Filosofia do Direito

Acesso à Justiça e inclusão social – observações críticas a partir do par inclusão/exclusão em Luhmann

Rafael Gandara D´Amico –

Mestrando em Filosofia do Direito da PUC-SP


BREVE INTRODUÇÃO. O presente artigo pretende fazer observações críticas sobre as expectativas que vieram a reboque das iniciativas envolvendo o que poderíamos chamar de movimento de acesso à Justiça no Brasil nos últimos anos. Pretende, ainda, fazer tais observações com apoio na teoria dos sistemas de Niklas LUHMANN, considerando sua proposta de iluminismo sociológico, bem como especialmente a partir da reflexão que o autor desenvolveu sobre o par inclusão/exclusão. Apontar as conclusões que poderiam ser tiradas com base em tal reflexão como observação externa do Direito, apontando o que poderia ser pensado sobre o acesso à Justiça em uma perspectiva sistêmica, é o intuito do presente trabalho.

ABERTURA POLÍTICA E ACESSO À JUSTIÇA – O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL. No Brasil, nos estertores da ditadura civil-militar que governou o país até meados dos anos 1980, havia intensa expectativa pelo processo de abertura e a volta da normalidade democrática. Esperava-se que, enfim, além da volta à normalidade para o exercício das liberdades políticas e da liberdade de expressão, houvesse o impulsionamento e o reconhecimento de direitos, de modo que, aguardava-se, o país passaria a se voltar para o desenvolvimento social, desenvolvimento este bloqueado pelos anos de autoritarismo (1964-1985). Nesse cenário de pretensões de resgate da chamada dívida social, o ideal do Direito como instrumento de mudança social passa a ter cada vez mais proeminência.

Ganha força, nos anos 1980, o modelo do Juizado de Pequenas Causas e, após a Constituição de 1988, os Juizados Especiais, que, em tese, garantiriam a possibilidade de o cidadão ir diretamente ao Judiciário pleitear seus direitos. Teoricamente, o modelo dos Juizados seria menos formal e propiciaria o acesso direto do cidadão ao Sistema de Justiça.

Além disso, ainda nos anos 1980, o Ministério Público passa a ter destaque não só na seara criminal, mas também na atuação em prol dos direitos da sociedade, sociedade que o Parquet representaria, papel que é mais reforçado após a Constituição de 1988.

A Constituição de 1988, vale dizer, amplia o rol de direitos, garantias e instituições voltadas ao acesso a esses direitos e garantias. É criada a Defensoria Pública com inscrição na Constituição, voltada ao atendimento da população vulnerável, com papéis ampliados nos anos 2000, seja por força de emendas à Constituição, seja por força de um maior robustecimento de suas prerrogativas e missões reconhecidas na legislação infraconstitucional.

A legislação, impulsionada pela Constituição, veicula vários direitos, do acesso à saúde em um sistema universal garantido a todos e não mais apenas àqueles com registro formal de trabalho – mesmo em um país fortemente marcado pela informalidade no trabalho, passando pela assistência social aos vulneráveis e chegando aos direitos do consumidor.

O Direito passou a ser visto não apenas pela ótica da repressão, mas também passou a carregar fortes esperanças de promoção de direitos e inclusão. Mais do que inclusão, o Direito passa a ser tido como como instrumento de transformação social.

Entre as diretrizes que conduziriam esse processo, está a pretensão de produzir inclusão, especialmente inclusão social, em um país marcado por longo histórico de carências materiais e negação de direitos à camada mais pobre e excluída de sua população, tal como sempre destacou longa tradição de sociólogos e historiadores intérpretes do Brasil.

O acesso à Justiça é visto como, além de instrumento de transformação social, parte do processo de realização dos direitos humanos, processo este regido pelo progresso, culminando, mais dia ou menos dia, na concretização material dos direitos naturais reconhecidos e positivados após a II Guerra e que civilizariam o país.

Para entender por que as expectativas não se realizaram, é necessário fazer uso de um instrumento de análise que seja mais assentado sobre a leitura da complexidade do mundo do que das pretensões normativas e utópicas da teoria. Esse instrumento é a teoria dos sistemas, proposta peculiar de sociologia iluminista, que, a partir das formulações do par inclusão/exclusão, pode nos dar pistas sobre quais seriam os motivos pelos quais as pretensões transformadoras do Direito não se realizaram, especialmente na modernidade periférica.

SOCIOLOGIA ILUMINISTA E DESENCANTAMENTO DO DIREITO PELAS CIÊNCIAS SOCIAIS. Aos olhos de HABERMAS, a teoria dos sistemas, na versão de LUHMANN, teria promovido um desencantamento do Direito pelas sociais. Em Direito e Democracia, diz HABERMAS:

“De Hobbes até Hegel, a categoria do direito foi utilizada como uma chave capaz de mediar todas as relações sociais. As figuras do pensamento pareciam suficientes para desenvolver o modelo de legitimação de uma sociedade bem ordenada. A sociedade correta era a que estava organizada de acordo com um programa jurídico” (Direito e Democracia – entre facticidade e validade – volume I, p. 66)

Ainda que, em seguida, HABERMAS aponte para as dúvidas em relação ao direito racional dos filósofos morais escoceses e passe pela crítica de MARX, o autor alemão parece lamentar mesmo a posição de LUHMANN, com quem polemizou durante anos. Diz HABERMAS que a sociologia luhmanniana só lhe interessa:

“apenas por ser a variante mais consequente de uma teoria que atribui ao direito uma posição marginal – quando comparado às teorias clássicas da sociedade – e que neutraliza, através de uma descrição objetivista, o fenômeno da validade do direito, só acessível internamente” (Idem, p. 72)

Diz, ainda, que, em LUHMANN, o sistema jurídico é desligado de todas as relações com a moral e com a política. Além disso, a teoria dos sistemas teria acabado com todos os “derradeiros vestígios de normativismo do direito racional”.

É possível, sim, dizer que, de fato, a teoria dos sistemas luhmanniana desaponta aqueles que entendem que as observações sobre o direito devem ser portadoras de algum normativismo, mas isso decorre não de qualquer falha de compromisso ético da teoria, mas da coerência metodológica com os pressupostos epistemológicos assumidos pela própria sociologia iluminista proposta por LUHMANN. Assim, considerando os pressupostos da teoria sociológica luhmanniana, não seria possível esperar outro resultado. Isso pode ser parcialmente explicado tendo em vista o que seria a proposta de sociologia iluminista desenhada por LUHMANN.

A sociologia sistêmica põe em suspeita dois dogmas do iluminismo, um deles, a participação de todos os homens em uma razão comum, assim como o otimismo que crê no progresso e na realização de condições sociais justas. Como destaca DE GIORGI (Ciência do Direito e Legitimação), o intuito da teoria sociológica de LUHMANN está direcionado para a compreensão e a redução da complexidade do mundo.

Sem querer simplificar demasiadamente toda a elaboração teórica sistêmica, o que pode ser um pecado necessário tendo em vista os limites do presente artigo, pode-se dizer que as linhas gerais da formulação sociológica luhmanniana apontam para a redução da complexidade do mundo como fundamento da teoria. As análises funcionais estão referidas a problemas e pretendem solucionar esses problemas.

A complexidade do mundo é a totalidade dos eventos possíveis, que supera o que podemos elaborar pela ação ou pela experiência. Nossa experiência teria, assim, pretensões excessivas. Se há complexidade no mundo, esta implica a necessidade de operar uma seleção. A contingência significa o perigo de desilusão. Os sistemas sociais, que são o “medium do iluminismo”, assumem a função de compreender e reduzir a complexidade do mundo.

Tudo na proposta de sociologia iluminista luhamanniana aponta para uma perspectiva que poderíamos chamar de uma perspectiva de maior contenção face às teorias que se assentam no otimismo e nas pretensões ilimitadas da razão. De saída, vemos, há um choque entre o iluminismo mais, digamos, dogmático e a versão de proposta iluminista da teoria dos sistemas. Não só isso, mas vale lembrar que as orientações mais dogmáticas do iluminismo e da razão são as que mais influenciam as observações de cunho mais idealista sobre o fenômeno jurídico, visões que embasam os ideias de reforma da sociedade por meio do Direito, tal como muitas das tradicionais formulações que dão sustentação aos projetos de acesso à justiça.

A alguns observadores externos do Direito, seja na Filosofia do Direito ou Sociologia do Direito, aqueles com um pé fincado na crítica, por terem outro pé fincado em algo que poderíamos nomear como um idealismo normativo, o choque com a perspectiva sistêmica é perturbador, vez que coloca em xeque seus pressupostos. O resultado das análises sistêmicas pode trazer surpresas. De início, colocar em xeque a ideia de partilha por todos os homens de uma razão comum é algo que incomoda.

Da mesma forma que parte da frustração causada naqueles que compartilham de uma perspectiva mais idealista advém da peculiar sociologia iluminista de LUHMANN, a concepção do Direito como sistema parcial da sociedade e funcionalmente diferenciado, pode ser apontada como outro motivo para a frustração daqueles que ainda almejam conceber o papel do Direito como um programa capaz de ordenar e organizar amplamente a sociedade.   

DIREITO COMO SISTEMA SOCIAL – LIMITES E ENTRAVES. Considerando as possibilidades de um breve artigo, mais uma vez, não cabem maiores digressões, sem querer entrar em trocadilhos, a respeito de toda a complexa formulação de LUHMANN sobre o Direito na sociedade mundial complexa; bem como sobre suas características de diferenciação funcional e caracterização pelo código lícito/ilícito (ou direito e não-direito); diferença em relação ao ambiente, paradoxo do fechamento operativo ou abertura cognitiva. É do que poderíamos chamar dos limites do Direito que pretendemos tratar.

De forma mais usual, a partir da ótica luhmanniana, os limites do Direito são apontados a partir do risco de desdiferenciação funcional e corrupção do código lícito-ilícito. Após explicarem a noção de Direito como subsistema social, advertem VILLAS BÔAS e LEITE:

“ao conceber o direito como subsistema autorreferencial e autopoiético da sociedade moderna, funcionalmente diferenciada, um dos problemas cruciais que precisam ser enfrentados pela teoria dos sistemas consiste em como promover sua inter-relação com os demais subsistemas autorreferenciais que compõem a sociedade e que, tal como o direito, são operativamente fechados. Isto é, trata-se de analisar como é possível inter-relacionar subsistemas autorreferenciais autorreferenciais sem que isso implique uma ingerência de um subsistema sobre outro e, nesse sentido, sobreposição de referência externa sobre autorreferência. No caso do sistema jurídico, que tem evidentes pretensões regulatórias, essa problemática se torna premente, obrigando a que se procurem soluções que permitam inter-relacioná-lo com os demais subsistemas, sem que isso, por sua vez, contradiga a autorreferencialidade que lhes é própria” (Teoria dos Sistemas Sociais – direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann, pp. 69-70).

Ao tratar das pretensões regulatórias do Direito e, mais do que isso, do que pode acontecer quando não são problematizados os resultados que podem advir do crescimento desmedido das pretensões regulatórias do Direito, VILLAS BÔAS e LEITE advertem para o quanto problemática pode ser a aplicação do Direito produzindo desdiferenciação funcional e, de certa forma, entendemos, para os limites do direito. Ao contradizer a autorreferencialidade dos sistemas, o direito pode produzir resultados diferentes do que pretende e, no final das contas, produzir ineficiências ou retrocessos. Um exemplo típico seria o das pretensões exacerbadas do direito em moldar a economia e produzir um mercado mais justo.

Por outro lado, ainda que não seja o centro da argumentação no presente artigo, mas com importante valor para reflexão sobre as condições da modernidade periférica, não podemos esquecer de autores que chamam a atenção para a desdiferenciação funcional resultante da colonização dos demais sistemas funcionais pela economia resultando “na determinação econômica de diferentes esferas da vida e a formação de indústrias setoriais específicas – como as da saúde, da educação, do controle do crime etc. –, com a consequente erosão da autonomia dessas esferas e a exaustão progressiva das condições sociais para o exercício da liberdade e a experiência da diferença” (MINHOTO, Adorno e Luhmann: algumas afinidades eletivas e outros artigos).  

No entanto, a partir de LUHMANN, é de outros limites do Direito que pretendemos tratar. Pretendemos tratar de outros limites e a partir de outra observação crítica. O Direito pretende produzir transformação social, mas encontra bloqueios, entraves ou embaraços. E, nesse sentido, é a ideia de exclusão, do par inclusão/exclusão, desenvolvido entre outros em Theory of society – volume 2 (pp. 16-27) e no artigo Inclusão e exclusão, que permite uma crítica que exponha os limites do Direito. Mais do que isso, a partir da observação sobre os limites do Direito, uma radical crítica da sociedade, nem que seja numa leitura, diríamos, a contrapelo, pode emergir.

As questões trazidas pela realidade da modernidade periférica e que, de certa forma, a periferia do sistema mundial “opôs” a sua teoria, foram, mais de uma vez, um teste para LUHMANN. Citando o exemplo do Brasil, o sociólogo alemão trata da exclusão e do que seriam os excluídos. Aliás, justamente apontando o país como um daqueles que teria alcançado um certo nível de desenvolvimento industrial, mas que produziria, ainda, uma grande exclusão, é que LUHMANN introduz as observações mais contundentes sobre a exclusão na sociedade moderna:

“Quando se olha primeiramente para a situação fática, então é fácil constatar que, em muitos países (em especial países em desenvolvimento, mas também em países altamente industrializados como o Brasil e, em grau mais limitado, também nos Estados Unidos), parcelas significativas da população sobrevivem sob as condições da exclusão. Sua situação não pode ser adequadamente descrita nem sob o ponto de vista do individualismo moderno, nem sob o da dominação de classes (imposta internacionalmente). Ambas as descrições implicariam uma atenuação do problema” (Inclusão e exclusão, Dossiê Niklas Luhmann, p. 37).

Ao tratar do proletariado, MARX e ENGELS, considerando as severas condições de vida do século XIX, falavam do proletariado que era despossuído ou desprovido de propriedade (Manifesto Comunista). Segundo LUHMANN, nem mesmo a chave teórica do marxismo daria conta da descrição do problema do excluído da moderna sociedade complexa. Ser explorado e, portanto, incluído no “mundo do trabalho” (expressão que nos permitimos usar, muito embora sem correspondência com a teoria dos sistemas), implica algum grau de inclusão, ou inclusão em um sistema da sociedade.

Depois de lembrar que há um “afrouxamento significativo da integração no âmbito da inclusão”, tendo em vista que a inclusão em um sistema funcional não estabelece mais quanto e quão fortemente se dará a participação em outros sistemas funcionais, pois, agora, na sociedade moderna, há sistemas diferenciados, LUHMANN passa a tratar das peculiaridades da exclusão:

“No âmbito da exclusão, pode-se encontrar o retrato inverso. Aqui, a sociedade está altamente integrada – tão integrada, que os sociólogos que trabalham com o conceito de integração (no sentido da tradição Durkheim-Parsons, ligando-o a ideias positivas) podem surpreender-se. Altamente integrada por isto: porque a exclusão de um sistema funcional traz consigo quase automaticamente a exclusão de outros” (…) Necessidade econômica provoca uma indiferença elevada em face do código jurídico lícito/ilícito (o que precisa ser interpretado como indiferença, e não como preferência por criminalidade). (Idem, p. 38)

EXCLUSÃO, PESSOAS, CORPOS E O RECUO DA CONDIÇÃO DE PESSOA. Frente à exclusão, há corpos e não pessoas. São corpos pois – recuperando a influência de PARSONS – seriam pessoas se conseguissem exercer algum papel social. Mais uma vez falando do Brasil, LUHMANN encerra o ensaio sobre o código lícito/ilícito tecendo considerações sobre os seres humanos que, como dito, passam a figurar como corpos apenas e deixam de ser tidos como pessoas:

“Há alguns pontos a favor de que, no âmbito da exclusão, os seres humanos deixem de ser compreendidos como pessoas e passem a ser vistos, antes, apenas, como corpos. Quando, por exemplo, alguém se detém nas cidades grandes brasileiras, movendo-se por suas ruas, praças e praias, uma constante observação da postura, da distância, do amontoamento de corpos humanos faz parte de uma imprescindível competência social. Sente-se o próprio corpo; vive-se no próprio corpo em grau maior do que costuma ocorrer. Os estrangeiros são avisados, mas isso não leva a uma avaliação suficiente da situação. Há, antes, uma espécie de percepção orientada pela intuição, que contribui para que se reconheçam e se evitem ameaças. E. inversamente, é evidente que também os estrangeiros ou outros objetos de ataque são identificados como corpos. Tudo o que apreenderíamos na forma de pessoa recua e, com isso, recua também toda tentativa de alcançar efeitos sociais através da orientação de atitudes ou ações. Isso careceria de um contexto de controle e pertencimento social, que não pode ser pressuposto”. (Ibidem, pp. 41-42)

A inclusão, na modernidade, se dá em cada um dos sistemas. A exclusão, por sua vez, como veremos, é um metacódigo. A exclusão implica exclusão em vários dos sistemas funcionais. Da perspectiva da inclusão, por exemplo, alguém pode estar incluído no sistema da educação, tendo alcançado o grau máximo de formação educacional, mas, por falta de aptidões individuais, não alcançaria a inclusão no sistema da arte.

Mais uma vez, a chave teórica que aponta para a condição de explorado, com raízes fincadas no marxismo, não daria conta da condição da situação do excluído na moderna sociedade complexa, ainda mais considerando a vida cada vez mais difícil e precária na periferia do mundo, que (poderíamos dizer, já que LUHMANN lembra dos Estados Unidos) se espraia por todo o planeta (seja no Terceiro Mundo, países em desenvolvimento ou no chamado Primeiro Mundo). O explorado, que participa do processo de produção, que recebe como retribuição pecuniária do detentor dos meios de produção menos do que produziu, de certa forma, encontra respaldo em sua “inclusão” (inclusão entre aspas, por se tratar de um sistema psíquico, e por se tratar do processo de produção assentado sobre a mais-valia) no sistema da economia. O excluído, por sua vez, veremos, é descartável.

A exclusão como metacódigo carrega uma crítica poderosa. A uma, porque a exclusão de um sistema funcional traz consigo quase automaticamente a exclusão de outros. Trata-se de um problema que não pode ser resolvido por um subsistema apenas, que enfrenta o limite de não poder ser resolvido tendo em vista os limites operacionais de cada sistema. Vai além de cada um deles. LUHMANN chega a falar que os excluídos, que não exercem papel algum seriam descartáveis para a sociedade.

 Assim, não se trata mais da questão dos limites do Direito com pretensões regulatórias e que pretende ir além do alcance dos seus limites operacionais, mas da exclusão que, por falta de melhor palavra (em uma primeira leitura apressada, com o risco de usar expressão que corre o risco de entrar em aparente contradição com as perspectivas epistemológicas de LUHMANN), transcende os limites dos sistemas sociais parciais e que não pode ser enfrentada com o arsenal de cada um desses sistemas.

Frente a todos os problemas que envolvem a situação dos excluídos na modernidade periférica, e o Brasil é um catálogo vivo de muitos desses problemas, as pretensões postas nos últimos trinta ou quarenta anos para que pudessem ser resolvidas pelo Direito encontram uma chave explicativa na teoria dos sistemas para elucidar por que tudo que se pretendia não se materializou.

No final de O Direito da Sociedade, LUHMANN lembra que “para os grupos populacionais excluídos (…) [a diferença entre lícito e ilícito] tem pouco significado se compararmos com o que sua exclusão lhes impõe” (O Direito da Sociedade, p. 786). A diferença entre inclusão e exclusão, como dito, faz as vezes de um metacódigo, que mediatiza todos os demais.

É possível concluir, a partir de uma leitura sistêmica, que foram dadas missões ao Direito que vão muito além de suas possibilidades de realização, que o Direito encontra limites próprios a suas especificidades funcionais. Mais do que isso, é também possível concluir que o problema da exclusão, perpassando vários sistemas funcionais, sem querer tirar da teoria dos sistemas conclusões que seus pressupostos não necessariamente permitem (e sem, ainda, buscar criar uma heterodoxia “sistêmico-marxista”, “sistêmico-revolucionária” ou algo parecido), talvez deva ser enfrentado a partir de mudanças mais profundas, mudanças que vão além dos limites estritos e parciais do sistema do Direito. De qualquer modo, seriam leituras críticas do Direito possíveis a partir ou com a contribuição da teoria dos sistemas.

Além disso, não podemos esquecer, para não perder a sofisticação da análise do autor, que o próprio LUHMANN aponta no artigo Inclusão e exclusão, em seu encerramento, ao advertir que “toda tentativa de descrever a sociedade com base em apenas uma distinção leva a um contraste exagerado e irreal”, que a diferença nunca estará totalmente dada a ponto de permitir que as pessoas possam ser associadas a um ou a outro lado. Assim, em um projeto que seguramente iria além dos limites do presente artigo, LUHMANN diz que o desenvolvimento de tais questões implicaria na necessidade da pesquisa empírica, assim como aponta para a necessidade de maiores desenvolvimentos conceituais, o que, sem dúvida, indicaria que existiriam ainda questões conceituais não resolvidas.

Nos limites do presente artigo, tivemos como objetivo apenas dar uma contribuição iniciando a uma leitura crítica do que, digamos, pode ser chamado de movimento de acesso à Justiça, ao menos tal como se delineou no Brasil, leitura crítica que se dá a partir da perspectiva sistêmica. Pretendíamos responder com algumas observações à hipotética pergunta sobre o que a teoria dos sistemas poderia dizer sobre o tema. Sugeridos pelo próprio LUHMANN no artigo Inclusão e exclusão, as futuras pesquisas empíricas e o trabalho conceitual a ser continuado e aprofundado poderão, sem dúvida, avançar ainda mais nas respostas.

Como citar e referenciar este artigo:
D'AMICO, Rafael Gandara. Acesso à Justiça e inclusão social – observações críticas a partir do par inclusão/exclusão em Luhmann. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/acesso-a-justica-e-inclusao-social-observacoes-criticas-a-partir-do-par-inclusaoexclusao-em-luhmann/ Acesso em: 19 mar. 2024