Filosofia do Direito

Lei, Direito e Justiça

Lei, Direito e Justiça

 

 

Eduardo Feld *

 

 

            RESUMO:

 

            Neste trabalho, abordaremos os conceitos de lei, direito e justiça e as relações entre eles. Para isso, inicialmente, devemos entender as grandes correntes do direito, o positivismo e o jusnaturalismo e suas subdivisões. Através deste estudo, entenderemos como tais correntes definem lei, direito e justiça. Estudaremos também o conceito de justiça encontrado em Aristóteles e algumas das várias definições de direito, para, afinal, concluir pela vinculação imprescindível do direito à justiça, na sua expressão concreta, a eqüidade, sem que, para isso se descarte a norma escrita, ou seja, a lei.

 

 

1 – INTRODUÇÃO

 

            De todas as atividades que se realizam no mundo jurídico, uma das mais palpitantes e que possuem maior relevância e eficácia prática no pensar e no agir dos indivíduos em sociedade é a investigação de seus fundamentos, de suas bases. Isto significa, entre outras tarefas, indagar o que é o direito, de que normas se compõe e qual o fundamento de sua legitimidade. Em outras palavras, deve-se indagar, ao cumprir ou descumprir uma norma, o que leva o indivíduo a aceitar tal norma como legitimamente integrante de um ordenamento e a decidir de uma forma ou outra. No curso de tais reflexões, é inevitável o surgimento de questões relacionadas à lei e à justiça.

 

            Uma dessas inevitáveis questões é a relação entre lei e direito, ou entre legalidade e juridicidade. Questiona-se o que torna uma norma jurídica, o que faz a norma valer para o direito, se será a juridicidade mera conseqüência da legalidade ou se existem outras características, estranhas à lei escrita, para definir a questão da juridicidade. Finalmente, há a questão da delimitação entre direito e justiça: o que é jurídico é necessariamente justo?

 

            Para responder a essas questões, passa-se necessariamente e de início pelo estudo das grandes correntes do direito, o positivismo e o jusnaturalismo, e suas subdivisões.

 

           

2 – POSITIVISMO E JUSNATURALISMO

 

Encontramos em BOBBIO[1], uma exposição do que vêm a ser o positivismo e o jusnaturalismo, como grandes correntes do pensamento jurídico.  Segundo o doutrinador mencionado, em síntese, o positivismo jurídico pode ser definido como a corrente que entende ser o direito positivo o único ou o predominante direito.  Esta corrente originou-se e foi sedimentada a partir do início do século XIX, em contraposição a uma corrente mais antiga, denominada jusnaturalismo, caracterizada pela prevalência do direito natural.  A distinção entre direito natural e positivo, entretanto, remonta à época romana.

 

 

2.1 – Características do Positivismo Jurídico

 

O positivismo jurídico, segundo o mesmo autor, não se identifica com o positivismo filosófico, apesar de haver pensadores que já se filiaram a ambas essas correntes.  Aqui, quando nos referimos a positivismo, falamos daquele positivismo jurídico, expressão que provém do direito positivo, ou seja, do direito escrito.

 

O positivismo caracteriza-se por um método, uma teoria e uma ideologia, como será explicado a seguir.

 

 

2.1.1 – O Método

 

Segundo o positivismo jurídico, o direito é uma ciência que consiste em juízos de fato e não de valor.  Nesse diapasão, o cientista busca um conhecimento objetivo da realidade e isso se dá, inclusive, nas ciências sociais.  O jusnaturalismo, ao contrário, busca fazer uma valoração do direito real com base no direito ideal.

 

Uma norma ser válida (ter validade) significa ser parte de um ordenamento, efetivamente existente em uma sociedade.  Já uma norma ser valorosa significa ser justa; ou seja, corresponder ao direito ideal.  Tal distinção é um caso particular da distinção entre fato e valor.

 

A posição jusnaturalista sustenta que, para uma norma ser válida, ela deve ser valorosa.  A posição positivista extrema, por sua vez, sustenta que uma norma é valorosa pelo simples fato de ser válida.

 

Há uma corrente do positivismo (realismo jurídico) que sustenta que, além do requisito da validade, é necessário o requisito da eficácia (referindo-se ao comportamento dos juízes). Desenvolveu-se principalmente nos países anglo-saxônicos.

 

Em síntese, para o positivismo, o direito é uma ciência, e não uma filosofia. Isto implica a necessidade de adotar um método, o científico, para seu estudo.

 

 

2.1.2 – A Teoria 

                                                                                                   

A teoria positivista se divide em teoria da norma jurídica e teoria do ordenamento jurídico. Passamos a estudar, então, a teoria da norma jurídica, em função da coercibilidade, imperatividade e prevalência do direito escrito.

 

A definição do Direito em função da coação é uma concepção estatal do direito, surgida no Estado moderno e teorizada por Hobbes[2]. Jhering[3] diz que o direito é o conjunto de normas coativas vigentes num Estado. É o primeiro que substitui a concepção tradicional pela idéia segundo a qual os destinatários das normas são os juízes.  Por esta nova formulação da teoria da coação, o direito é um conjunto de normas que tem por objeto a regulamentação do exercício da força numa sociedade. 

 

O direito surge, em substituição ao estado de natureza, quando cessa o uso indiscriminado da força e se estabelece quem deve usar a força, quando, como e quanto.

 

A teoria imperativista, por sua vez, está ligada à concepção que considera o Estado como única fonte do direito.  Esta teoria é muito anterior ao positivismo e existe desde a época medieval, em que se elaborou a distinção entre comando e conselho, que também foi utilizada por Hobbes.

 

A teoria imperativista explica as normas permissivas, que atribuem faculdades, como negações de normas imperativas existentes, já que a regra geral é a faculdade.  A norma atributiva, que confere um poder, é explicada pela bilateralidade, já que ao poder é correlato o dever.

 

A teoria positivista também trata das fontes do direito.  Os modernos ordenamentos jurídicos determinam quais são as fontes do direito, através de regras de estrutura ou de organização, que regulam a produção jurídica, em contraposição às regras de comportamento.

 

O costume, segundo a teoria romano-canônica, é uma convenção tácita que exprime a vontade do povo, só diferindo da lei porque esta é expressa. Segundo a teoria moderna, o costume só se torna jurídico quando se faz valer pelo Poder Judiciário; é norma estatal e não popular.  Segundo a doutrina da escola histórica, que não tem sido seguida, é fonte autônoma do direito, cuja validade se funda no sentimento de justiça do povo.

 

No Estado moderno, o Judiciário perde a posição de fonte principal do direito, para transformar-se em órgão estatal subordinado ao Poder Legislativo, encarregado de cumprir fiel e mecanicamente as normas estabelecidas por este último.  Pelo positivismo, o juiz não é uma fonte principal, mas subordinada ou delegada – isto acontece quando ele faz um juízo de eqüidade, não aplicando normas preexistentes.

 

Além da teoria da norma jurídica, o positivismo se caracteriza pela teoria do ordenamento jurídico, com sua coerência, completitude, e pela interpretação mecanicista. O princípio da coerência consiste em negar que possa haver antinomias.  Tal princípio é garantido por uma norma implícita, segundo a qual duas normas incompatíveis não podem ser ambas válidas. Os critérios para soluções das antinomias são: o cronológico, o hierárquico e o de especialidade. O primeiro é um critério fraco e os demais são critérios fortes, prevalentes sobre aquele.

 

O princípio da completitude apresenta-se para conciliar dois outros princípios do positivismo: aquele segundo o qual o juiz não pode criar o direito e aquele segundo o qual o juiz não pode recusar-se a resolver uma controvérsia. Deve-se falar em lacunas na lei e não no direito, pois se considerarmos o direito como um todo, inclusive a fonte judiciária, ele necessariamente será completo. Duas teorias se prestam a demonstrar a completitude da lei: a do espaço jurídico vazio e a teoria da norma geral exclusiva.

 

A interpretação adotada é a mecanicista; ou seja, aquela que deterministicamente se obtém, utilizando apenas como fonte aquilo que provém do Estado (lei).

 

A distinção entre juspositivismo e seus adversários começa na distinção da natureza cognoscitiva da jurisprudência.  Para o primeiro, esta consiste numa atividade declarativa ou reprodutiva de um direito preexistente e, para os segundos, uma atividade criativa ou produtiva.  Em outras palavras, o positivismo considera tarefa da jurisprudência não a criação, mas a interpretação.  Interpretar é compreender o significado do signo, tarefa necessária, pois há sempre um certo desajuste entre a idéia e a palavra – a primeira é mais rica, mais complexa, mais articulada que a segunda. 

 

O positivismo é acusado de sustentar uma concepção estática da interpretação, sem levar em conta as condições histórico-sociais variáveis.

 

O juspositivismo concebe o direito como uma ciência construtiva e dedutiva, que recebe o nome de dogmática, com base em cujos conceitos o jurista deve extrair, realizando operações lógicas, as normas que servem para resolver todos os casos possíveis.  Esta concepção, chamada de jurisprudência conceitual, ou jurisprudência dos conceitos, contrapõe-se à jurisprudência dos interesses, doutrina positivista mais moderna, segundo a qual se interpreta o direito à luz das relações sociais. 

 

Além da jurisprudência dos interesses, encontramos em MENDONÇA[4] a respeito da Jurisprudência sociológica, encontrada principalmente nos Estados Unidos:

 

“Esta escola busca um meio-termo entre a escola tradicional americana, que advoga a imperatividade absoluta dos precedentes judiciais, e o ‘legal realism’, que, em posição oposta, não assume os costumes como direito, mas somente a decisão prolatada no caso sob julgamento”.

 

Avançando nesta escala, temos a ainda mais moderna jurisprudência dos valores, na qual a concepção positivista de interpretação é totalmente subvertida e surgem conceitos como a ponderação de regras.

 

 

2.1.3 – A Ideologia 

 

Finalmente, o positivismo se caracteriza por uma ideologia, a de que a lei deve ser cumprida.

 

A teoria consiste em juízos de fato e a ideologia em juízos de valor. De uma teoria, dizemos ser verdadeira ou falsa, o que não faz sentido para uma ideologia. Desta, dizemos ser progressista ou conservadora[5]. Os críticos do positivismo jurídico dividem-se em dois grupos:  o realismo jurídico ou jurisprudência sociológica, que lhe critica a teoria. O jusnaturalismo, por sua vez, lhe critica a ideologia.

 

A ideologia de obediência absoluta à lei implica uma obrigação moral e não apenas jurídica, exige obedecer à lei por convicção e não por constrição.

 

Há quatro justificativas possíveis, para a obediência absoluta à lei:

 

1) Concepção realista: a justiça é a vontade do mais forte.

2) Concepção convencionalista: justiça é o que os homens concordam em considerar justiça.

3) Concepção sagrada: o poder de mandar se funda numa investidura divina.

4) Concepção do Estado ético: é a laicização da concepção sagrada. O Estado tem uma missão, de realizar a eticidade.

 

A versão moderada do positivismo ético difere da extremista porque a primeira não considera o direito um bem em si, mas um meio para realizar um certo bem, a ordem da sociedade (é uma técnica de organização social). Se, num dado momento histórico, há algum valor superior à ordem existente, por essa doutrina se justifica romper a ordem.

 

Segundo WOLKMER[6], a ideologia do positivismo jurídico se caracteriza por banir o caráter metafísico – racionalista do direito. O positivismo jurídico se nega a valorar o direito.  Ideologia de uma burguesia estabelecida no poder, esta corrente teve marcante expressão em Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito, na qual as normas são colocadas em uma hierarquia.

 

 

            2.2 – Características do Jusnaturalismo

 

Encontramos em WOLKMER[7], uma interessante caracterização do jusnaturalismo, no sentido de que, segundo esta corrente, a lei não é o direito, mas apenas um reflexo deste.

 

Em FERNANDEZ[8]: “ Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda lei que os contarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural.”

 

 

2.3 – Lei, Direito e Justiça para o Positivismo e o Jusnaturalismo

 

Pode-se concluir, portanto, que, para o positivismo, os conceitos de direito e justiça se confundem com a lei. O que é legal é, por conseqüência, jurídico e justo. Já para o jusnaturalismo, a definição do que é justo provém de elementos externos ao direito, elementos inerentes à própria natureza humana e apenas o que é justo é jurídico.

 

 

3 – O CONCEITO DE JUSTIÇA

 

Encontramos em ARISTÓTELES[9] o conceito de justiça, partindo não de um dever-ser, mas das virtudes humanas que levam à felicidade. O homem virtuoso evita os extremos, ou seja, o excesso e a falta das virtudes. A justiça, para ele, é a maior virtude coletiva, virtude de uma sociedade.

 

Para ele, o termo “justiça” deve ser investigado na mesma linha que as outras virtudes que são tratadas na obra, ou seja, deve-se determinar que espécie de meio-termo é a justiça e entre que extremos o ato justo é o meio-termo. Sendo assim, deve-se entender que a justiça é uma virtude e, assim, deve ser exercida num meio-termo. É, também, uma disposição de caráter, que leva uma pessoa a agir com justiça e desejar o que é justo.

 

A palavra “justiça” tem ambigüidade, ou seja, designa diferentes significados. Entretanto, tais significados se aproximam um do outro. “Justo” pode designar tanto o respeito à lei quanto a probidade.  Há, portanto, o conceito legal de justiça e outro conceito, que se relaciona com a vantagem comum das pessoas, ou a sua felicidade. Tais conceitos se aproximam, já que a lei, de um modo geral, visa à vantagem comum.

 

A justiça é a virtude completa, pois quem a possui pode exercê-la em relação a si mesmo e ao próximo. O mais difícil não é ser justo consigo mesmo, mas ser justo com o próximo.

 

O ato justo se divide, segundo os dois conceitos já mencionados, em legítimo e probo. A justiça em sentido amplo corresponde aos dois conceitos.

 

A justiça se manifesta tanto na distribuição de bens, dinheiro ou outras coisas (justiça distributiva), quanto nas transações voluntárias, como a compra e venda, e nas transações involuntárias, como o roubo.

 

O meio-termo da justiça é o igual, o eqüitativo. No caso da justiça distributiva, a determinação do eqüitativo não é aritmética, mas é, ao contrário, de acordo com o mérito de cada um, que é desigual. Isto é sempre objeto de disputas e queixas, já que uns identificam o mérito num certo sentido e outros em modo diferente. Além da justiça distributiva, existe a justiça corretiva, que visa restabelecer uma igualdade rompida. Restabelecida a igualdade, estará sendo restabelecido o meio-termo. Daí alguns juízes serem chamados mediadores.

 

Encontramos também, no mesmo autor, o conceito de justiça como retribuição. Existe a reciprocidade, a justiça retributiva, aplicada nas transações voluntárias. É o caso da locação. Neste tipo de transação, deve haver uma retribuição não igual, mas proporcional, já que os valores têm medidas diferentes. E, para isto, existe o dinheiro, para definir o meio-termo. Deixa claro o autor que não há uma medida para a retribuição, ou seja, que nem toda retribuição, para ser justa, deve ser feita na mesma moeda ou na mesma medida.

 

As virtudes, de um modo geral, têm excesso e falta. A justiça, por sua vez, tem seu contraponto na injustiça, que é, ao mesmo tempo, excesso e falta.

 

Um ato justo pode ser praticado sem que haja uma disposição de caráter justo no seu agente. Do mesmo modo ocorre com atos injustos. Ex.: um homem pode roubar sem ser ladrão.

 

A justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é aquela que pode ser estabelecida pelo homem, de qualquer modo, a princípio. Ou seja, existe uma justiça por natureza e uma justiça por convenção.

 

Para que uma ação seja considerada justa ou injusta, ela deve ser voluntária. Atos praticados por acidente não se consideram nem justos nem injustos.

 

Finalmente, para o autor, a eqüidade é a forma superior de justiça, é a correção da lei no caso concreto, quando, neste, aquela se torna deficiente.

 

O autor, portanto, em sua conceituação de justiça, fixa categorias e parâmetros, mas não quantifica, ou seja, não determina situações específicas em que se pode caracterizar a justiça ou o seu contrário, a injustiça. Para ele, a eqüidade é a manifestação da justiça, pois, segundo ele, a eqüidade é “o ponto intermediário entre duas iniqüidades existentes em cada caso”, “O justo é eqüitativo” e “O justo será o meio-termo”. Devemos, então, explorar melhor o conceito de eqüidade, para entendermos melhor o conceito de justiça. Entendemos, a partir da idéia de que o autor não quantifica nem especifica situações justas ou injustas, apenas fixando o que poderíamos chamar dimensões as quais são usadas ou avaliadas para se determinar a justiça, que tal avaliação fica a cargo de uma cultura de um espaço-tempo, uma vez que o conceito de justiça não é individual, mas social. Diz-se justa uma sociedade, mas não um indivíduo. O indivíduo poderá, sim, ter uma personalidade apta a exercer atos típicos de uma sociedade justa, sendo que, quanto mais injusta a sociedade, mais difícil será a realização destes atos. Exemplo disto são as ditaduras, em que é extremamente difícil ao homem exercer a justiça.

 

Para REALE[10], o conceito de justiça está relacionado ao do bem comum e há basicamente três correntes acerca do tema. A primeira entende que o bem comum é um conjunto formado pelo bem individual de cada um. Para a segunda, ao contrário, o bem individual é decorrente do bem comum e a ele está subordinado. Já a terceira estabelece que não há, a priori, superioridade do bem comum ou do individual, havendo, ao contrário, situações de conflito, devendo a Sociedade estabelecer, em cada situação, qual deles deve prevalecer. Tais apreciações confirmam nossa idéia de que justiça é um conceito determinado por uma vontade social, variável no espaço e no tempo. Segundo o mesmo autor, a sociedade justa é aquela na qual o querer da lei coincida com o querer dos indivíduos e dos grupos. A sociedade injusta é aquela em que uma pessoa se sujeita ao arbítrio da outra ou aquela em que se dá a uma pessoa o que à outra se recusa.

 

 

            3.1 – O Conceito de Eqüidade

 

            Encontram-se nos livros várias definições de eqüidade: como justiça, como direito natural, como benevolência, como direito justo, como decisão contra legem e outras. Desde Aristóteles, a eqüidade aparece não só como método de interpretação como também método de integração (suprimento de lacunas) e correção do direito, tema que será abordado posteriormente em mais profundidade, refutando a idéia de que existam as atividades de integração e de correção do direito.

 

            Entretanto, é preciso, neste momento, definir mais precisamente a denominação que entendemos mais conveniente, no âmbito deste trabalho. Encontramos a mais acertada definição como “a justiça do caso concreto”. A razão de ser desta escolha repousa no fato de ser esta, ao nosso ver, a única definição encontrada nos livros que perfeitamente se encaixa no campo da interpretação e, portanto, da aplicação do direito, contexto este em que se consagrou o uso do vocábulo.

 

            A eqüidade é colocada por alguns doutrinadores como situando-se no campo do direito natural ou jusnaturalismo, visão essa a nosso ver equivocada. A doutrina do direito natural entende o direito como algo pré-existente ao homem, e não como um mandamento por ele imposto. Ao situar a eqüidade no campo da interpretação, integração ou correção de normas, torna-se evidente que tais normas são aquelas que foram elaboradas por seres humanos, inclusive com o uso da linguagem humana (se assim não fosse não seria necessária a interpretação).

 

            A eqüidade é a justiça do caso concreto. O conceito de justiça (dar a cada um o que é seu – suum cuique tribuendi– diga-se de passagem, o que é “seu”, de acordo com o sentimento ético de uma cultura de um determinado espaço-tempo) aplicado ao caso concreto é denominado eqüidade. Aplicar a norma segundo a eqüidade significa, portanto, atingir a finalidade “justiça” no caso em questão.

 

 

            3.2 – A eqüidade como Método de Integração do Direito

 

            Procede a crítica de Pontes de Miranda[11], em relação ao conceito de lacunas do direito. Afirma o autor que não existem lacunas no direito. Raciocinando deste modo, não há preenchimento de lacunas e, conseqüentemente, não existe a atividade de integração do direito.

 

            O intérprete não cria direito, apenas o revela. Isto (a revelação do direito) é a essência da atividade interpretativa e se dá seja com relação ao direito escrito ou ao não escrito. Portanto, o intérprete, ao aplicar direito não escrito, não está “suprindo uma lacuna” ou “integrando a norma”, mas sim, ao contrário, está interpretando normas do mesmo modo que o faz com as normas escritas.

 

            A idéia esposada torna-se mais clara ao notarmos como se dá a atividade interpretativa nos países de direito de origem anglo-saxônica (países de “common law”). Nestes, o direito escrito é mínimo. Lá, o intérprete quase todo o tempo revela normas não escritas. Se existissem lacunas no direito, estaríamos, nestes casos, diante de uma enorme lacuna. ou seja, seríamos levados a crer, por absurdo, que nos referidos países não existe direito.

 

            No que tange à eqüidade, o intérprete, ao aplicá-la, aplica direito. Chegamos, talvez, ao cerne da questão: eqüidade é direito. Eqüidade é justiça (no caso concreto). E justiça é um conceito cultural, variável no espaço-tempo, provindo da Sociedade. Este processo pelo qual os homens formam uma consciência coletiva do que vem a ser justo é uma verdadeira fonte do direito, não uma fonte formal, mas uma fonte material[12].

 

            Somente por uma formação positivista clássica, se é levado a pensar que o direito deve ser integrado. Segundo o raciocínio positivista mais antigo, o que não está escrito não é direito e, portanto, a aplicação de algo não escrito não é, segundo este pensamento, interpretação. Seria uma outra atividade, supletiva ou marginal – a atividade de integração. Tal visão refutamos, em prol de uma concepção mais moderna.

 

           

            3.3 – A eqüidade como Método de Correção do Direito Injusto

 

            Questão bastante controvertida é a da correção do direito injusto. Entendemos que, assim como não existe integração do direito, pois não existem lacunas no direito, não existe também correção do direito injusto. Se o intérprete, ao aplicar a norma ao caso concreto, chega a uma conclusão que parece ser injusta, deve ele indagar o porquê daquela injustiça, se realmente há uma injustiça e se tal injustiça provém do ordenamento jurídico e deve também procurar uma outra solução que lhe pareça mas justa. Mas tal solução há de ser, necessariamente, uma solução jurídica, uma solução buscada no próprio ordenamento jurídico, levando em conta que o objetivo deste é a realização do valor justiça. A realização da justiça, como fim da norma, deve ser buscada na atividade do intérprete. Isto é eqüidade e deve ser realizado. Mas devemos notar, que, ao fazê-lo, o intérprete não está realizando uma correção. Está, ao contrário, revelando algo que existe no direito, que é a justiça como finalidade, justiça esta que não está no elemento subjetivo do intérprete (o intérprete não é um “justiceiro”). A justiça é um valor cultural de uma sociedade.

 

 

4 – O CONCEITO DE DIREITO 

           

A distinção entre juízo de validade e juízo de valor delimita a fronteira entre definições ontológicas e definições deontológicas do direito. Exemplos de definições deontológicas (valorativas) [13]: justiça (Aristóteles), bem comum (São Tomás de Aquino), atividade dirigida à criação de meios capazes de impedir atentados à expansão da individualidade (Piovani). Exemplo de definição avalorativa: Técnica social que consiste em obter a desejada conduta social dos homens mediante a ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária. (Kelsen).

 

Passamos a analisar o que diz o dicionário de filosofia[14] para definir direito.

 

1º Conceito: direito é aquilo que é exigível ou permitido em função de leis escritas ou de acordo com a moral. É aquilo que não é torto, ou seja, o que é conforme a uma regra.

 

2º conceito: é aquilo que é legítimo, numa ordem de coisas, em oposição ao real. É o conjunto dos direitos que regem as relações dos homens entre si. O direito positivo é aquele que resulta das leis escritas; o direito natural é o que resulta da natureza dos homens e das suas relações.

 

Verificamos que o primeiro conceito é o considerado subjetivo, o segundo é o objetivo.

 

Vejamos o conceito objetivo de KANT[15]: “O direito é o conjunto das condições sob as quais a vontade individual se pode unir e associar à vontade individual de outrem conforme uma lei universal de liberdade”.

 

O homem, como já dizia Aristóteles, é uma animal político. Precisa viver em sociedade para atingir a realização de suas finalidades. A sociedade, por sua vez, para ser viável, precisa de regras de convivência, capazes de evitar condutas tendentes à destruição ou minimização daquela. Tais regras, para serem eficazes, devem possuir, além de uma prescrição de conduta positiva ou negativa, uma sanção ao infrator, e ainda, se possível, a restauração das coisas ao estado anterior à infração. Formam elas um conjunto, um corpo, um ordenamento, que vem a ser o direito, na sua concepção objetiva.

 

Tal definição vem adequar-se plenamente ao pensamento Kelseniano. Entretanto, percebe-se que lhe falta algo e esse algo é a justiça, como finalidade. É possível estabelecer normas aptas a realizar o controle social, mas sem buscar o valor justiça. O direito, para ser completamente definido, não prescinde deste requisito. Entendemos, portanto, que direito é um instrumento normativo de controle social, que implementa o valor justiça vivido como tal pela sociedade do seu espaço-tempo.

 

 

5 – CONCLUSÕES

 

            Concluímos que a Justiça é um valor determinado por parâmetros naturais da própria humanidade, mas cuja quantificação e valoração depende do sentimento subjetivo de uma sociedade de um determinado espaço-tempo. Sua expressão em casos concretos se dá pela eqüidade, que é um juízo casuístico de justiça, que deve ser usado pelo juiz ou intérprete com objetivo de adequar a lei, na sua aplicação, às suas finalidades sociais. Concluímos, também, que o direito não é apenas a norma escrita (lei), mas se caracteriza por esta e pelo valor justiça. Finalmente, tal afirmação representa um avanço em relação ao positivismo jurídico clássico.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

 

 

* Juiz Substituto do Estado do Rio Grande do Norte



[1] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, 7 ed. São Paulo: Ícone Editora, 1995.

[2] Thomas Hobbes, apud BOBBIO, op. cit..

[3] Jhering, Ludwig von, apud BOBBIO, op. cit..

[4] MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

[5] Esta afirmação, encontrada em BOBBIO, op. cit., entendemos ser correta apenas em parte, já que a teoria pode conter, no seu bojo, uma ideologia, de modo que se pode afirmar também daquela ser progressista ou conservadora.

[6] WOLKMER,  Antonio Carlos.  Ideologia, Estado e Direito, 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

[7] WOLKMER,  Antonio Carlos. Op. Cit..

[8] FERNANDEZ, Eusébio. Teoría de la Justicia y Derechos Humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991. 

[9] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19 ed . São Paulo: Saraiva, 1999.

 

[11] PONTES DE MIRANDA, Fracisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, V. I, 4 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1974.

[12] Fontes materiais são os elementos que levam o direito a se configurar, se formar. São também elementos a auxiliar o intérprete (fontes de formação e interpretação). Fontes formais são meios pelos quais o direito chega ao conhecimento dos indivíduos (fontes de conhecimento). Assim, por exemplo, a lei e o costume são fontes formais do direito, enqüanto a jurisprudência é uma fonte material. A eqüidade é, segundo o raciocínio aqui desenvolvido, fonte de interpretação, ao passo que a justiça, genericamente considerada (não no sentido de “eqüidade”), integra o processo de formação do direito que se constitui em fonte material.

[13] Todas esta definições se encontram em BOBBIO, Norberto, op. cit..

[14] LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

[15] KANT, apud LALANDE, op. cit. 

Como citar e referenciar este artigo:
, Eduardo Feld. Lei, Direito e Justiça. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/lei-direito-e-justica/ Acesso em: 28 mar. 2024