos latinos…

 

Peter Häberle entende que um verdadeiro espaço público europeu estaria vinculado a dois pressupostos: um Estado europeu e uma Constituição européia. Contudo, tal pensador tem plena consciência da não existência atual destes pressupostos, muito embrionários ainda. Não obstante esta constatação, o grande constitucionalista alemão tem esperança de que, no futuro, se consolide um verdadeiro espaço público europeu. Embora as contingências históricas e estímulos à formação de um autêntico espaço público latino-americano sejam menos sólidos, sonhar sempre é possível…. Habermas, o autor que será brevemente dissecado mais adiante, ensina isto!

 

Antes de maiores explanações sobre o contexto latino-americano para a formação de um espaço público, dificuldades e perspectivas na concretização deste ideário, urge trazer à baila, ainda que de forma perfunctória, um traçado conceitual sobre aquilo que venha a ser um “espaço público”.

 

Neste sentido, devemos nos socorrer dos trabalhos de Domingo García Belaunde, professor da Pontífice Universidade Católica do Peru e membro fundador do Instituto Ibero-Americano do Direito Constitucional. O aludido professor contribui para o debate com a seguinte mensagem[1]:

 

“Em termos amplios, un ‘espacio público, como él concibe, incluye muchas cosas: transparência, participación, la publicidad tanto de las normas como de los actos y de la gestión públicas, la existência de opinón pública, el funcionamento de los partidos políticos. En fin, la participación del hombre común y corriente en la creación del Estado constitucional y democrático, el pluralismo y su desarrollo”.

 

Trará substrato ao debate explicitar, de forma mais robusta, a idéia de espaço público em Habermas. Comentando o assunto, Sérgio Costa disse o seguinte[2]:

 

“A concepção habermasiana de esfera pública (política) oferece, implicitamente, elementos para se entender a forma original como o autor trata uma questão clássica da Sociologia, qual seja, como é possível a manutenção da ordem social num contexto secularizado, caracterizado pela ausência de “transcendência e tradição”. Em sua resposta, o autor reconhece a força aglutinadora da coordenação sistêmica; concebe, entretanto, um segundo campo, o mundo da vida, caracterizado por ações orientadas para o entendimento. A imagem da esfera pública que resulta de tal constatação não é mais, portanto, a de um simples palco de encenação de atores estrategicamente voltados para a manipulação das opiniões; a esfera pública passou a ser concebida como resultado das tentativas de coordenação sistêmicas, de um lado, e do processo de formação da vontade política de pessoas físicas emancipadas, por outro”.

 

Algumas dificuldades robustas se colocam para a concretização de um espaço público latino-americano em pleno diapasão com os preceitos acima expostos.

 

Em primeiro lugar, a América Latina não é um espaço público geográfico tão “compacto” quanto o europeu. É possível, por exemplo, de trem, ir de Roterdã a Paris em quatro horas, ao passo em que o deslocamento entre muitas cidades de um mesmo Estado do Brasil chega a demorar o dobro…

 

Há também que se atentar para o trágico histórico de colonização dos países da América Latina. O absolutismo monárquico dos países colonizadores cerceou o firmamento de requisitos inefáveis para a verdadeira formação de um bloco latino-americano. Culturas que não foram germinadas em espaços de liberdade de expressão tendem a apresentar ranços lamentavelmente mais fortes quando se torna necessário pensar em um espaço libertário de conversações. Embora seja uma metáfora pobre, não custa comparar os países latino-americanos e seu passado de submissão a espanhóis e portugueses e um pássaro na gaiola. Quando aberta a gaiola, o pássaro não galga a liberdade com tanta simplicidade… Foi condicionado a obedecer, sublimar sua vontade e enfrenta grandes obstáculos para aprender a interagir com outros “pássaros”.

 

É por essas e outras que a tradição latino-americana é marcada por tantas idas e vindas, avanços e retrocessos. Os latinos têm parca experiência de autogoverno e não foi à toa que deram acesso à tantas barbáries do militarismo na segunda metade do século XX.

 

Apesar destas encorpadas barreiras para que pensemos um verdadeiro espaço público latino-americano, o desencanto não deve tomar conta de quem anseia este ideal. A América Latina, por mais díspare e rudimentar que seja em termos de integração, tem também elementos que podem forçar a consolidação de um tão propagado espaço público.

 

Embora no passado fosse razoável sustentar que a América Latina era apenas mais uma parcela da Europa e, nos dias de hoje, se configure mais como um quintal dos Estados Unidos (salvo os brados histriônicos de resistência de Cuba, Venezuela e Bolívia, admiráveis pela insurreição, nunca por algumas infelizes escolhas poltícias), os latinos têm aspectos únicos e impossíveis de serem repetidos em outras culturas. Assinalando isto, Belaunde expõe o seguinte[3]:

 

“La cultura latinoamericana, y en consecuencia el Derecho Constitucional latinoamericano-mucho más que el Direito Privado- tienen ciertos rasgos especiales que los hacen distintos de los demás sistemas o culturas, com los que no pueden igualarse. Evidentemente, no creo qu pueda afirmarse que el constitucionalismo latinoamericano sea original, porque decididamente no lo es. Pero podemos decir que es peculiar, es decir, que no decho una copia servil de lo que ha recebido, sino que lo adaptado, transformado y mejorado, de manera que com tales ingredientes, han creado algo distinto, no original, pero sí diferenciado de suas matrices europeas y de suas raíces vernáculas. Y además, con acentos propios”.

 

Embora possa parecer recorrente demais evocar um só autor, quando a precisão de suas considerações é notória, urge destacar seu trabalho. Belaunde auxilia demais no sonho de um futuro espaço público latino-americano e contribui decisivamente para o debate ao constatar os seguintes avanços na América Latina para a concretização deste espaço no final do século XX[4]:

 

Y ya fines del siglo XX pueden verse ciertos avances:

 

i)movimientos políticos que afirman el respeto y la continuidade de los gobiernos democráticos;

 

ii)mejora de los sistemas electorales, que permitan elecciones limpias y transparentes;

 

iii)vigilancia para que la libertad de prensa o de expresión se ejerza sin amenazas ni censuras;

 

iv)acuerdos de integracion de áreas (Centroamérica, Comunidad Andina, los países del Mercosur;

 

v)acuerdos regionales sobre protección de derechos humanos (la Declaración Americana de Derechos del Hombre es de abril de 1948, anterior a la Declaración Universal);

 

vi)creación de acuerdos de libre comercio y libre tránsito de personas (en forma no completa todavía);

vii)jurisdicciones especiales a nivel regional (Tribunal de Justicia de la Comunidad Andia);

 

viii)jurisdicciones supranacional em materia de derechos humanos (la Corte Interamericana de Derechoos Humanos tiene su sede em San José);

 

ix)Carta Democrática Interamericana, firmada em Lima el 11 de setiembre de 2001 y que compromete a todos los países miembros de la Organización de Estados Americanos.

 

Interessante o último dado aqui lançado. A Carta Democrática Interamericana foi firmada exatamente no mesmo dia do maior atentado terrorista que se tem notícia nos Estados Unidos da América (os nefastos incidentes no World Trade Center, que ceifaram a vida de mais de três mil pessoas). A via democrática, do diálogo, da compreensão do outro, da tolerância, do não sectarismo, da interação ainda é o melhor dos caminhos….

 

O desafio é gigantesco, mas o futuro, na visão de otimistas, tende mais a unir do que segregar. O retorno das democracias na maior parte da América Latina nos anos 80 facilita bastante esta jornada. O respeito aos direitos humanos, a busca da igualdade substancial, a alternância nos cargos públicos, a responsabilidade fiscal, o controle de constitucionalidade da legislação, tudo isto representa um expressivo cabedal de conquistas que efetivamente conduzem os países latino-americanos ao entendimento.

 

 

02- A inserção do discurso habermasiano em um espaço público latino-americano

 

Trazer o pensamento de Jürgen Habermas para um espaço público latino-americano não será fácil, até porque, conforme já exposto, a existência crível e concreta deste espaço público não se consolidou. Trata-se de uma quimera, um projeto de futuro. Não temos a pretensão de crer que o trabalho aqui elaborado seja inédito, contudo é notório que se trata de um estudo um tanto quanto “inusitado”.

 

Amado e odiado, Habermas traz consigo um olhar de crença nos ideários da Modernidade. Se, no passado, Habermas era um misto de suas influências freudianas e marxistas, o Habermas dos anos 80 em diante, mais voltado para a lógica do pai da Psicanálise, não é refém dos mitos da ação estratégica e elevou seu pensamento para a intensa valorização da interação e transmutação da razão em razão comunicativa. Enquanto boa parcela do pensamento intelectual se confunde e perde as esperanças e a fé no homem com os postulados obtusos da Pós- Modernidade, Habermas retoma o otimismo na idéia do progresso humano. Habermas não é um cego que fecha os olhos para todas as intempéries da Modernidade. Quando Habermas denuncia a colonização do mundo da vida pela burocratização e pela monetarização, demonstra que existem males a serem combatidos. Contudo, Habermas não joga no lixo o Iluminismo inerente à Modernidade e formula procedimentos que, se não tem o condão de solucionar com um toque de mágica (Habermas, em verdade, rejeita os imediatismos) todas as misérias humanas, pelo menos indica caminhos….

 

Esta narrativa pode também dar espaço para a crítica ácida e recorrente no sentido de que Habermas é utópico, demasiadamente vago e abstrato. De fato, os textos de Habermas são densos e não se trata de uma literatura das mais palatáveis. Habermas também pode receber a alcunha de “intelectual de gabinete”, porque não é tão dado a pesquisas empíricas. Habermas pode ser até reputado como contrafático, e também é possível dizer que Habermas sequer tenha um dia imaginado na América Latina quando formulou sua obra.

 

Lenio Streck constatou as dificuldades de um discurso habermasiano em terras latinas, especialmente no Brasil, expondo o seguinte[5]:

 

“Por tudo isso, a discussão acerca do papel do Direito e da justiça constitucional, a toda evidência, deve ser contextualizada, levando em conta as especificidades de países como o Brasil, onde-insisto- não passamos pela etapa do Welfare State, que Habermas considera superada (embora-justiça seja feita- Habermas, ao expor sua tese, jamais se referiu a países como o Brasil)”.

 

Contudo, nenhum destes obstáculos deve tirar o desejo da reconstrução do ideário habermasiano em um espaço público latino-americano. É óbvio que existem algumas premissas a serem atingidas, e a ausência de qualquer um dos postulados de Habermas pode fazer com que seus estudos sejam, de certa forma, lamentavelmente estéreis em dadas realidades. Talvez seja impossível reconstruir Habermas, por exemplo, no Oriente Médio, se consideradas as circunstâncias da conjuntura atual. Não obstante estes pesares, o sonho habermasiano não é uma ilusão para os latinos. As gigantescas dificuldades para reconstruir o edifício de Habermas no espaço público latino-americano têm sido gradativamente mitigadas, e as indicações futurísticas nos dão conta de uma América Latina muito mais propensa à agregação e ao entendimento, terreno fecundo para que a resistência aos primados habermasianos seja esmaecida.

 

Tentando tornar mais crível o ideário de Habermas, suas principais tendências serão compiladas. Corre-se o risco de uma leitura muito simplista, porém a diminuição cognitiva não impede uma visão astuta deste pensador alemão.

 

Assim sendo, é possível reconstruir Habermas em espaços públicos que atendam os seguintes requisitos:

 

Seriedade nas discussões;

Ausência de coerção e de violência;

Possibilidade de todos possam participar do procedimento discursivo, sem limitações.

 

Feitas estas ponderações, uma primeira ponderação torna-se plausível. Por mais que os processos eleitorais na América Latina funcionem hoje com mais lisura, não basta apenas isto para uma autêntica ode à retomada da democracia. O povo não pode participar das deliberações públicas de forma esporádica. O sufrágio universal, por mais significativo que seja, ainda é pouco para as aspirações de uma mais intensa democracia. A vontade popular não se resume ao voto. Existem aspirações que precisam ser exteriorizadas com mais intensidade. Com esta filosofia, Maria Victória Benevides propõe o seguinte[6]:

 

“ A experiência histórica, desde as revoluções burguesas do final do século XVIII, demonstra claramente que as grandes conquistas da república e da cidadania, o voto popular e as eleições periódicas não impede, por sí só, que uma classe social, um estamento, um partido (como no clássico exemplo mexicano com o Partido Revolucionário Institucional) monopolize o poder (….) Ao enfatizar o princípio da soberania popular ativa, assumo a defesa de institutos de democracia direta, de sua efetiva implementação e ampliação”.

 

Em contextos nacionais, muitas sugestões para o avanço da democracia direta já são discutidas: o incentivo à discussão de políticas públicas e grandes temas da atualidade em referendos e plebiscitos, o orçamento participativo, a concessão de maior espaço para grupos sociais específicos na mídia. Em termos de América Latina, pouco tem se discutido à respeito, até porque, volte-se a evocar, o espaço público latino-americano ainda é algo muito ainda apenas “simbólico”. Apesar disto, o debate deve proliferar e a consciência de incentivo à uma mais efetiva participação popular nos procedimentos decisórios não é algo que deve ser esquecido.

 

Os tempos modernos devem orientar o homem a cada vez mais procurar mecanismos que derrubem os obstáculos que se impõe a uma mais completa democracia. A tradição oligárquica e patrimonialista é mazela ainda muito presente na América Latina. Maior do que isto, no entanto, deve ser a concretização do anseio popular na busca de justiça social e de melhores condições de vida. Também é verdade dizer que as atuais sociedades latino-americanas também são marcadas pelo elitismo, o favoritismo e a exclusão dos menos afortunados. Contudo, não é postura digna de elogios abaixar a cabeça diante deste quadro de segregação e se conformar com este estado de coisas.

 

Sintetizando esta fome de mudança, Luiz Alberto Gómez de Souza se posicionou da seguinte forma[7]:

 

“Tento refletir sobre nossos tempos incertos, férteis e estimulantes, pressentido cenários no futuro. Podem ser programas de globalização massificadora a partir de um modelo hegemônico, ou então o surgimento de um mundo democrático e intercomunicado da diversidade e do pluralismo. O processo não tem uma direção única, predeterminada ou fatalista, pois depende das forças aí atuantes. Ele é complexo, contraditório e relativamente lento. ‘A história não caminha ao ritmo de nossa impaciência’, escreveu o poeta espanhol Antonio Machado, na sensação de derrota, a final da guerra civil espanhola. Apostar no futuro mais humano e justo obriga a agir com determinação para fazê-lo possível, descobrindo, ao mesmo tempo, como a utopia já está sendo construída no meio de nós”.

 

A esperança de uma sólida contribuição habermasiana para esta construção não é calcada apenas em conjecturas vagas. Habermas, com sapiência única, foi capaz de resgatar a legitimidade no Direito e destruir a dicotomia histriônica entre liberdade e igualdade.

 

Habermas, embora sociólogo, é alguém que acredita no Direito. Mencionando diretamente Habermas, tem-se o seguinte[8]:

 

“O direito não é um sistema narcisisticamente fechado sobre si próprio, mas é alimentado pela vida ética democrática de cidadãos emancipados e por uma cultura política liberal que lhe é afim. (…) A paradoxal conquista do direito consiste então no fato de que ele reduz o conflito potencial entre liberdades individuais mediante normas que apenas são coercitivas na medida em que sejam reconhecidas como legítimas sobre a frágil base de liberdades comunicativas”.

 

Diferente das visões crítico-reducionistas que imperam em parte da Sociologia quando obrigada a se defrontar com fenômenos jurídicos, Habermas crê inclusive em um papel civilizatório do Direito, ou seja, imagina que a institucionalização de seus procedimentos pode ganhar plausibilidade com uma formatação eminentemente jurídica. Desta maneira, o Direito não seria apenas ciência regulatória de comportamentos, mas também teria o potencial de transformar. Quem muito bem trabalha com esta idéia é o filósofo Regenaldo da Costa, que, se dedicando ao louvável, porém temeroso intento de ser mais um dos comentaristas de Habermas, disse o seguinte[9]:

 

“Para Habermas a proposta de uma interpretação dos direitos fundamentais à luz da teoria do discurso é a única que possibilita não só o adequado esclarecimento do nexo interno entre direitos humanos e soberania do povo, como também, a solução do paradoxo de legitimidade que surge da legalidade. (…) A idéia de autolegislação-discursiva é, por conseguinte, constitutiva de toda e qualquer pretensão à validade racional ou intersubjetiva do Direito, embora que ela para ter de validade jurídica tenha também que se constituir como válida na forma do Direito. A idéia de autolegislação tem, pois, que adquirir por si mesma a validade no medium do Direito, o que traz implicações que tem que ser garantidas pelo direito as condições sob as quais os cidadãos podem avaliar à luz do princípio do discurso, se o Direito que estão criando é legítimo (…)”.

 

Ratificando o já exposto supra, Habermas, além de conferir legitimidade ao Direito, é capaz de dar fim à polêmica querela entre liberdade e igualdade. Não há mais que se pensar em uma disputa liberdade x igualdade, liberais x comunitaristas. Liberdade e igualdade são criações co-originais, recíprocas. Não há liberdade sem igualdade, nem tampouco igualdade sem liberdade. Uma pressupõe a outra. O velho debate entre direita e esquerda já não merece provocar retóricas tão inflamadas….

 

Confirmando esta linha de pensamento, a Professora Gisele Cittadino já se manifestou assim[10]:

 

“Ao configurar uma concepção de pluralismo que inclui tanto as subjetividades das visões acerca do bem, quanto as intra-subjetividades das diversas identidades culturais, Habermas não precisa estabelecer nenhuma ordenação hierárquica entre auto-realização ética e autodeterminação moral, ou, em outras palavras, entre soberania popular e direitos humanos. Mais do que isso, Habermas procura estabelecer uma conexão entre as liberdades subjetivas privadas, defendidas pelos liberais, e a efetiva participação cidadã nos assuntos públicos, tão cara aos comunitários”.

 

Contrariando o mito de que o projeto habermasiano é inadequado para culturas distintas da sua, o próprio Habermas já se pronunciou concorde com a crítica que é feita à visão excessivamente européia de direitos fundamentais, chegando ao extremo de se perfilhar na linha dos que denunciam a falsa ideologia de massificação dos direitos fundamentais em tempos de globalização. O saber habermasiano também foi capaz de constatar que, por trás do discurso de bom samaritano de europeus e de norte-americanos, esconde-se o torpe escopo de mascarar abusos e manter políticas de exclusões. Neste tópico em especial, melhor do que comentar o pensamento habermasiano, é transcrevê-lo:

 

“(…) a validade universal, o conteúdo e a hierarquia dos direitos humanos continuam sendo, como antes, assunto polêmico. O discurso dos direitos humanos, baseado em argumentos normativos, é acompanhado inclusive da dúvida fundamental de se acaso sob as premissas de outras culturas, a forma da legitimação política ocidental encontraria assentimento. Na forma mais radical, os próprios intelectuais ocidentais defendem a afirmação de que, por detrás do pleito universal dos direitos humanos, apenas se esconde uma pérfida pretensão de poder do Ocidente’. (….) Direitos humanos que exigem a inclusão do outro, funcionam simultaneamente como sensores para as exclusões que em seu nome se praticam”.

 

Habermas pode ser transposto para a realidade latino-americana na medida em que tem a sensibilidade de admitir que cada cultura tem suas especificidades e potencial de construir um modelo próprio de desenvolvimento. Habermas é aberto inclusive para algo que, embora possa ser considerado a utopia das utopias, acaba merecendo ser analisado com carinho: a possibilidade da interação entre culturas completamente díspares, de maneira que, havendo um reconhecimento mútuo, seja possível que as lições dos latinos sejam incorporadas pelos europeus e vice-versa. Senão vejamos[11]:

 

“As minhas reflexões apologéticas representam o tipo de legitimação ocidental como uma resposta a desafios gerais aos quais hodiernamente não apenas a civilização ocidental está exposta. Isso evidentemente não significa que a resposta que o Ocidente encontrou seja a única ou até a melhor. Nesse sentido, o atual debate constitui para nós uma chance de nos permitir um esclarecimento acerca de nossos pontos obscuros”.

 

O discurso habermasiano é ousado na medida em que, embora cônscio das barreiras para sua plena reconstrução, ainda assim não foge de seus objetivos. Habermas é esperança! Habermas acredita na reciprocidade, no respeito mútuo, na imparcialidade, em diálogos racionais. Habermas está muito fulcrado no sucesso do procedimento, ou seja, representa a glorificação dos procedimentalistas e daí talvez gere tanto furor dos substancialistas. Corroborando esta percepção habermasiana, a Professora Gisele Citadino assim se manifestou[12]:

 

“A exigência de imparcialidade imposta pela razão prática está, portanto, representada por regras de um procedimento discursivo que, enquanto processo de deliberação pública, não exclui nem as concepções individuais sobre a vida digna nem os valores de formas específicas de vida. O procedimento discursivo atua como uma espécie de autoridade epistêmica, que é independente tanto dos cálculos individuais dos sujeitos quanto dos valores e tradições dos mundos plurais”.

 

Embora possa parecer recorrente demais (pode apenas parecer recorrente; em verdade, nunca é repetitivo mencionar várias vezes autores que realmente trazem luz ao debate), novamente cabe mencionar a Professora Gisele Citadino quando advoga a tese de que Habermas não está totalmente atrelado ao abstrato[13]:

 

“Não se pense, entretanto, que o acordo racional, que se configura pela via da universalização dos interesses de todos os sujeitos capazes de linguagem e ação, se traduz em um consenso abstrato, inteiramente situado à margem dos processos históricos concretos. O objetivo de Habermas, ao contrário, é evitar a abstração do mundo racional, contextualizando as normas morais na eticidade concreta do mundo da vida”.

 

O sonho de reconstrução do projeto habermasiano em um espaço público latino- americano também pode ganhar vida pelo fato de que o discurso de Habermas não é apenas voltado para estabelecer procedimentos que alcancem o consenso. Habermas também está preparado para o dissenso, e estabelece um procedimento argumentativo que abre espaço para a coexistência de múltiplas concepções, isto é, o respeito e o reconhecimento da figura do outro. Habermas, captando muito bem o brilhantismo da obra de Freud, explana que a rejeição ao outro, no fundo, é a rejeição a si mesmo, uma vez que os homens são seres plurais, que carregam consigo valores ambíguos e paradoxais e, toda vez que tentam agredir outrem, estão, em verdade, tentando aniquilar um pouco de si mesmo e de pensamentos que tem medo de sustentar.

 

Habermas soube muito bem mostrar a importância da retomada de um olhar sobre a Justiça, da possibilidade de acreditar em um mundo justo, e, para tanto, crê no Direito como prática dinâmica nesta busca.

 

O projeto da Modernidade é algo que ainda não chegou inteiramente na América Latina, mas ainda pode chegar. Inusitado talvez seria falarmos em uma “Pós-Modernidade” latina se nem chegamos a viver plenamente a Modernidade. Daqui há alguns anos, talvez nem seja Habermas o paradigma a ser perseguido (a mutabilidade de “ídolos” no mundo intelectual, por vezes, é parecida com a mudança dos astros do mundo do rock…), mas ignorar sua possibilidade de contribuição para o efetivo exercício da democracia em um espaço público latino-americano não é algo tolerável…

 

 

Conclusão

 

O sonho habermasiano comete o pecado de fazer surgir nas pessoas algo que é temível: a “esperança”. É mais fácil viver o cotidiano da crítica ácida e do desencanto nas instituições do que participar de procedimentos democráticos que conduzam o homem ao bem estar. Arrancar os grilhões não é para qualquer um…

 

Também se registre que não basta simplesmente importar todas as idéias de Habermas e alimentar a ilusão de que apenas isto resolverá todos os dantescos problemas da América Latina. A mera transposição de autor e suas fórmulas como se isto fosse a panacéia de todos os males também pode ser configurada como um comodismo nada razoável. Vamos, então, dizer que o projeto habermasiano deva ser “apimentado” em terras latinas, recebendo os “temperos e condimentos” inerentes à cultura deste espaço.

Firmes na bandeira do primeiro tópico desta conclusão, a esperança é um edifício de alicerce sólido na América Latina. Um verdadeiro espaço público latino-americano talvez não seja algo que surja em 05, 10, 20, 30 anos, mas um dia surgirá. As sementes para isto já estão plantadas. O processo é lento, gradual, vai sofrer seus atropelos, mas vingará….

 

Diferente do Pós- Modernismo caótico de Luhman e Foucalt (gize-se que tratam-se de dois autores de matizes completamente diversas e só são citados em conjunto por terem em comum o fato de serem rotineiramente citados como algozes de Habermas), o espaço público não pode ser concebido apenas como esfera de ações estratégicas, barganhas e o anseio selvagem de poderio econômico e político. O mundo da vida ainda não foi inteiramente colonizado. Há terreno para uma política emancipatória que valorize o diálogo, mitigue as coerções, galgue o bem comum e efetivamente alcance legitimidade. Tolerância e coragem são faces da mesma moeda!

 

Talvez não consigamos, nunca, fazer brasileiros e argentinos convergirem quando o assunto é futebol. Os argentinos insistirão que Maradona foi o melhor de todos os tempos e os brasileiros interpretarão isto como uma heresia, sustentando que Pelé é o rei eterno. Contudo, argentinos e brasileiros mantém laços muito mais fortes do que as cizânias futebolísticas. Há demandas em comum, problemas parelhos a serem resolvidos, conversações que já foram muito postergadas e hoje precisam encontrar um terreno mais fecundo de serenidade e respeito. Há uma longa estrada a ser percorrida, mas a grandiosidade da distância não ilide a sensação de que o caminho já começou a ser trilhado!

 

 

NOTAS:

 

[1]. Belaunde, Domingo Garcia. Existe un espacio público latinoamerciano?. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, janeiro/junho de 2003.

 

[2]. Costa, Sérgio. A democracia e a dinâmica da esfera pública.. Lua Nova nº. 36: São Paulo, 1995

 

[3]. op.cit.

 

[4]. op.cit.

 

[5]. Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica e concretização da constituição: as possibilidades transformadoras do direito. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, janeiro/junho de 2003.

 

[6]. Benevides, Maria Victoria. Nós, o povo- reformas políticas para radicalizar a democracia. Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

 

[7]. Souza, Luis Alberto Gómez. A utopia surgindo no meio de nós. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

 

[8]. Habermas, Jurgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

 

[9]. Costa, Regenaldo. Discurso, direito e democracia em Habermas. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.

 

[10]. Cittadino, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva- elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

 

[11]. Habermas, Jurgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.

 

[12]. op.cit.

 

[13]. op.cit.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BELAUNDE, Domingo Garcia. Existe un espacio público latinoamerciano?. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, janeiro/junho de 2003.

 

BENEVIDES, Maria Victoria. Nós, o povo- reformas políticas para radicalizar a democracia. Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003

 

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva- elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999

 

COSTA, Regenaldo. Discurso, direito e democracia em Habermas. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003

 

COSTA, Sérgio. A democracia e a dinâmica da esfera pública.. Lua Nova nº. 36: São Paulo, 1995

 

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997

– Sobre a legitimação pelos direitos humanos. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003

 

SOUZA, Luis Alberto Gómez. A utopia surgindo no meio de nós. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

 

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e concretização da constituição: as possibilidades transformadoras do direito. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, janeiro/junho de 2003.

 

 

* Advogado; professor de Teoria Geral do Processo, Processo Civil, Direito Civil e Prática Jurídica das Faculdades Doctum – Campus Leopoldina; Coordenador da Iniciação Científica das Faculdades Doctum- Campus Leopoldina; professor de Introdução ao Estudo do Direito e Processo Civil das Faculdades Doctum/Campus Juiz de Fora; Especialista em Direito Civil pela UNIPAC; Mestre em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ; Pesquisador de grupo sobre Acesso à Justiça da PUC/RJ e Viva Rio.

 

** Acadêmica do Quinto Período de Direito das Faculdades Doctum- Campus Leopoldina; Integrante do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Doctum/Campus Leopoldina.

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, João Fernando Vieira da; CABRAL, Mariana Mázala. A Inserção do Ideário de Habermas no Espaço Público Latino-Americano. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-insercao-do-ideario-de-habermas-no-espaco-publico-latino-americano/ Acesso em: 20 abr. 2024